terça-feira, 23 de agosto de 2022

COMO NOUTROS CASOS, TAMBÉM NESTE É PRECISO DESTAPAR A OBJECTIVA

Por Gonçalo Coimbra


Na edição de 13 de Agosto, saiu no jornal Público um artigo do sociólogo e ex-ministro António Barreto, com o título “Escola, cidadania e democracia”. O texto está repleto de equívocos, que são também provocações a quem queira pensar esta tríade. 

Concentro-me apenas em dois equívocos. 

O primeiro é António Barreto pensar que a escola pode ser um espaço axiologicamente neutro, o que é impossível. A recusa de tomar uma posição acerca dos valores a eleger para educar é, em si mesmo, uma tomada de posição. Não há escola sem valores. 

E se, como sociedade, concordamos que existem valores que, por dignificarem o ser humano, – contando-se, entre eles, a liberdade, a igualdade, a justiça, a verdade, etc. – , são estimáveis e devem estimar-se, eles devem ser transmitidos na escola. 

A educação desses valores, ou para esses valores – que por valerem para todos são universais – , dá corpo à formação ética, uma componente essencial da educação. 
“A escola poderá, nas suas disciplinas de História, aprofundar a evolução dos sistemas políticos, a natureza dos regimes, a história da liberdade e da tirania, mas não deve impor ou condenar ideias.” 
Aqui podemos ver que assunção de escola axiologicamente neutra leva António Barreto a afirmar algo que toca o ignóbil: nessa instituição – educativa, por excelência – não se deve condenar nem o fascismo, nem o nazismo, nem o estalinismo (os “nem” seriam infinitos). 

Defendo, pelo contrário, que a escola tem o dever de condenar todas as ideias e práticas que atentem contra a dignidade humana. 

Omitindo-se de o fazer, não cumpre, com certeza, o seu principal propósito – o de educar, tendo em vista a perfetibilidade do ser humano. 

O segundo grande equívoco, que deriva do primeiro, parte da presunção de que a escola é um espaço apolítico, onde “não se deve ensinar a democracia”, “nem formar consciências políticas”. 

Começo por esta última frase. Parece óbvio, mas convém explicitá-lo – a escola é um espaço primordial para a formação das consciências. Que elas sejam políticas, mais do que desejável, é inevitável. Aprender a pensar é um ato político e o desenvolvimento da consciência (política) é uma etapa fundamental para o desenvolvimento e emancipação intelectual das crianças e jovens. 

Mas retomemos a citação. Para António Barreto, a escola 
“não deve ensinar a democracia”,
pois estaria a incorrer no pecado capital da educação: o doutrinamento. Mas, logo se contradiz:
“Da democracia, a escola deve limitar-se às regras e dispositivos constitucionais relativos ao sistema e aos órgãos do poder, aos direitos e deveres dos cidadãos, às garantias das liberdades, à participação eleitoral, ao equilíbrio dos poderes entre instituições, ao acesso à justiça e à defesa dos cidadãos perante ameaças de outros ou do Estado.” 
Ou seja, o autor do artigo acha que se deve ensinar democracia na escola, desde que se restrinja aos tópicos por ele selecionados. E aqui falha no alcance da educação para a democracia. 

Parece, por um lado, não entender que temas como “os direitos e deveres dos cidadãos” ou “a participação eleitoral” se enquadrem perfeitamente no ensino da democracia. E, por outro, confundir ensinar democracia com doutrinamento.

Ensinar a democracia é, por princípio, o contrário de doutrinação, não fosse a democracia esse sistema que acolhe o pluralismo de perspectivas, de mundivisões. A democracia não só é tolerante, muito no sentido que Popper lhe imprimiu, como dá espaço às vozes que lhe são contrárias e antagónicas. 

Ensinar a democracia é também falar dos seus defeitos e problemas. Duvido que algum professor tenha dito alguma vez: “A democracia é um sistema perfeito, não há nada a melhorar”. Mais do que um sistema político, a democracia é um “modo de vida”, como bem observou John Dewey. Para as sociedades democráticas, este modo de vida é aquele nos permite, ao mesmo tempo, coexistir pacificamente e potenciar ao máximo o progresso, rumo a uma sociedade mais justa, livre e igual.

A democracia é sem dúvida um legado de que beneficiámos e que deve ser preservado e transmitido. Mas é também um projeto, em permanente construção e, por isso, deve ser renovado e melhorado. 

A escola pode (e deve) ser precisamente o lugar onde começa essa renovação. 

A partir da matéria-prima, que é o conhecimento, ao fomentar a atitude crítica e o pensamento livre, a escola abre a possibilidade aos mais jovens de realizarem qualquer coisa de novo, como disse Hannah Arendt. E, há mais de cem anos, John Dewey disse que o sucesso da democracia dependerá sempre do sucesso da educação dos seus cidadãos. 

Atualmente, o ressurgimento de forças populistas e extremistas, o imparável rolo compressor da lógica neoliberal, o uso maquiavélico das novas tecnologias e, não esquecendo, a crise climática, são problemas que ameaçam gravemente a democracia e que renovam a importância da afirmação de Dewey. 

A predisposição para a democracia não nasce connosco, tem de ser incutida.

E o espaço público mais bem preparado para essa missão é precisamente a escola. A formação da vontade democrática é imprescindível, se quisermos preservar esse modo de vida que é a democracia. 

Curiosamente, o texto do ex-ministro é inserido na rubrica “Grande angular”. Talvez António Barreto se tenha esquecido de destapar a objetiva.

Gonçalo Coimbra

3 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

A democracia, enquanto conceito e prática cultural e política, tem evoluído ao longo dos séculos de um modo sempre perturbador para doutrinas, sejam liberais, socialistas, comunistas, religiosas, quer no que tange à vertente educativa e socializante destas, quer no que respeita à pretensão mais ou menos totalitária e ditatorial derivada do facto de serem monolíticas e incompatíveis entre si.
A democracia pode ser sempre mais democrática, mas o liberalismo, o socialismo, o comunismo, as religiões, não são democráticos. Diferentemente destes, a democracia não é doutrina.
A democracia é o que permite e obriga à coexistência do que, sem essa coexistência, a democracia não existia. Todos os poderes tendem a usar a democracia para a aniquilarem.
No fundo, ninguém, nenhum partido, nenhuma doutrina política, nenhuma igreja, é democrática, ou, se o são, é porque não têm outro remédio.
Apesar disso, a democracia, entre nós, e por notáveis pergaminhos nos EUA, tem sido capaz de obter as mais cínicas declarações de amor, de todos os partidos, com destaque dos partidos comunistas, que se aproveitam dela, enquanto puderem, enquanto ela o permitir.
A democracia tem estado debaixo dos ataques de todos e há cada vez mais loucos que acreditam que acabar com a democracia é uma verdadeira expressão de democracia, mas isso já é uma subversão dos termos, é pretender anular a evolução das realidades políticas e regredir para épocas anteriores às grandes conquistas da cultura.
A democracia, o estudo da democracia, devia ser uma disciplina para ser trabalhada numa perspectiva científica, como se estuda, por exemplo, o Direito do Direito.

Gonçalo Moura Coimbra disse...

Caro Carlos Soares,

Antes de mais, obrigado pelo seu contributo. É sempre bom perceber que alguém lê o que escrevemos.
A democracia é realmente um conceito difícil de definir. Geralmente apoiamo-nos nas suas características: eleições livres, tripartição (e separação) de poderes, imprensa livre, igualdade perante a lei, etc. Depois há vários tipos de democracia (representativa, directa , participativa, etc.) e subcategorias, dependendo do tipo de regime. Em Portugal, por exemplo, uns poderão dizer que vivemos numa social-democracia, enquanto outros dirão democracia liberal. Acho que nenhum dos dois estaria errado.
Quanto às doutrinas, primeiro seria melhor não confundir doutrina (ou ideologia) política com doutrina religiosa. A religião tem, obviamente, um lugar na sociedade. Mas não deve, em estados democráticos, orientar a política. Por isso, em grande parte das democracias o Estado é laico. Por outro lado, não há, não pode haver, democracia sem contemplar ideologia(s). O liberalismo, o socialismo e o comunismo são ideologias que se podem enquadrar perfeitamente no debate democrático. A democracia alimenta-se precisamente do pluralismo e conflito de ideias. A chave está em encontrar um consenso. Para isso serve o parlamento e os seus deputados, por nós eleitos. Estes deputados representam partidos, que por sua vez representam ideias, previamente escrutinadas nas urnas. Agora se me pergunta se a democracia representativa é perfeita, prontamente lhe direi que não. Defendo, como outros, que progressivamente devemos fazer evoluir as nossas democracias para modelos mais participativos e deliberativos, nos quais o cidadão, em vez de delegar o poder, o exerce. Mas isto implica uma mudança estrutural e a aceitação de um novo paradigma de democracia, o que, a acontecer, levará o seu tempo. E precisaríamos também de cidadãos mais bem preparados, mais politizados.
Mas concordo consigo quando diz que a democracia pode ser sempre mais democrática. Como referi no texto, a democracia é um projecto em permanente construção. E sem dúvida que a democracia merece e deve ser estudada, seja como conhecimento, como valor, como ideia ou como regime. E sempre com esse intuito, de ao mesmo tempo a preservar e melhorar.
Uma vez mais, obrigado.
Gonçalo Coimbra

Rui Soreto disse...

"Concentro-me apenas em dois equívocos." é o equívoco maior de ler e "ver" apenas duas árvores e não toda a floresta. Muito pequena visão, muito pouco mundo...

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