segunda-feira, 29 de agosto de 2022

DA NATUREZA DO MONSTRO

Regresso à guerra. Quem me dera poder traduzir isto num russo decente, para o enviar ao visado, dizendo-lhe que me tinha sido ditado, em sessão espírita, pelo espírito de Pushkine!

Os homens sem afectos são os monstros
que gostam de oprimir e fazer guerras.
Eles não olham nunca para os astros,
metidos nos jogos de papa-terras.

Os homens que gostam de oprimir
não acham grande uso nas mulheres.
Há neles mais gozo no suprimir
do que no fruir doce dos prazeres.

O frio que lhes congela o sangue
permite ao cérebro sem coração
fazer do mundo teatro exangue.

Os monstros a quem falta emoção
desforram-se no prazer de matar,
mutação sinistra do desflorar.

Eugénio Lisboa


domingo, 28 de agosto de 2022

GATO QUE DORME NA PRAIA

Um gatinho deitado na praia,
tendo em fundo o mar azul sossegado,
impede que o universo descaia
e saia do seu rumo calculado.

O sossego do gato é agulha
de bússola que nunca se engana:
a dormir, tranquilo, o gato patrulha
a paz universal, doce nirvana.

Um gato que dorme cuida tão bem
do estado saudável do mundo,
que se torna óbvio que não convém

retirá-lo do seu sono profundo.
O gato que dorme, a tudo alheio,
mitiga, com beleza, nosso anseio.

Eugénio Lisboa

Está em marcha a reconfiguração do sistema de formação de professores

 Por Cátia Delgado

Está em marcha a reconfiguração do sistema de formação de professores, sub-repticiamente, uma medida atrás da outra, para não criar grande alarde nem ferir suscetibilidades. Sem termos noção do todo, vamos vendo as peças encaixarem-se, procurando perceber o que será o novo sistema.

Na passada sexta-feira, o Jornal de Notícias avançou que o Ministro da Educação “vai criar um programa de acompanhamento, com enfoque na componente pedagógica, para os professores com habilitações próprias que estejam a dar aulas no próximo ano letivo”.


Esclarecia a notícia que o referido “programa” não substituirá o mestrado, como conferente da profissionalização docente. Ou seja, este mestrado mantém-se, mas a par da profissionalização em serviço. Estando um tal programa em marcha, haverá para desvendar. 

Ao que se pode constatar, a profissionalização em serviço já está prevista no plano de estudos do Instituto Piaget, em Viseu, através do Instituto Superior de Estudos Interculturais e Transdisciplinares (ISEIT/Viseu), em articulação com a DGAE (Direção-Geral da Administração Escolar), para o próximo ano letivo, em regime 100% e-learning. 

Este “Curso de Profissionalização em Serviço”, apresenta-se com o objetivo enunciado de “contribuir para a qualificação profissional na docência” e, assim, “formar professores capazes de educar”, bem como “cooperar para as necessidades do sistema, em número e qualificação dos professores”. 

Pelo anúncio, de que será ministrado no ano escolar de 2022/2023 (unicamente?), podíamos entender esta iniciativa como sendo, de facto, uma tentativa de mitigação da falta de professores e não como uma ameaça a outro tipo de profissionalização, como os mestrados em ensino. No entanto, há um requisito que rapidamente nos transporta para realidades anteriores de profissionalização em serviço: os candidatos terão que reunir 5 anos completos de serviço para ingressar no curso. 

Ora, se há um despacho a ser preparado que faculta habilitação própria a licenciados (pré e pós-Bolonha), tendo em vista o alargamento da possibilidade de “dar aulas” a pessoas sem experiência (nem formação pedagógica e com o mínimo dos mínimos de formação científica), que candidatos reunirão as condições para este novo Curso, a não ser os que ingressem agora no sistema e, daqui a 5 anos, possam profissionalizar-se por esta via?

UM LIVRO

Um livro é assim como um filho,
que lançamos, indefeso, às feras.
Tentámos, com amor, dar-lhe brilho
e, às vezes, elegância de pantera.

Tivemos insónias e também dores,
faltámos a deveres e encontros,
sempre em favor daqueles fervores,
que se alimentam de desencontros.

Um livro constrói-se com emoção,
mas também com cálculo e razão.
Junte-se a isso, enorme esforço,

de que a alegria é um reforço.
É filho com que nos preocupamos
e de quem, por vezes, nos orgulhamos.

Eugénio Lisboa

O ESTRANHAMENTO COMO CONDIÇÃO DE APRENDIZAGEM ESCOLAR

Recentemente, alguém, que se identifica como estudante universitária do Mestrado em Ensino de Português e também como militante do Bloco de Esquerda, escreveu um texto para Público com o título: E se fizéssemos uma revisão ao programa de Português?

Como futura professora e muito segura nas críticas que faz ao ensino da disciplina, ignora o facto de já não existirem "Programas"; o que existem são "Aprendizagens essenciais" como documentos estruturantes das disciplina. Nessa medida o "programa actual" de Português não pode ser "defendido com unhas e dentes por muitos, por outros e outras é visto como antiquado", na medida em que foi revogado.

Referindo-se no ensino secundário, considera que a falta de "gosto" que (supostamente) os alunos denotam pela disciplina decorre (exclusivamente?) da dificuldade de se identificarem com a linguagem das obras que são de leitura obrigatória. Os seus autores, todos eles homens, terão mérito, mas o que está em causa é a relevâncias das obras "para a actualidade". Assim sendo, as obras a seleccionar devem traduzir os valores da nossa sociedade.

Socorrendo-se de uma investigação em curso nos EUA sobre uma dessas obra (e já objecto de várias notícias), detém-se no racismo. Do que li, interpreto o seguinte: qualquer conteúdo que sugira uma atitude racista deve ser, se não retirado do horizonte dos alunos, pelo menos acompanhado de um aviso inequívoco (a famosa "nota pedagógica") de que aquilo que estão a ler traduz tal atitude. O mesmo para conteúdos que sugiram atitudes nacionalistas, colonialistas, machistas, xenófobas e homofóbicas, apanágio, diz, do Estado Novo. 

Daqui decorre o apelo a que os professores tomem uma "posição mais activa" quando abordarem as obras em causa. Isto em prol, evidentemente, do espírito crítico dos alunos. Termina com a pergunta: "a disciplina de Português serve para quê? Para homenagear autores ou para transmitir a paixão pela leitura às próximas gerações?" 

Passados poucos dias, respondeu, no mesmo jornal, à futura professora, um professor de Português e Latim e eleitor do mesmo partido político. E se não mexêssemos nos programas de Português?

Nota a expressão ‘identificar-se’, dizendo que está "muito na moda no que se refere a uma determinada visão da Educação" e explica o problema que se lhe cola.
É sinal de um pensamento que encara o currículo escolar como um conjunto de conteúdos que não causem nenhum estranhamento ao aluno, como se o estranhamento não fosse, entre outras virtualidades, um caminho para o conhecimento, com tudo o que esta palavra deve implicar, incluindo o exercício do espírito crítico (em tempos de proscrição de palavras e conceitos, é estranhamente fundamental reafirmar o óbvio).

Evitando-se este estranhamento e apostando-se na identificação...

... o aluno só deveria encontrar a sua própria identidade, como se a Escola fosse um simples espelho e não um território onde deverá encontrar desafios minimamente controlados. Ainda por cima, esta ideia de uma identificação é redutora sob variadíssimos pontos de vista, desde logo porque parte do princípio de que os alunos são um todo uniforme por pertencerem a uma mesma geração.

As implicações na "questão dos valores" não são despiciendas, pois...

... atribui[em-se] defeitos a obras de outras épocas com base num sistema de valores que não lhes era subjacente. Estamos diante de um duplo erro: reduz um texto literário aos valores (explícitos ou implícitos) e suprime o contexto em que o mesmo texto literário é produzido (um a-historicismo que impede, ainda, a identificação de valores de outras épocas, sabendo-se que muitos desses valores, à luz da actualidade, podem até causar repulsa, o que é utilíssimo do ponto de vista pedagógico).

Em sequência nota, e bem, que a futura professora...

... consegue escrever sobre textos literários sem recorrer a contributos dos estudos literários e da história literária (...). Permitir o contacto dos jovens com o património literário do país é uma obrigação da Escola. As razões para que isso aconteça são variadíssimas. 
Em primeiro lugar, permite saber que houve milhares de escritores, o que, parecendo que não, é importante, quanto mais não seja por uma questão de simples humildade: nem todos esses escritores eram gigantes, mas estamos em cima dos ombros de muita gente que, antes de nós, escreveu de tantas maneiras (...) e sobre tantos assuntos actuais ou ultrapassados. 
Depois, temos a importância da alteridade, da não-identificação, que é um desafio fundamental na formação de qualquer pessoa: no que se refere à literatura, o percurso cronológico permite perceber as mudanças linguísticas, notar as sucessivas alterações de valores, saborear expressões tão diferentes das nossas e, no entanto, nossas. 
Finalmente (...) é a partir de textos que nos desafiam que podemos ajudar os alunos a construir (...) valores, o que se deve fazer em confronto e não como bons selvagens a quem escondessem os negros males de tanta literatura perfidamente do seu tempo – e é claro que não é possível estudar literatura sem fazer constantes ligações à sexualidade, à religião, ao poder, ao colonialismo, enfim, à violência inerente à História Humana.

Este professor termina o texto com um esclarecimento crucial, que urge ser reiterado no espaço público, dada a lamentável tendência de alguns representantes das várias esquerdas europeias, que se querem afirmar como progressistas, para negarem o conhecimento escolar. 

Conhecimento que tem de ser o mais erudito que o ser humano (não importa quem) conseguiu construir, que tem poder para transformar o sujeito e o mundo. A esquerda deveria acarinhá-lo com especial cuidado e a bater-se para que permaneça na Escola ao acesso de todos, pois é ele que conduz à igualdade, à liberdade, que faculta a fraternidade (esse valor da modernidade tão esquecido) e, em última instância, sustenta a democracia.

Para mim, ser de esquerda implica uma sociedade em que todos tenham acesso a bens culturais que estiveram reservados, durante séculos, a alguns privilegiados e esse acesso faz-se também através da Escola Democrática e ser de esquerda nunca poderá implicar a ideia de que devemos proteger os jovens do passado, escondendo-o por ser feio – em vez disso, devem conhecê-lo e a discuti-lo de modo crítico e informado. Ser de esquerda não me impede de ficar maravilhado com uma catedral, mesmo sabendo que muitos se sacrificaram ou foram sacrificados para que ela exista.

Teve o primeiro texto o mérito de desencadear o segundo. E, se o autor deste me permite, a minha sugestão é que continue a escrever o mesmo até que seja compreendido.

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

CENÁRIOS QUE PREPARAM UM MUNDO SEM ESCOLA?

Na estratégia que, desde finais do século passado, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) tem usado para "moldar" o futuro do mundo (ver, por exemplo, aqui) e da escolaridade, ocupa lugar de relevo a noção de cenário prospectivo

Em 2001, avançou seis cenários para a educação, que haviam sido delineados por peritos. A discussão que se seguiu teve a participação de multi-stakeholders. A fim de responder de modo mais concreto a desafios globais inesperados, procedeu a uma reorganização em quatro cenários, que apresentou em 2020 e reafirmou em 2022. Destes fiz alusão aqui, aqui e aqui.

Recordemo-los, na forma interrogativa em que são apresentados pela organização:
Cenário 1: Escolaridade alargada. E se cada vez mais jovens continuarem a procurar educação formal? Seria preciso um sistema com escolas robustas e salas de aulas modernizadas com tecnologia digital, onde se podem usar dados refinados capazes de melhorar o planeamento da educação e um ensino mais eficaz. 
Cenário 2: Educação terceirizada. E se os pais e a comunidade local assumissem o papel central na educação? E se os alunos e as famílias pudessem escolher entre uma ampla gama de alternativas de provedores e plataformas, públicas e privadas, online e offline, nas escolas e em casa, em centros comunitários e no local de trabalho? 
Cenário 3: Escolas como centros de aprendizagem. E se a escola se tornasse totalmente diferente? Os alunos tomavam as suas iniciativas e definiam os seus objetivos em conjunto com os seus colegas e professores. Com mais experimentação e colaboração, além das salas de aula, a educação ocorreria numa vasta rede de espaços, envolvendo a comunidade.
Cenário 4. Possibilidade alargada de aprender. E se não existissem mais escolas? A tecnologia dissolve os limites entre a educação, o trabalho e o lazer, possibilitando a aprendizagem a qualquer hora e em qualquer lugar, com base na curiosidade e na necessidade de conectar os alunos.
Captando bem estes "desafios", alguns deles contraditórios, Pedro Salgueiro, que é professor, escreveu um texto de feição futurista, com o título Um mundo sem Escola, que publicou, neste mês, no Ponto SJ.
 


Aqui reproduzo um extracto desse texto que nos remete para... um delírio? Tornar-se ele realidade? Queremos que se torne realidade? Estará já em curso? Iremos a tempo de o reverter? Vale a pena pensar nisto...
"... A Escola terminou completamente em 2040. Depois de décadas de reflexão e muita, muita tinta e discussões públicas, os governos mundiais foram concluindo que a Escola já não servia para este tempo. De ano para ano, o número de professores era cada vez menor, o desinteresse e a indisciplina atingiam níveis impressionantes, tinta e mais tinta, críticas e mais críticas… e uma galopante consciência coletiva difícil de descrever, mas que claramente via na escola uma instituição obsoleta, pelo menos nos países ditos ocidentais.
Alguns países foram reduzindo gradualmente a atividade das escolas ao longo dos anos. No início da década de 30 a maioria das escolas começou a funcionar só da parte da manhã, depois passaram a ser só utilizadas para as disciplinas científicas que necessitavam de laboratórios e outros equipamentos. Até que, em 2037, a Finlândia decretou o encerramento das suas escolas. No ano seguinte, seguiram-se países como a França, os EUA e a Alemanha, entre outros. Em junho de 2040 terminou a atividade da última escola no nosso país..."

O ASSOMBRO

Ao Onésimo, 
bom amigo e bom perscrutador 
 
É no assombro que tudo começa.
É ele que nos abre todas as portas.
Não existe obstáculo que impeça 
o assombro de escancarar comportas.

Assombrar-nos é vermos para além
do exíguo espaço em que estamos.
Espantar-nos é votar desdém
ao pequeno reino em que moramos.

O assombro é a sala de espera
dos fazedores do conhecimento.
O assombro desvela na quimera 

a luz nova e forte de um portento.
O assombro desflora terra virgem,
penetrando, de tudo, a origem.

Eugénio Lisboa

Quatro sugestões de leitura a quem toma medidas para a educação

A quem com responsabilidade na educação escolar, seja a nível internacional, nacional ou local, declara e toma medidas que contribuem para
substituir os professores por toda uma panóplia de ferramentas digitais ou lhes atribui a tarefa de as gerir e complementar,
negar ou desvalorizar a sua função de ensino em prol da de tutor, mentor, inspirador, coach... 
descuidar a sua formação, a qual não pode ser menos do que exemplar e se associa, necessariamente, a uma selecção séria para entrada na profissão, 
desvalorizar o seu trabalho, permitindo, até, que quem não é professor o realize...
recomendo, vivamente, que leia o que faz questionar a "cartilha" vigente, o que decorrer de um pensamento honesto; o que estiver baseado em argumentos racionais, o que trouxer ideias razoáveis, o que incomodar... Leia e pondere, claro!

Deixo quatro sugestões de obras fáceis de encontrar, esperando que as frases que delas seleccionei sejam suficientemente apelativas à abertura das suas páginas.
“Em 1848, Charles Dickens escrevia «Por vezes ouvimos falar de um processo de danos contra o médico incompetente que deformou um membro partido em vez de o tratar. Mas o que dizer das centenas de milhares de espíritos que foram deformados para sempre pelos inaptos insignificantes que pretendiam formá-los." 
Thomas De Koninck, filósofo e professor. 
In A nova ignorância, Lisboa: Edições 70, 2003, 11. 

“Devo dizer que acho não só justificável como ainda e, principalmente, necessária e honesta a severidade em qualquer exame para professor. Para se salvar um homem podem-se perder mil (…) entregam-se centenas de crianças a um incompetente. Temos, portanto, de exigir do júri que critique, que diga tudo o que entende que deve ser dito."
Sebastião da Gama, professor e poeta.
In Diário, Lisboa: Ática, 1958/1993, 95-96.

“A educação é uma moldagem do homem pelo homem, uma contribuição da substância. Se abandonarmos uma criança, é possível, se ela encontrar um meio natural onde se possa alimentar, que o seu corpo se desenvolva, mas o crescimento orgânico não é acompanhado por um crescimento mental.”
George Gusdorf, filósofo e professor.
In Professores para quê?. Lisboa: Morais Editora, 1963/1967, 38.

“Ensinar com seriedade é lidar com o que existe de mais vital num ser humano. É procurar acesso ao âmago da integridade de uma criança ou de um adulto. Um Mestre invade e pode devastar de modo a purificar e a reconstruir. O mau ensino (...) arranca a esperança pela raiz. O mau ensino é, quase, literalmente, criminoso e, metaforicamente, um pecado. Diminui o aluno, reduz a uma inanidade cinzenta a matéria apresentada (…) [são raros os professores que têm consciência do que está em jogo quando ensinam], a maioria daqueles (…) a quem pedimos orientação e exemplo na academia, pouco mais são que “amigáveis coveiros.” 
George Steiner, crítico literário e professor.
In As lições dos mestres, Lisboa: Gradiva, 2011, 25.

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

PARA SE ACEDER AO ENSINO, "HABILITAÇÃO CIENTÍFICA SÓLIDA" SIGNIFICA "MÍNIMO DOS MÍNIMOS"?

Por Cátia Delgado 

“... em vez de fazermos uma lista em função da designação dos cursos, 
o que vamos ver é se, em número de créditos nas diferentes áreas científicas, 
têm créditos que habilitam ou que conferem 
uma habilitação científica sólida para se poder leccionar”.
Ministro da Educação, 2022.

[Na continuação de textos anteriores: aquiaqui e aqui]

Na verborreia da "educação do futuro", sobressai o elogio do professor, o reforço da sua formação e a (re)valorização da sua profissãoPortugal tem sido um particular entusiasta dela, na política, nas academias, nas escolas, na comunicação social, etc.

Veja-se agora a ironia: nas últimas semanas, assistimos à legitimação legal do recrutamento de professores a partir de critérios mínimos, em tudo contrários a essa verborreia.

Disse-se inicialmente que o recrutamento ficaria muito localizado em disciplinas para as quais não há Mestrado em Ensino (ciclo de estudos que confere qualificação profissional), como é o caso da Informática. Mas, Clara Viana, jornalista que costuma fazer bem o "trabalho de casa", num artigo muito recente do Público ("Patamar mínimo de formação é o critério para contratar novos professores de Português e Inglês"), mostrou que Português e Inglês (áreas disciplinares em que existem esses mestrados), estão numa situação crítica. 

À data de hoje, são já 178 os horários em oferta de escola, para os quais não há candidatos profissionalizados disponíveis para leccionar no ano letivo que começa daqui a poucos dias. Na sua maioria são horários da área da Informática, mas também de Português, Inglês e Geografia, sobretudo na zona de Lisboa e Vale do Tejo. 
 
Para ocupar um desses horários, bastará a um licenciado pós-Bolonha, ter reunido, nalguns casos, entre 60 a 80 ECTS (Sistema Europeu de Transferência de Créditos), na área disciplinar a que se candidata, o que corresponde a pouco mais de um ano de formação científica específica em instituição de ensino superior.
Por exemplo, no grupo de recrutamento:
- 330 (Inglês) são requeridos 60 créditos para leccionar Inglês;
- 300 (Português) são requeridos 80 créditos para leccionar Português
A consulta da legislação que estabelece a habilitação profissional para a docência (Decreto-Lei n.º 79/2014, de 14 de maio) permite compreender a determinação dos ECTS. Seguindo a referida notícia, para se ingressar em Mestrados em Ensino de Português e de Inglês do 3.º Ciclo do Ensino Básico e do Ensino Secundário, são necessários, no mínimo, 120 créditos (sendo 60 na área de Inglês e 80 na área de Português).

O projeto do despacho que especifica os créditos requeridos nos diversos grupo de recrutamento será alvo de negociação com os sindicatos de professores, a partir de amanhã, não se esperando, porém, grandes alterações.

Estamos face a um precedente de desvalorização da formação de professores e da profissão docente a que não vemos retorno à vista, dadas as medidas que se lhe têm associado, nomeadamente, a "profissionalização em serviço", que tende a ser em regime de ensino "a distância", na modalidade de e-learning.

Num quadro tão preocupante e desanimador, não podemos deixar de perguntar (e o Ministério da Educação deveria responder sem subterfúgios): para se aceder ao ensino, "habilitação científica sólida" significa "mínimo dos mínimos"?

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

DISTÂNCIA

A nossa vida é feita de lonjura,
ficando quanto queremos a distância.
Por todo o lado se tece conjura
que ao desejo trava, mesmo a infância.

A vida recusa quanto promete
e, se dá o que dá, é com medida.
A plenitude do sonho remete
pra outra vida nunca acontecida.

A força do desejo é contida
por muralha chinesa reforçada:
nos poderes que podem, está retida

a raiva que trava o doce à vida.
Mas vale, de Sísifo, o penedo
empurrar, à vida não tendo medo.

Eugénio Lisboa

Tudo adivinhei no Bom Retiro

Tudo adivinhei no Bom Retiro,

Nesse sol que trepa a uma ipomeia,

Nesse poema purpúreo

Murmurado pelo mirífico

E calcário monte,

Se retirar o teu coração,

O teu quarto ao meu defronte

E o chão das tuas águas,

As águas caindo de uma fonte. 


EVITAR EDUCAR PARA NÃO DOUTRINAR?

Ao artigo de António Barreto, saído no Público de dia 13 com o título “Escola, cidadania e democracia”, respondeu, no dia 18, no mesmo jornal, Francisco Teixeira, professor do ensino secundário, doutorado em Filosofia (cf. página 7 na edição em papel ou aqui).

Antes de lhe "passar a palavra", devo dizer que compreendendo, de alguma forma, a tese que me parece ser a que António Barreto defende, tenho dificuldade em identificar as premissas que invoca para a sustentar. Elas não são claramente expressas nem explicadas.

A tese será a seguinte: "educar" é uma coisa, "doutrinar" é outra. Daqui resulta que a escola pública deve "educar", não pode "doutrinar".
[Esclareço sou a "a favor" de se educar para a cidadania na escola. Melhor, não poderia deixar de o ser, dado que toda a escola, desde a Antiguidade até ao presente, que assuma a sua vocação educativa, preocupa-se em educar para a cidadania. Essa escola, reconhece não ser possível educar à margem de valores éticos, universais. Educar para a cidadania é, pois, em rigor, educar eticamente].
Contudo, António Barreto perde-se nessa (que será a sua) tese. Defende uma escola "livre" de valores (éticos), recusando-lhe, por inerência, a função educativa. E, assim, dá terreno a ganhar ao "doutrinamento" (ou seja, à manipulação do outro, em função da ideologia que interessa a determinados grupos) mas também ao "alheamento" (ou seja, a desresponsabilização pela formação do "bom carácter" e, em última instância, pela pessoa e pelo mundo).

Deixando de lado as contradições patentes no texto do sociólogo e identificadas por Francisco Teixeira, sublinho - agora sim - o que, das palavras deste último, se me afigurou deveras importante para se pensar a educação para a cidadania em contexto escolar.

1. A impossibilidade de educar (para a cidadania) num cenário de neutralidade axiológica, pois educar implica sempre escolhas, ainda que estas possam ser mais ou menos conscientes. Convém que sejam conscientemente orientadas, como disse acima, por valores éticos:
"... escreve que «a escola não deve (…) condenar ideias», no que diz respeito a sistemas, natureza dos regimes políticos ou à história da liberdade e da tirania. Primeiro (...) se eu considero a história da liberdade e da tirania estou, naturalmente, a (...) “condenar” umas ideias e não outras, incluindo quando estou a favor da tirania e contra a liberdade.  
(...) ensinar o que foi o Gulag ou a Shoah sem os valorar, e antes, quiçá, justificando-os em lógicas milenaristas e escatológicas emancipatórias, como há quem o faça! (...) explicar o fascismo português sem o valorar, sob perigo, imagine-se, de doutrinação democrática." 

2. Educar para a cidadania, no caso, para um valor ético que a integra, a democracia, implica um trabalho pedagógico-didáctico específico:

"Como com muitas outras coisas, também na democracia o exemplo e a prática são decisivos na aprendizagem (...) É que se a escola for democrática estará a ensinar a democracia e a formar consciências.  
Mas o exemplo não chega como instrumento de aprendizagem democrática profunda. Como com muitos outros saberes, as aprendizagens práticas e implícitas devem ser acompanhadas de aprendizagens explícitas, teóricas e reflexivas, suscetíveis de compreensões mais profundas, mais complexas e de maior alcance cognitivo." 

3. Nesse trabalho, são de especial importância as “artes e as letras”, as quais António Barreto mistura com «jogos» e considera poderem ser relegadas para «fora das horas de aulas». Ora, as disciplinas associadas às artes e letras, se devidamente reconhecidas e programadas, encerram um enorme potencial em termos de educação axiológica. A sua secundarização, que, está, de facto, a acontecer é uma tragédia também a este nível:

(...) o que eliminaria do currículo disciplinar as disciplinas de Português, Filosofia, História, Desenho, etc. (...) fazendo recuar a humanidade para as suas cavernas mais recônditas. 

António Barreto é uma voz conhecida e prestigiada na sociedade portuguesa, pelo que, se me permite, deixo-lhe a sugestão de voltar à sua tese e aos argumentos que avançou. Em última instância, eles podem fazer concluir que, para não doutrinar, há que evitar educar. Voltar a pensar pode trazer uma nova luz, no caso, mais consentânea com os desígnios da escola pública.

terça-feira, 23 de agosto de 2022

NA SEQUÊNCIA DA PUBLICAÇÃO DAS NOVAS REGRAS DE ACESSO AO ENSINO...

Disponibilizo aqui o último texto que escrevi para o Ponto SJ - Portal dos Jesuítas Portugueses.



Brevíssima história da extinção do professor

Por Cátia Delgado 

Em alguns momentos, o professor foi um mestre. 
Mas passou a tirano, a opressor.
Diz-se que o conhecimento que transmite formata as crianças e os jovens, pois a instrução é fastidiosa, corta-lhes as asas da criatividade.
Organizações cheias de boa-vontade vêm defendê-los, limitados e sobrecarregados que estão pelo sistema. Quem diz sistema, diz professor, tão vincadamente tradicional que se tornou retrógrado.
E, contudo, as crianças e os jovens querem aprender.
Mas não assim, não da forma como o professor ensina!
Querem uma educação ativa, moderna, mas o professor não lhes serve.
Então, buscam-se soluções para esta tão grande divergência.
A OCDE antecipa que a educação pode fazer-se sem professores [1].
Mas a sua visão é considerada um exagero, um quase devaneio futurista.
Isto declara a UNESCO, que quer transformar os professores: devem ser mentores, organizadores de encontros pedagógicos partilhados (antigas “aulas”), mediadores de diálogo [2].
Ambas dizem não haver motivo para preocupações porque o papel do professor está salvaguardado.
Outras entidades entram em cena. A exemplo, a Teacher Task Force, sob a alçada da mesma UNESCO, com a colaboração da OCDE, afirma ser preciso proteger os professores e, para tal, pede auxílio, sob a forma de investimento, a fundações e empresas com interesses nos vários impérios mercantis, sobretudo no digital [3].
Ações concertadas são mais benéficas, nunca perniciosas e... “acredita-se” que o professor continuará a merecer o seu lugar.
Multiplicam-se as plataformas de formação de professores, que prometem certificação para a docência em tempo recorde e com pouco esforço [4].
Não, assegura-se, elas não retirarão protagonismo às instituições de ensino superior "credíveis", que terão o seu valor preservado e o seu lugar garantido.
Proliferam, também, as plataformas e academias de aprendizagem que, redondamente, propagandeiam: sem professores é que é!
Sem eles, a aprendizagem é mais democrática, mais equitativa, chega a ser mais inclusiva.
Neste "não-lugar", dizem, cada um aprende à sua maneira, consoante os seus gostos, interesses e preferências. E muito mais individualmente, comodamente, colaborativamente...
E proficuamente: chega-se a todos, respeitando as peculiaridades de cada um, pois a cada um cabe definir o seu próprio trajeto [5].
Esta é uma realidade próxima, mais próxima do que supomos, mas só será de "qualidade" para alguns, para um nicho, certamente, e daí não passará. 
Enquanto isto, o que cai em desuso é a proeza de ser professor.
_______________________
NOTAS
[1] “O profissional docente desaparece nesta sociedade onde ricas oportunidades de aprendizagem estão disponíveis a qualquer hora e em qualquer lugar e os indivíduos tornam-se ‘prosumers’ (consumidores profissionais) da sua própria aprendizagem” (OCDE, 2020; OCDE, 2022). 
[2] “Os professores e educadores devem tornar-se mentores das crianças que ensinam” (UNESCO, Global Education Coalition, s.d.). “Os professores, como mestres organizadores de encontros educacionais”; “mestres organizadores de ambientes, relações, espaços e tempos educacionais” (...) “serão naturalmente protagonistas centrais na construção de processos de diálogo e inovação, aproximando e convocando outras pessoas e grupos” (UNESCO, Reimagining Our Futures Together, 2021, pp. 90, 92, 152).
[3] “Para que os sistemas de ensino se transformem no período pós-pandemia, são necessários investimentos significativos no fortalecimento da profissão docente”; “a International Task Force on Teachers for Education 2030 apela urgentemente aos governos nacionais, à comunidade internacional e aos financiadores da educação – públicos e privados – que invistam” (TTF, 2021). 
[4] “Oferecemos o seu curso através de uma plataforma online onde pode fazer login a qualquer momento.” / “Uma solução acelerada” (Teacher Ready, University of West Florida). “Projetado para ser rápido, flexível e acessível, o programa de certificação de professores da American Board é totalmente online e individualizado” (American Board for Certification of Teacher Excellence). 
[5] “Uma nova forma de aprendizagem, para o hoje e amanhã.”/ (...) “rompemos definitivamente com as práticas do passado para oferecer uma educação conectada com as necessidades e desafios do século XXI.” / “Aprenderá de todos e com todos, pois todos temos algo a aprender e a ensinar. Aqui, não vemos o tutor como quem mais sabe, mas sim como quem orienta e guia o jovem para descobrir e assim crescer.” (Open Learning School). “Da mesma forma como não nos referimos aos nossos alunos, como alunos, também não nos referimos aos nossos professores, como professores.” / “Os coaches de aprendizagem são os mentores que orientam e apoiam os alunos no seu processo de aprendizagem.”/ “Eles inspiram, apoiam o processo de aprendizagem autodirigido” (Brave Generation Academy).

COMO NOUTROS CASOS, TAMBÉM NESTE É PRECISO DESTAPAR A OBJECTIVA

Por Gonçalo Coimbra


Na edição de 13 de Agosto, saiu no jornal Público um artigo do sociólogo e ex-ministro António Barreto, com o título “Escola, cidadania e democracia”. O texto está repleto de equívocos, que são também provocações a quem queira pensar esta tríade. 

Concentro-me apenas em dois equívocos. 

O primeiro é António Barreto pensar que a escola pode ser um espaço axiologicamente neutro, o que é impossível. A recusa de tomar uma posição acerca dos valores a eleger para educar é, em si mesmo, uma tomada de posição. Não há escola sem valores. 

E se, como sociedade, concordamos que existem valores que, por dignificarem o ser humano, – contando-se, entre eles, a liberdade, a igualdade, a justiça, a verdade, etc. – , são estimáveis e devem estimar-se, eles devem ser transmitidos na escola. 

A educação desses valores, ou para esses valores – que por valerem para todos são universais – , dá corpo à formação ética, uma componente essencial da educação. 
“A escola poderá, nas suas disciplinas de História, aprofundar a evolução dos sistemas políticos, a natureza dos regimes, a história da liberdade e da tirania, mas não deve impor ou condenar ideias.” 
Aqui podemos ver que assunção de escola axiologicamente neutra leva António Barreto a afirmar algo que toca o ignóbil: nessa instituição – educativa, por excelência – não se deve condenar nem o fascismo, nem o nazismo, nem o estalinismo (os “nem” seriam infinitos). 

Defendo, pelo contrário, que a escola tem o dever de condenar todas as ideias e práticas que atentem contra a dignidade humana. 

Omitindo-se de o fazer, não cumpre, com certeza, o seu principal propósito – o de educar, tendo em vista a perfetibilidade do ser humano. 

O segundo grande equívoco, que deriva do primeiro, parte da presunção de que a escola é um espaço apolítico, onde “não se deve ensinar a democracia”, “nem formar consciências políticas”. 

Começo por esta última frase. Parece óbvio, mas convém explicitá-lo – a escola é um espaço primordial para a formação das consciências. Que elas sejam políticas, mais do que desejável, é inevitável. Aprender a pensar é um ato político e o desenvolvimento da consciência (política) é uma etapa fundamental para o desenvolvimento e emancipação intelectual das crianças e jovens. 

Mas retomemos a citação. Para António Barreto, a escola 
“não deve ensinar a democracia”,
pois estaria a incorrer no pecado capital da educação: o doutrinamento. Mas, logo se contradiz:
“Da democracia, a escola deve limitar-se às regras e dispositivos constitucionais relativos ao sistema e aos órgãos do poder, aos direitos e deveres dos cidadãos, às garantias das liberdades, à participação eleitoral, ao equilíbrio dos poderes entre instituições, ao acesso à justiça e à defesa dos cidadãos perante ameaças de outros ou do Estado.” 
Ou seja, o autor do artigo acha que se deve ensinar democracia na escola, desde que se restrinja aos tópicos por ele selecionados. E aqui falha no alcance da educação para a democracia. 

Parece, por um lado, não entender que temas como “os direitos e deveres dos cidadãos” ou “a participação eleitoral” se enquadrem perfeitamente no ensino da democracia. E, por outro, confundir ensinar democracia com doutrinamento.

Ensinar a democracia é, por princípio, o contrário de doutrinação, não fosse a democracia esse sistema que acolhe o pluralismo de perspectivas, de mundivisões. A democracia não só é tolerante, muito no sentido que Popper lhe imprimiu, como dá espaço às vozes que lhe são contrárias e antagónicas. 

Ensinar a democracia é também falar dos seus defeitos e problemas. Duvido que algum professor tenha dito alguma vez: “A democracia é um sistema perfeito, não há nada a melhorar”. Mais do que um sistema político, a democracia é um “modo de vida”, como bem observou John Dewey. Para as sociedades democráticas, este modo de vida é aquele nos permite, ao mesmo tempo, coexistir pacificamente e potenciar ao máximo o progresso, rumo a uma sociedade mais justa, livre e igual.

A democracia é sem dúvida um legado de que beneficiámos e que deve ser preservado e transmitido. Mas é também um projeto, em permanente construção e, por isso, deve ser renovado e melhorado. 

A escola pode (e deve) ser precisamente o lugar onde começa essa renovação. 

A partir da matéria-prima, que é o conhecimento, ao fomentar a atitude crítica e o pensamento livre, a escola abre a possibilidade aos mais jovens de realizarem qualquer coisa de novo, como disse Hannah Arendt. E, há mais de cem anos, John Dewey disse que o sucesso da democracia dependerá sempre do sucesso da educação dos seus cidadãos. 

Atualmente, o ressurgimento de forças populistas e extremistas, o imparável rolo compressor da lógica neoliberal, o uso maquiavélico das novas tecnologias e, não esquecendo, a crise climática, são problemas que ameaçam gravemente a democracia e que renovam a importância da afirmação de Dewey. 

A predisposição para a democracia não nasce connosco, tem de ser incutida.

E o espaço público mais bem preparado para essa missão é precisamente a escola. A formação da vontade democrática é imprescindível, se quisermos preservar esse modo de vida que é a democracia. 

Curiosamente, o texto do ex-ministro é inserido na rubrica “Grande angular”. Talvez António Barreto se tenha esquecido de destapar a objetiva.

Gonçalo Coimbra

Maria Callapez - Elogio ao Plástico

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

O REINO DA ESTUPIDEZ

O diálogo com a estupidez
estraga a vida e corrói a alma.
Mesmo um estúpido de cada vez,
à doce paciência, leva a palma.

A estupidez é um muro de betão,
que fica diante de nós, teimoso:
não há argumento ou empurrão,
que mova um imbecil meticuloso.

O estúpido não sabe argumentar,
porque isso fica além das suas posses:
por isso, mais não faz do que alinhar

patetices, como se fossem doces.
A estupidez consome tempo e espaço e,
ao saber, prefere o estardalhaço! 

Eugénio Lisboa

Paradoxos de uma educação global: o que pode e deve a tutela decidir?

Por Cátia Delgado

Em texto anterior (link), disse que o nosso Ministro da Educação parece saber o que beneficia a Educação, mas não quer ou não pode fazer valer o que sabe. A tendência de constituição de um sistema educativo global é real, de modo que as decisões que cabem aos Estados veem-se cercadas de constrangimentos.
 
A verdade é que estas decisões dependem substancialmente de duas estratégias promovidas por grandes instâncias extragovernamentais (vg. OCDE, UNESCO, União Europeia): 
- a pressão para que os sistemas nacionais não fiquem para trás, com a consequente marginalização nos círculos europeus e mundiais; e 
- um certo tipo de emulação, muito publicitada, àqueles que se revelam “bons alunos” na aplicação das suas “recomendações”. 
A influência social faz o resto. Desta, destaco duas forças que se conjugam na perfeição: 
- a promoção, tendencialmente acrítica, dessas estratégias pela comunicação social
- e a força competitiva do mercado, que reclama da educação respostas eficazes e eficientes. 
Juntas, tais forças, levam-nos a crer que, se a sociedade evolui e se moderniza num certo sentido, então a escola tem de evoluir e modernizar-se exatamente no mesmo sentido

Esquecemos (ou afastamos de modo deliberado) as suas funções educativas basilares e adotamos o seu contrário. E assim contribuímos – todos acabamos por contribuir – para a progressiva debilidade do sistema, que, temo bem, se revelará catastrófica a breve trecho. 

Por certo, os Ministros da Educação estão conscientes disto mesmo, mas, admitindo que tenham as melhores intenções em termos de política nacional, o seu compromisso primeiro, que é para com a educação da geração que está no sistema, não se vê vingar nas medidas que firmam. 

Dou um exemplo desse dilema, recorrendo às palavras do nosso atual Ministro: 
se dissermos aos professores, em todo o mundo, que necessitamos de mudança, isto pode ser mal interpretado. Pode ser entendido como: ‘Porquê? Não estou a trabalhar bem?’ (...) Esta mudança é necessária porque há mudanças ecossistémicas por todo o mundo e novas exigências colocadas a uma profissão que, globalmente, funciona bem” (João Costa, in The Transforming Education Pre‐Summit, UNESCO, 2022).
O próprio percebe o contrassenso. E di-lo! Como anunciar a profissionais que “trabalham bem” que têm de mudar (sem motivo substancial para tal)? Essa é a preocupação que manifesta. 

As justificações são de vária ordem, desde a inevitabilidade (There Is No Alternative, TINA), à tendência de modernização (que temos que seguir, pelo sentido competitivo com outros países!), passando pelo medo de ficar de fora (Fear Of Missing Out, FOMO).

E assim, sub-repticiamente, se encontram justificações para legitimar os milhões envolvidos na corrente reforma para a modernização da educação (600 milhões, é o número!).

sábado, 20 de agosto de 2022

IPSISSIMA VERBA A SOCIOLOGIA TAMBÉM LEVA AO CRIME

Por Eugénio Lisboa

He knows nothing and he thinks that he knows everything.
That points clearly to a political career.
George Bernard Shaw, MAJOR BARBARA

A epígrafe acima, da autoria do grande dramaturgo irlandês, George Bernard Shaw, diz uma verdade universalmente reconhecida, mas é uma verdade incompleta, porque o não saber muito de coisa nenhuma e ter um saber ridiculamente residual de uma infinidade de coisas aponta não só para uma carreira política, mas, também, para uma bem sucedida carreira de sociólogo.

Lembro-me de vários sociólogos de língua portuguesa – António Barreto, Maria Filomena Mónica, Boaventura Sousa Santos, entre outros, menos famosos – que se dão ares de grande autoridade, a propinarem, desde assuntos de lingerie, até temas mais transcendentes como teologia ou Física Quântica. 

Estou a fazer caricatura, mas esta não anda longe da verdade. Um deles teve até uma muito vendida obrinha sobre filosofia da ciência, que foi eloquentemente demolida pelo Professor de Física, António Manuel Baptista. Pôde, no entanto, consolar-se, por ter tido a defendê-lo o grande especialista, nessa área, Eduardo Prado Coelho... 

Seja como for, o arco de saber, que lhes dá fama e dinheiro, não conhece limites. A nada do que o homem criou, são alheios. E, sobretudo, opinam com uma enorme e invejável assertividade. Aliás, nunca opinam: afirmam, como foi agora o caso de António Barreto, num notório artigo sobre educação, publicado no Público, de sábado, dia 13 (Agosto), e admiravelmente escrutinado, no mesmo diário, no dia 18, quinta feira, pelo professor do ensino secundário, Francisco Teixeira.

Com a assertividade pomposa dos ignorantes atrevidos, Barreto faz propostas que constituem algumas das maiores enormidades que até agora se escreveram sobre o tópico da educação, propondo-se despi-la de valores essenciais, retirando-lhe, anacronicamente, cadeiras nucleares (as artes e as letras deveriam, segundo este sábio, ser ensinadas “fora das horas de aulas”!

A proposta de se retirar da escola o ensino do que seja a democracia, aproxima Barreto dos teóricos mais abalizados do partido de Ventura. Grandes chefes de empresa chegaram à conclusão de que o que faltava aos seus engenheiros, para subirem pelo organograma acima, era uma dose bem necessária de cultura geral. 

O grande engenheiro electrotécnico, que foi o Professor José Ferreira Dias, era um homem de grande cultura humanística, como era Robert Oppenheimer, o coordenador e gestor de Los Alamos, como era Albert Einstein. Como foram os Professores Mira Fernandes, grande matemático português, ou António da Silveira, Professor de Física teórica, do Instituto Superior Técnico. O meu amigo José Tiago Oliveira, grande Matemático português, tinha uma fenomenal cultura humanística, como a teve um Bento Jesus Caraça.

Mas Barreto descobriu agora uma velha pólvora, destruída pelo tempo e pela humidade… A incapacidade de pôr em dúvida as suas tenebrosas “hipóteses” podem levá-lo aos mais clamorosos dislates. 

Duvidar é o ingrediente essencial do pensar. “Duvidemos mesmo da própria dúvida”, aconselhava o sage Anatole France. E acho que Sacha Guitry ia mais longe, ao propor, ironicamente: “Dê-se a Deus o benefício da dúvida”. Há pouco tempo, abonando-me de uma famosa peça de Ionesco, escrevi e publiquei um texto intitulado “A Filologia leva ao crime”. 

Posso agora dizer que a Sociologia, às vezes, também. Tende a ignorar a farpa do velho Voltaire quando observava que a dúvida era um estado muito desagradável, mas que, em compensação, a certeza era ridícula. Os nossos sociólogos estão cheios de certezas e, por isso, fazem as figuras que fazem. 

Eugénio Lisboa

OS IDEÓLOGOMANÍACOS

Por Eugénio Lisboa

Um ideólogo maníaco é aquele que mete ideologia a martelo, mesmo nos textos mais inocentemente líricos.

Um maníaco ideólogo é aquele que, ao ler o imortal soneto de Camões – “Alma minha gentil que te partiste” – observa que Camões, sim, dedicou este poema à memória da amante chinesa que morreu afogada na foz do rio Mekong, mas logo acrescenta que o poeta preferiu salvar o manuscrito dos Lusíadas, a salvar a amante chinesa, por ser racista. 

Um maníaco ideólogo vai escarafunchar um soneto de amor de um poeta africano, notando, acintosamente, que o soneto é uma invenção de brancos e que o negro, ao escrever o dito soneto, por acaso, muito belo, se deixou colonizar pelo imperialista branco. Nada escapa ao olho de lince do ideólogo. (Não invento nada: isto já foi dito por um catedrático americano de estudos africanos de língua portuguesa).

Um maníaco ideólogo dirá, sem pestanejar, que o belíssimo poema de Reinaldo Ferreira – “Oh! Tarde de sábado britânica” – se refere a um Moçambique só de brancos, ignorando completamente os negros. 

Um ideólogo maníaco condenará o ROMEU E JULIETA, de Shakespeare, por referir-se apenas ao amor heterossexual, ignorando todas as outras variantes legítimas do amor. 

Um maníaco ideólogo descobrirá que Fernando Pessoa foi a Durban aprender a opressão imperialista do preto pelo branco, que o levou direitinho à infame MENSAGEM.

Um ideólogo maníaco dirá que Júlio Dinis escreveu as PUPILAS DO SENHOR REITOR, por estar apostado na perpetuação de uma sociedade ruralista retrógrada, impedindo assim o aparecimento de um operariado esclarecido e revolucionário.

Um maníaco ideólogo dirá que Antero, ao escrever os SONETOS, cheios de preocupações metafísicas e bizantinas, estava, no fundo, a trair o jovem Antero turbulento e progressista, das Conferências do Casino e das ODES MODERNAS, que eram má poesia, mas cheia de boa doutrina bem intencionada. E acrescentaria que, no fim de contas, Antero não passava de um aristocrata rico e decadente e que isso acabara por vir à tona, nas labirínticas e inúteis congeminações metafísicas que povoam os SONETOS. Se tivesse vivido, teria provavelmente aderido à Igreja Católica.

O maníaco da ideologia observará que toda a obra de Bocage deverá ser lida à luz do abjecto “Já Bocage não sou”, no qual se rende a tudo quanto era cobardemente conformista, incluindo a Santa Madre Igreja. O ideólogo maníaco não está nada interessado em verificar – nem é capaz! – se o soneto que lê é uma boa obra de arte, a falar de obsessões de todos os tempos. Ele está apenas preocupado em escarafunchá-lo, para ver se encontra, lá dentro, um verme reacionário que importa denunciar e espezinhar. 

Toda a nossa história literária é assim revisitada pelo ideólogo maníaco, que virá depois esclarecer-nos sobre os alçapões decadentes de falsos grandes escritores, indicando, com grande clareza, aqueles que podem ser abençoados e aqueles que devem ser queimados.

As ideologias fortes e assertivas sempre gostaram muito do fogo purificador e até chegaram a enterrar vivos os que se não conformavam.

Gente desta ainda anda por aí e é conhecida por ter sempre boa consciência, mesmo quando queima, tortura e mata. 

E são assim porque sabem que estão do lado certo da História. A Inquisição também estava e sabia que estava. Les beaux esprits… 

Eugénio Lisboa

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

SONETO: ALGUMAS OBSERVAÇÕES

O soneto, na sua densidade,
é inimigo da incontinência.
O soneto é só necessidade
de falar pouco, porém com ciência

Falar pouco para poder dizer muito,
em só catorze exigentes versos,
é, do soneto, o espartano intuito:
com pouco, saber fazer universos.

O soneto, ao saber comprimir,
dá força explosiva ao dizer:
o soneto é arte de exprimir,

tanto quanto se poderá fazer,
a sabedoria de um compêndio,
à custa de muito pouco dispêndio.

Eugénio Lisboa

Duas realidades paralelas do sistema educativo: da intenção à obrigação

Por Cátia Delgado

aqui mencionei o paradoxo em que está emaranhada a implementação das tecnologias no sistema educativo. Ora se defende o progresso e a modernização, por via da capacitação digital de escolas, professores e alunos, ora se valoriza o papel dos “recursos humanos”, com frases terminantes, como esta do Ministro da Educação português: 
“Aprendemos lições com a covid e a principal foi que nenhuma máquina substitui um professor” (João Costa, in The Transforming Education Pre‐Summit, UNESCO, 2022). 
No discurso em que a frase surge, ao qual aludi aqui, o Ministro é perentório, no que toca à digitalização em curso: 
“A covid foi um abre olhos para isto. Podemos ter a tentação de dizer que agora que temos máquinas, os professores poderão ser dispensáveis. Mas não são dispensáveis nem descartáveis. Isto leva-nos a promover uma boa diferenciação entre o que é uma ferramenta e o que é um propósito (...). O digital é uma ferramenta para melhor aprendizagem, não é um objetivo de aprendizagem.”
A inovação é uma ferramenta e não um objetivo, nem um propósito. Se estes termos não estiverem claramente separados, podemos estar a enganar-nos a nós próprios.”
Pois, no decurso explicativo do processo de desmaterialização da avaliação externa, o IAVE (Instituto de Avaliação Educativa), no documento de apoio a tal investida (“O DAVE”) de forma não menos categórica, contradiz a premissa acima, referindo: 
(...) “torna-se fundamental que as escolas e os processos pedagógicos possam também evoluir e modernizar-se, usufruindo das vantagens que as omnipresentes inovações tecnológicas possibilitam, sendo protagonistas de uma verdadeira transformação digital no âmbito pedagógico e didático, mas igualmente e em particular nos processos avaliativos” (IAVE, 2022, s.p.).
Se, por um lado, o digital é apresentado como uma ferramenta para promover e facilitar o trabalho dos professores e a aprendizagem dos alunos, por outro lado, o mesmo digital torna-se um propósito da educação. Passamos a educar para e pelo digital, tornando-se o conhecimento curricular, esse sim, um meio. 

Num outro documento, da República Portuguesa, a denominada “Bazuca” (Plano de Recuperação e Resiliência: Recuperar Portugal, Construindo o Futuro – PRR), o mesmo propósito é explícito: 
“Para além do acesso às tecnologias, é necessária uma transformação no processo educativo e pedagógico. Trata-se de uma nova forma de pensar os canais de comunicação e de ensino-aprendizagem, interpretando o digital para além de um conjunto de ferramentas, mecanismos e apoios técnicos” (p.199). 
Resumindo, as tecnologias devem ser uma ferramenta, não um objetivo nem um propósito (nas palavras de João Costa), porém, os processos educativos têm que modernizar-se, transformando-se por via do digital, que deve ser encarado como mais do que uma ferramenta (na narrativa do IAVE e do PRR). Na ausência de um claro esclarecimento de tais limites, estamos, de facto, a “enganar-nos a nós próprios”, como sugerido pelo Ministro. 

No antagonismo expresso no texto anterior, suspeito que o nosso Ministro sabe o que beneficia a EDUCAÇÃO, mas não quer ou não o pode fazer valer. De facto, na conjuntura atual, que tende para um sistema educativo global, as decisões independentes que os Estados podem tomar para o plano nacional são muito mais complexas e difíceis do que uma abordagem ligeira deixa perceber.

DEMOCRACIA E BOATO

De uma revista que recebi hoje, destaco o artigo acima identificado (ver aqui) que, tendo por pano de fundo a “pós-verdade”, interroga o funcionamento e destino da democracia:

Nele se "analisa o valor da verdade nas sociedades pós-modernas e discute em que medida a verdade se torna abstrata ou de pouca importância (...) debate os desafios enfrentados pela cidadania e como os espaços públicos estão sendo ameaçados pelas novas tecnologias e mídias. Em tempos de desinformação, como a comunicação influencia o exercício da cidadania e, especificamente, o voto e a concretização de políticas públicas. A ignorância e a informação, unem-se a poderosas estruturas manipulativas radicadas em instrumentos tecnológicos."

Alerta também para que: 

"A instrução cidadã e o acesso à educação de forma ampla e de qualidade são condição sine qua non para que o entendimento esclarecido seja estabelecido e as notícias falsas sejam combatidas. O exercício democrático está intimamente ligado à capacidade de os indivíduos desenvolverem um raciocínio-crítico sobre sua realidade material, diferenciando fatos objetivos de opiniões pessoais."

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Um exemplo do que poderá ser "formação científica sólida" de quem (agora) pode "dar aulas"

Na sequência de textos anteriores (aqui, aqui, aqui, aqui), deixamos a ligação para uma notícia acabada de sair no Jornal de Notícias (ver aqui). Nela destacamos o exemplo dado pelo jornalista, que se nos afigura uma possibilidade bem real de "formação científica sólida"

"Os créditos académicos (ECTS), sistema reconhecido na Europa, serão avaliados para averiguar se os candidatos têm uma formação científica sólida que os habilite a lecionar determinada disciplina. Com um número suficiente de créditos em informática, que virá a ser especificado pelo despacho, um licenciado em Biologia estará apto para lecionar disciplinas na área das TIC, por exemplo. 

Maria Helena Damião e Cátia Delgado

O que significa efectivamente "olhar para o percurso formativo dos candidatos"

Por Maria Helena Damião e Cátia Delgado

O Ministro da Educação deu hoje uma entrevista à Rádio Observador (ouvir aqui). Na primeira parte, explicou que a alteração da habilitação para "dar aulas”, a habilitação própria, é diferente da habilitação para "ser professor“, a habilitação profissional.

Ora, vejamos: a alguém contratado (ao nível de escola) com habilitação própria, não será exigido que só "dê aulas", ser-lhe-á exigido que seja professor.

Mas se nos concentrarmos só nas aulas, espera-se que esse alguém, que assumirá a tarefa de ensinar (diferente de "dar aulas"), seja capaz de planificar, leccionar e avaliar, acompanhando sempre a aprendizagem... Esta tarefa, pelos conhecimentos e escolhas que requer, não é para qualquer um. 

A menos que se leve à letra a expressão "dar aulas" (de maneira que os alunos não fiquem sem elas, como justifica a tutela) e se recorra ao que se chama "currículo-à-prova-de-professor", disponível em múltiplas plataformas, de fácil acesso.

Após esta nota, vamos ao foco do presente texto, que é o seguinte: conseguimos perceber, agora, o que o Ministro da Educação havia antes dito, sem ter explicado devidamente, o que levantou dúvidas em muitos. Disse ele (ou a imprensa assim reproduziu): "Olha-se para o percurso formativo dos candidatos" (ver aqui).

Na mencionada entrevista, refere que a habilitação de acesso à profissão docente é e vai continuar a ser o Mestrado em Ensino. Contudo, dada a falta de professores no sistema, passa, com a nova legislação, em concurso a nível de oferta escola, a poder contratar-se licenciados pré e pós-Bolonha.

Como o leque de licenciaturas pós-Bolonha (licenciaturas cuja duração é de 3 anos, enquanto o das licenciaturas pré-Bolonha é de 4 ou 5 anos) é mais amplo, procede-se do seguinte modo: em vez de se ter em conta ["apenas", presumimos] a designação dos cursos, atende-se ao conjunto de disciplinas que os candidatos concretizaram relacionadas com a área científica em causa

“... em vez de fazermos uma lista em função da designação dos cursos, o que vamos ver é se, em número de créditos nas diferentes áreas científicas, têm créditos que habilitam ou que conferem uma habilitação científica sólida para se poder leccionar”. 

Notou que, além de licenciados, podem concorrer mestres e doutores detentores de disciplinas/unidades curriculares na área científica a que se propõem. Continua a bastar “uma formação sólida e científica”.

Notou também que há necessidades do sistema que requerem professores profissionalizados e necessidades temporárias a que se dará resposta recorrendo a quem tenha habilitação própria (agora mais alargada). Isso tem-se feito e vai continuar a fazer-se. 

Informou que o Ministério está a rever o modelo de formação inicial de professores, para alargar o número de Mestrados em Ensino e robustecer a Profissionalização em Serviço. Esta última via permitirá que quem esteja a dar aulas com habilitação própria possa fazer a profissionalização. Dela pode também beneficiar quem já deu aulas e pretende voltar ao sistema.

RIMAS PARA UM TEMPO DE GUERRA

Diz-me com que rimas, dir-te-ei quem és.
Há rimas que são bem reveladoras,
porque mostram claramente o revés
das coisas, tornando-se acusadoras.

Dou, como exemplo, a palavra guerra,
que rima com tanta coisa que é feia:
rima – é só um exemplo – com berra,
mas rima igualmente com enterra.

Porque, se a guerra enterra e berra,
é verdade que ela também ferra
e tanta, tanta coisa boa encerra.

A guerra, em tudo o que visa, erra,
deixando revolvida toda a terra.
E até Napoleão perdeu a guerra!

Eugénio Lisboa

Quando de uma guerra já pouco se fala e de outras nada se diz. E, contudo, elas continuam a matar, no local ou à distância.

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Helena Nader - Educação e Ciência Mudam o Brasil

LINHA VERMELHA? POR CERTO FOI UM LAMENTÁVEL ENGANO CROMÁTICO DO SENHOR MINISTRO

Em finais de Maio deste ano dizia o Ministro da Educação, em entrevista às jornalistas Isabel Leira e Joana Pereira Basto, publicada no semanário Expresso:
Perante a falta de professores, foi preciso recorrer à contratação de pessoas sem formação pedagógica nem experiência. Faz ideia de quantos estão a dar aulas nessas circunstâncias?
São casos pontuais. 
Já disse que vai ser preciso rever as habilitações para se poder dar aulas. Os requisitos vão ser menos exigentes? Não. A habilitação para se ser professor é o mestrado e continuará a ser. Isto para mim é uma linha vermelha. A ideia não é baixar os critérios na qualidade científica e pedagógica dos professores, mas alargar as condições de acesso. 
Compare-se o que destaquei acima (com sublinhados e em amarelo) com a medida política agora tomada para contratação de professores ao nível de escola (ver aqui). 

É certo que, aqui, o Senhor Ministro não especifica a habilitação, mas uma coisa é certa: no ano lectivo que começa em Setembro, quem tiver uma licenciatura pós Reforma de Bolonha e sem preparação pedagógica pode ser contratado como professor. 

Petição. MONUMENTO NATURAL DAS PEGADAS DE DINOSSÁURIOS DE OURÉM-TORRES NOVAS

Este é o link para abrir a Petição Pública que poderá ver também na página do Facebook do prof. Galopim de Carvalho: https://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=PT113355

Não se esqueça de confirmar no email.
Vamos levar esta Petição à Assembleia da República.
Se estiver de acordo, assine e partilhe com os seus amigos
São precisas 4000 assinaturas para que o assunto vá ao Plenário da Assembleia da República.
Já temos mais de 1400 assinaturas
Vamos conseguir. Assine e partilhe.
 
Eis o texto da Petição.

MONUMENTO NATURAL DAS PEGADAS DE DINOSSÁURIOS DE OURÉM-TORRES NOVAS

A raridade e o significado geológico e paleontológico desta jazida do Jurássico, com cerca 175 milhões de anos, estão, de há muito, internacionalmente reconhecidos. O seu valor monumental aumenta pelo facto de conter cerca de 400 pegadas de grandes saurópodes, muitas delas bem conservadas e organizadas em 20 trilhos, tendo dois deles mais de 140m. Acresce a estas excepcionais características, a grandiosidade e espectacularidade da jazida, no topo de uma única camada de calcário com 62500m2 de superfície. Todo este conjunto dispõe de uma extensa área envolvente, susceptível de comportar diversos equipamentos complementares. Na posse de um património com tais potencialidades, Portugal pode e deve dar-lhe o tratamento que se impõe.

Assim, numa primeira fase, solicita-se a quem de direito que mande fazer (por entidade competente) um projecto envolvendo, em especial, as componentes científica, pedagógica, lúdica e turística de superior qualidade, a nível internacional, e, numa segunda fase, a sua concretização, na certeza da sua rendibilidade económica, potenciada pela proximidade (10km) ao Santuário de Fátima

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

UMA CAMINHADA QUE JÁ VAI SENDO LONGA

Texto de Galopim de Carvalho: 

Todos os dias me confronto com a disparidade entre o longo caminho que já percorri, com as inerentes limitações e mazelas do corpo, e a juventude, e, por vezes, o adolescente e a criança que nunca deixei de manter e ser. 

Já o disse aqui que, como agora, sentado frente ao monitor, a ver as ideias transformadas em palavras e frases escritas (em Arial 14), não tenho corpo, nem coronárias entupidas pelo colesterol, nem as sequelas de dois AVCs, nem o neurinoma do lado direito do cérebro, nem acentuada deficiência auditiva. 

Decorridos que foram mais de setenta anos sobre a minha vivência alentejana, transporto comigo marcas indeléveis desta região do país. O seu montado de azinho e sobro e as suas planuras de searas ondulantes, ainda verdes em começos de Maio e já a dourar sob o calor de Junho, simbolizam a paisagem que, como é natural, mais se identifica comigo. Esta paisagem faz-me regressar às raízes e nelas está, ainda, a casinha isolada, a que chamamos monte, no cimo de uma ondulação do terreno, branca de cal, com cunhais e ombreiras azul-cobalto e uma grande chaminé fumegante. Lá dentro, como na casa da minha avó, em que fui criança, está o lume de chão e os enchidos ao fumeiro. Nessas raízes estão ainda os cheiros e os sabores das ervas aromáticas, os saberes, os falares e os cantares locais. 

Tantas marcas do Alentejo reflectiram-se nos meus gostos pessoais e profissionais. Os vários livros de ficção e de memórias que escrevi são disso testemunho, do mesmo modo que o são a maioria dos trabalhos que realizei e escrevi como geólogo.

Tudo começou como adolescente curioso de saber, mais amante dos trabalhos que se faziam na cidade e nos campos, do que da instituição escolar de então, que eu achava desinteressante e rígida. Foi no meio rural que despertei para a divulgação científica, um gosto que me ficou e desenvolvi a par de uma vivência, igualmente gratificante, de ensino e de investigação científica na Universidade. 

Sendo um fruto da cidade, sempre me senti melhor no mundo rural. Esta inclinação foi, simultaneamente, causa e consequência de um campismo meio selvagem que pratiquei nessa fase da minha vida, na companhia do meu irmão Mário e de alguns amigos, um campismo ao encontro das herdades, dos montes e das aldeias do concelho de Évora e, também, das suas gentes.

Ao gosto pelo campo, em geral, e pela geologia (uma vocação que, cedo, se despertou em mim, devida a um professor de Ciência Naturais) em particular, juntava-se o do convívio com os camponeses. Com alguns deles troquei os ensinamentos dos meus manuais de estudo com os seus saberes fruto da experiência vivida na natureza e com eles iniciei uma vivência social e política, impensável no meio citadino, a todos os níveis vigiado e censurado, que marcou a minha maneira de estar e ver o mundo. 

Nestas incursões nos campos do Alentejo, conheci, de muito perto, os trabalhos que, nesse recuado tempo, ali se faziam. Do lançar do trigo à terra, em braçadas do semeador, certas e cadenciadas, à debulha, sob o brasido do sol de Verão e do calor não menos intenso da ruidosa locomóvel, entre nuvens de moínha, ao erguer um “castelo” de palha em cima de uma carroça, tudo o que vi e experimentei me deu a noção exacta do valor do pão. E esse tudo foi presenciar o abrir dos regos, um trabalho duríssimo de homem só, de mão firme na rabicha do arado, de aivecas bem fundas, puxado por possantes parelhas de mulas; foi a monda da primavera, um trabalho de mulheres novas e velhas, tagarelando e cantando; e, finalmente, a colheita do cereal partilhada por “ratinhos”, nome algo depreciativo que se dava aos homens da Beira Baixa vindos todos os anos para a “aceifa”.

Assisti a descortiçagens (ou despelas, no dizer de alguns) nos montados de sobro e dei-me conta da perícia dos tiradores, manuseando o machado, e dos molheiros, a amontoarem as pranchas de cortiça, explicando-me depois que, assim, bem arrumadas numa pilha de base rectangular, permitiam ter uma ideia do peso de toda a tirada. Ficou-me no ouvido o som cavo do machado, bem afiado e brilhante do uso, a entrar fundo na cortiça madura, e o cantar das grandes e encurvadas pranchas a descolarem do tronco descarnado.

Experimentei o varejo da azeitona e andei de joelhos a apanhá-la caída nos oleados ali estendidos no chão e estive num velho lagar de azeite o tempo suficiente para saber como se faz o precioso óleo da gastronomia mediterrânea. Vi esmagar a azeitona com mós de pedra num engenho da antiga Fábrica Metalúrgica do Tramagal. Vi espremer, entre capachos, a pasta que dali saía, a separar o bagaço do mosto oleoso, senti o forte aroma do azeite virgem a sobrenadar uma aguadilha suja e percebi o sentir da minha mãe quando dizia «não se come uma azeitona de uma só vez», explicando que não se trata assim uma preciosidade que leva um ano a criar. 

Ajudei, como curioso de ocasião, em vindimas, respirei o cheiro de um outro mosto. Provei o vinho novo pelo São Martinho e acompanhei os trabalhadores, na grande adega das Cortiçadas, petiscando toucinho assado no braseiro da destila, junto ao alambique, acompanhado de “sorvinhos” de aguardente ainda morna, acabada de fazer.

Acompanhei, interessado, o trabalho do caleiro, do desmonte e malho da pedra, com a marreta, ao empilhamento, a preceito, do forno. Vi armar e cobrir de terra os tradicionais fornos de carvão e conheci o intenso cheiro a tição que libertavam. 

Fiquei horas a ver oleiros no trabalho do barro vermelho com a roda e tive oportunidade de apreciar a arte de enfeitar com pedrinhas de quartzo a tradicional loiça de Nisa. Bebi água por cocharros de cortiça, tirada do poço, junto ao bebedouro do gado e molhei os pés nos regos das hortas onde nos deixavam apanhar beldroegas com que fizemos tantas das nossas refeições.

Foram muitas as vezes que confraternizei com os trabalhadores rurais, sentados no chão, de “navalhinha” na mão, comendo nacos de pão com lasquinhas de queijo ou de linguiça.

Não é demais voltar a dizer que foi com estes meus amigos que iniciei a consciencialização dos problemas sociais e políticos que a cidade, nesse tempo vigiada e censurada, não permitia. Volto a dizer que com eles interiorizei uma saudável ruralidade que me acompanhou ao longo da vida e me permitiu caldear as influências elitistas do meio académico a que, como aluno e docente, pertenci durante mais de 40 anos.

Ao memorizar essa fase da minha vida sou levado a concluir que foi também com os camponeses que desenvolvi e amadureci este gosto pelo campo, essencial à profissão de geólogo. Com eles e por eles tomei o gosto de divulgar uma actividade que, como disse, marcou toda a minha existência, e que, sem me ter dado conta, acabou por me tornar figura pública, com as vantagens e os inconvenientes que tal acarreta. 

Nas minhas raízes não houve doutores, engenheiros, almirantes ou generais, nem sequer, um sargento. Houve um segundo grumete ao serviço da fragata Dom Fernando II e Glória, que foi o meu pai, uma costureira, que foi a minha mãe, e gente do povo de muitas artes: dois corticeiros, um sapateiro, um curtidor de peles, dois caiadores, um capador, um açougueiro, sem esquecer a minha tia Rosalina, irmã da minha avó materna, que, com as filhas, fazia queijos de ovelha e tinha uma venda de hortaliças, e o meu tio Zézinho, seu marido, conhecido por Zé dos Cabanejos, pelo facto de fazer cestos e canastras ou cabanejos.

De toda esta família, só o meu pai estudou, tendo concluído o 5.º ano do liceu, o que lhe valeu um emprego mais estimado, permitindo-lhe, em conjunto com a minha mãe, dar aos seis filhos as habilitações a que cada um aspirou.

Não como turista, mas como profissional, tive oportunidade de fazer algumas deslocações pelo mundo. Mais do que as cidades, atraíram--me os espaços naturais, longe do betão e do asfalto. Foi assim que admirei o Grand Canyon do Colorado, onde tive a percepção da imensidade do tempo geológico, que estive no bordo da grande Cratera do Meteoro e que visitei o Monument Valley, no Arizona, onde voltei a “ver” o Tom Mix, o Buck Jones e o Ken Maynard, os cowboys do Far West, da minha infância. Percorri as planuras entre-montanhas do Oeste Americano, os seus desertos e lagos salgados. 

No Canadá deslumbrei-me com a miríade de lagos deixados no recuo da última grande glaciação, com o maravilhoso polícromo das suas florestas caducifólias, no Outono, e com as chamadas bad lands de Alberta, autênticos ninhos de fósseis de dinossáurios. 

No mar azul das Caraíbas, nos recifes e nas areias brancas dos seus fundos e das suas praias vi, no terreno, como se formam os calcários, os de hoje e os do passado com milhões de anos de idade.

No Egipto pisei o deserto de areia norte africano, na sua ponta mais oriental, em franco contraste com o verdejante vale do Nilo.

Da Amazónia ficaram-me os aromas quentes e húmidos da floresta sempre chuvosa, a luz coada pela densidade da vegetação e o som dos animais que a povoam.

Sobrevoei os Himalaias, molhei os pés nas águas barrentas do mar da China e desci ao fundo de uma cratera de vulcão nos Açores. 

Neste percorrer de uma longa caminhada, para além da infância, da adolescência e do tempo que cumpri como miliciano ao serviço do Exército, dou particular atenção às experiências vividas e presenciadas e às reflexões que muitas delas me suscitaram como docente da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, como director do Museu Nacional de História Natural da mesma Universidade e, ao mesmo tempo, como cidadão interventor, sobretudo, na árdua defesa e valorização da geologia e do nosso património natural, numa sociedade cinzenta, à procura de um caminho que ainda não soube encontrar, onde o conhecimento geológico continua arredado dos nossos agentes de cultura e da grande maioria dos nossos decisores aos vários níveis da administração e dos serviços. 

António Galopim de Carvalho

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