domingo, 14 de agosto de 2022

AINDA O PROCESSO CRIATIVO

Por João Boavida 

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Texto que continua um anterior (ver aqui).

Tomemos outra vez o trabalho de Manuel Cargaleiro. Começa de novo por um traço, que ainda não é nada, depois outro ao lado daquele, que pouco mais é, ambos verticais; depois hesita, hoje não se sente inspirado, traça outro, são três simples riscos verticais. Sente que aqueles traços precisam de um travejamento, que os segure, e então desenha uma linha horizontal que os atravessa; procura ainda a inspiração. Acrescenta-lhe outra e mais outra, volta aos verticais. Depois, a partir dos traços cria triângulos, invertendo triângulos cria retângulos e assim, grão a grão, vai acrescentando elementos, diversificando cores, ganhando entusiasmo até que, aquilo que a princípio não era nada se transforma numa ideia pela contínua junção dos elementos pictóricos.

Raramente uma obra está, à partida, concebida por completo na cabeça do artista.

É vulgar os escritores revelarem que, durante a escrita, as coisas lhe saem muitas vezes dos planos previstos e vão por outros caminhos, como se tivessem vida autónoma; o processo cria, por vezes, os seus próprios itinerários. Mas a via adotada é uma entre várias possíveis, como se a obra andasse, por si própria, à procura da forma que mais convém, ou aquela que o autor é capaz de tornar possível naquele momento.

Ora, se a dinâmica tem tendência para se autonomizar dos autores sai reforçada a ideia, já antes aqui apontada, de uma estrutura que o autor vai pressupondo ou pospondo, isto é, que vai procurando na concretização de um caminho que, de algum modo, está traçado desde o princípio. Se, por outro lado, a obra caminha passo a passo sem aparentemente pressupor uma estrutura final, estamos na situação inversa em que a totalidade aparece mais lá para o fim do processo.

Frequentemente, certos projetos ambiciosos veem-se, no final, reduzidos a muito menos, e outros, pelo contrário, vão ganhando força à medida que vão ultrapassando fases e acabando por se conseguir mais do que à partida estava previsto; uns ganham asas, outros perdem-nas. Por vezes, face à ausência de preferência por uma das alternativas, o autor usa várias.

A escritora espanhola Rosa Montero em A louca da família (Porto Editora, 2017) a certa altura da obra desenvolve vários finais para um certo enredo que vem detrás pondo uma dada personagem a comportar-se diferentemente e multiplicando os enredos.

Por outro lado, a pintura moderna (Souza Cardoso, Picasso, Braque, Malevitgh, Escher, Vieira da Silva, Kandfnsky, etc., etc.) está cheia de sobreposições, de traços, cores e perspetivas, servindo-se da ambiguidade como processo e do movimento como construção. 

O mesmo se poderá dizer de muita literatura contemporânea, em que os planos se multiplicam, sobrepõem, alternam, repetem, etc.. Ou seja, umas vezes há um esquema mais ou menos nítido que comanda desde o princípio o desenrolar dos acontecimentos, noutras, há, no começo, uma simples ideia, ou até só intuição e, depois, a construção da obra vai definindo o seu curso. 

E, portanto, a criação tanto pode ser orientada, desde o começo, por uma ideia forte, como seguir um processo associativo de elementos até alcançar a totalidade, que só então se descobre como tal. Dir-se-ia que, no primeiro caso, a estrutura comanda a função, e que no segundo é a função que vai à procura da estrutura. Ainda doutro modo: ou seguimos um caminho mais racionalista e platónico, em que uma ideia mobiliza o artista no sentido de a recuperar, recriando-a em termos pessoais e segundo uma dada especificidade artística, ou, numa perspetiva oposta, mais empirista e aristotélico, o artista vai associando elementos no sentido de uma ideia que aparecerá no fim, como uma indução amplificante. 

Estamos no velho problema da oposição entre racionalismo e empirismo, que já vem dos filósofos pré-socráticos e atravessa toda a filosofia ocidental. Desde Aristóteles, no século IV a. C. as ideias formam-se por associação na base da semelhança e da contiguidade. Muitos comentadores de Aristóteles e muitos filósofos escolásticos seguiram nesta linha. Mas não só estes, de tendência mais espiritualizante pela apropriação quase total que os tomistas e, já no nosso tempo, os neotomistas, fizeram do aristotelismo, mas outros, que nada tinha de espiritual ou espiritualizante, nem sequer de inteligível no sentido platónico.

Luís de Vives, (séc. XV / XVI), Hobbes (séc. XVI / XVII), Locke, Hume, Berkeley e Hartley (sec. XVII / XVIII), Priestley, (séc. XVIII / XIX) S. Mill (séc. XIX), todos aceitaram e desenvolveram a velha conceção associativista, acrescentando-lhe a associação por contraste, frequência, simultaneidade e intensidade. E se considerarmos a contínua tradição empirista das escolas inglesas, e teorias como o positivismo, o neopositivismo e seus radicalismos sensualistas, vemos como estas coisas se continuam, e que, repensando-se, adaptando-se, modernizando-se chegaram aos nossos dias.

Ou seja, aquilo que fora em Aristóteles um problema gnosiológico (De memoria et reminiscentia) transformou-se em teorias psicológicas modernas (condutismo, behaviorismo) sem nunca deixar de ser gnosiológica e, portanto, filosófica. 

Se pensarmos na posição oposta, há também uma longa tradição que vem de antes de Platão, não só de Sócrates e da descoberta do conceito, mas de conceções anteriores, como Parménides e os Eleatas, (os da permanência e eternidade do ser) para não falar nos pitagóricos e nos Órficos, e suas geometrias e álgebras mais ou menos cabalísticas, e que continuou na modernidade pelos idealistas alemães, com nomes tão soantes como Fichete, Schelling, Hegel, e depois, mediante reversões materializantes de Feuerbach, em Marx, Engels e outros; e se pensarmos ainda em correntes atuais tão importantes como o gestaltismo, a fenomenologia, o estruturalismo, percebemos a perenidade desta conceção a que poderemos chamar, embora com bastante imprecisão de racionalista.

Mas, apesar de ambas continuarem a manter as conceções básicas das suas matrizes, aparentemente opostas, talvez devamos considerar que são componentes indispensáveis à própria aprendizagem e, portanto, também à criação, visto podermos pensar na criação como uma espécie de aprendizagem pela inversa.

De resto, paralelamente a estas duas conceções da aprendizagem houve importantes esforços de síntese. Aristóteles, ainda na Antiguidade, tentou conciliar o conceito socrático com a Ideia de Platão através da indução, que tão grande implicação teve no pensamento e na ciência moderna. E Kant, no século XVIII, através da demonstração da existência de juízos sintético a priori, e da indispensabilidade dos a prioris da sensibilidade e das estruturas intelectuais, ou categorias do entendimento, sintetizou as conceções empiristas (Locke, Hume, etc.) com as racionalistas de Descartes, Espinosa, Leibniz, etc. Também o século XX, agora sobretudo no campo psicológico, há importantes contributos neste sentido, com, Piaget, Kohlberg, os gestaltistas e os construtivistas em geral. 

São contributos, talvez definitivos, para resolver de vez esta oposição sobre a conceção geral da aprendizagem, e da sua inversa, a criação. De resto Hume, um dos papas do empirismo, já tinha reconhecido, no Inquérito sobre o entendimento humano, uma espécie de conexão entre os diferentes pensamentos ou ideias da mente, que pela memória e a imaginação se vão introduzindo uns aos outros com certo método e regularidade; isto é, a ideia de um sentido nas sensações.

Em suma, estes dois grandes movimentos do intelecto, quer subindo das coisas ao pensamento quer descendo das ideias às coisas, parecem afinal ambos indispensáveis tanto ao conhecimento como à criação. De resto, pressupondo embora conceções filosóficas antagónicas, e valorizando opostas capacidades do ser humano, ambas parecem viver, em dois dias seguidos, na mão de Cargaleiro que, sem provavelmente dar por isso, segue uma delas hoje, e a outra amanhã, dando-se bem com ambas e utilizando-as com boa consciência. 

João Boavida

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

Quando ficarem descritos e conhecidos e explicados os processos criativos, continuar-se-á sem saber e sem poder prever o que vai ser criado. E isto já era assim, quando no princípio era o verbo (dos processos criativos). Até as descobertas científicas com mais repercussão nos nossos tempos, não criaram as coisas existentes mas deram-lhes uma "existência", ou representação, que elas não tinham. O que, por exemplo, Newton e Einstein descobriram, e que corporizaram nas suas teorias, não são realidades novas, não são naturezas novas. São realidades culturais novas (e nesse sentido são naturais, porque são humanas), entendimentos sobre realidades que talvez já existissem, acontecessem, funcionassem, muito antes do aparecimento do homem. Até que ponto esses entendimentos, representações, modelos explicativos, podiam ter sido outros, ou serão substituídos por outros é um dos aspectos mais intrigantes e fascinantes da aventura do conhecimento. E é, no fundo, o intrigante e fascinante funcionamento da relação entre realidade, linguagem e conhecimento, ou, de como é viável falar de realidade senão pela linguagem e que conhecimento é esse.

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