sexta-feira, 5 de março de 2021

JONATHAN SWIFT E OS FLATOS


Minha recensão no I de ontem:

A flatulência é um fenómeno que tem tradições tanto na ciência como no humor. O físico norte-americano Benjamin Franklin, escreveu c. 1781 um ensaio sobre esse tema, quando era embaixador em França dos então jovens Estados Unidos de América. Nesse escrito intitulado Fart Proudly, também conhecido por A Letter to a Royal Academy about Farting, por ser dirigido à Academia de Ciências de Bruxelas, sugeria, com uma base científica, mas num registo humorístico, um método de melhorar o odor da flatulência humana. O seu objectivo era encontrar um alimento ou produto que melhorasse o cheiro do nosso tubo digestivo. Isto sim, é verdadeira ciência aplicada, pois o seu nobre fim é a melhoria da convivência humana…

Um pouco mais tarde, em 1800, foi publicada uma caricatura que mostrava uma experiência com gases na Royal Institution de Londres, na qual óxido nitroso era inalado para logo sair, imagine-se com cheiro e ruído, pela extremidade do tubo digestivo.

Quanto ao humor associado directamente à flatulência, sem a intervenção da ciência, as mais antigas referências remontam ao dramaturgo grego Aristófanes, que na peça As Nuvens farta-se de fazer referência ao que os ingleses chamam “fart”. Santo Agostinho, apesar de estar mais preocupado com a alma do que com o corpo, comentou o fenómeno fisiológico. No Renascimento, Rabelais não desdenhou o tema. E, a seguir, o grande Shakespeare também não. No século XIX, Twain voltaria ao assunto. Hoje são inúmeras as referências literárias a um tópico considerado pouco social.

O escritor irlandês Jonathan Swift (1667-1745), o celebrado autor de As Viagens de Gulliver, escreveu um texto humorístico sobre a flatulência que se juntou aos atrás mencionados na galeria dos clássicos. O título dele, traduzido em português vernáculo Os Benefícios de Dar Peidos Explicados ou a Causa Fundamental dos Episódios de Indisposição do Belo Sexo Investigadas, é um panfleto de 1722 (seis décadas antes do escrito de Franklin) publicado sem indicação do verdadeiro autor. Esse folheto foi agora traduzido em português pela editora Guerra e Paz, que o juntou a três outros escritos swiftianos, inaugurando uma série de “livros malditos ou proibidos e textos satíricos”, os livros pretos (já havia naquela editora os livros vermelhos, amarelos e brancos).

A acreditar na capa do original, que foi competentemente traduzido por Ana Relvas França, o texto teria sido “traduzido do espanhol, por Don Peidinhando Buffandorfst, professor da Universidade Bombástica de Tracóvia e traduzido para o inglês a pedido da Condessa de Elabufa por Abdias Silvo, Cuidador das Fezes da princesa de Cuzzini na Sardenha.” O livro, “onde se prova, a posteriori, que a maioria dos mal-imundos que afligem as senhoras são culpa de flatulências não oportunamente ventiladas”, foi publicado em Londres, numa edição “revista por uma Academia de Fízicos e aprovada por várias senhoras de alto gabarito.”

O livrinho é um prodígio de humor. O autor explica muito bem o seu intento: “Vou, em primeiro lugar, analisar a natureza do peido. Em segundo lugar, demonstrar as terríveis consequências de o reprimir. Em terceiro lugar, quero provar a legalidade do peido. E, finalmente, em quarto lugar, elucidar sobre as vantagens que podem advir de tolerarmos a todos a liberdade de o soltar.” Temos, pois, ciência, direito e ética reunidos num curto ensaio!  Na sequência, ao discutir se um “peido é uma coisa espiritual ou uma substância material”, o autor refere o físico-químico inglês Robert Boyle, o autor da lei de Boyle que descreve os chamados gases perfeitos. Segundo o sábio, o peido “não pesa nem a milésima parte dum grão, mas em apenas um minuto é capaz de se expandir e ocupar a atmosfera de uma grande sala de estar.” 

O matemático e filósofo francês René Descartes (Cartesius) também é referido, num tom bastante jocoso. Segue-se uma definição científica de flato: “vapor nitroaéreo exalado por uma qualquer poça de água estagnada de natureza salínica, rarefeito e sublimado pelos tubos de um microscósmico alambique através do sereno calor proveniente de um monte cremoso de esterco, com um forte odor a decomposição animal, forçado expelir-se pelas forças compressoras da nossa capacidade de expulsão”. Uf! Um pouco palavroso, mas para o início do século XVIII, quando ainda não havia química nem muito menos bioquímica, não está nada mal.

O ensaio científico-cómico, mais cómico do que científico, termina com um poema escatológico. Swift era poeta, ocupando a sua poesia reunida um volume de quase mil páginas. Intitula-se “Meditações sobre um Ca**lhão / Escritas num Lugar de Alívio” (um título que faz lembrar Bocage, que só apareceu muito depois).

O livro que é prefaciado Manuel S. Fonseca, o editor da Guerra e Paz, que  apresenta o autor e a obra, inclui mais três textos de Swift: “Uma proposta modesta“, já antes publicado em português,  que ostenta o subtítulo “Para evitar que os filhos dos pobres na Irlanda sejam um fardo para os pais ou para o país, tornando-os benéficos ao público”, e onde o autor satiricamente propõe a prática do canibalismo; o poema “Cassino e Pedro: Elegia Trágica”, numa tradução de Jorge de Sena aqui republicada (o último verso de uma conversa de dois amigos, na qual um revela uma terrível descoberta sobre a sua amada: “Escuta: eu vi (…)/ Oh… Célia… Célia… Célia… Célia…  caga.”); e, por último, umas “Resoluções para quando chegar a velho”, contendo propostas extremamente sábias como: ”Não contar muitas vezes a mesma história às mesmas pessoas”; “Não ser demasiado severo para com os mais novos, mas permitir-lhes a natural insensatez da idade e as suas fraquezas”; e “Não opinar sobre tudo como se fosse dono da verdade.” A edição tem, além do mais, a vantagem de não seguir a grafia do novo acordo ortográfico.

Quem foi Jonathan Swift? Um dos maiores escritores da língua inglesa dos séculos XVII e XVIII e, atrevo-me a dizer, de todos os tempos. George Orwell tinha-o em alta consideração, pela qualidade da sua escrita, apesar de discordar dele em quase todas as matérias de opinião. Swift cultivou o género satírico de um modo tão inigualável que até se fala de “estilo swiftiano”. A Proposta Modesta, de 1729 (sou um orgulhoso possuidor da tradução de Aníbal Fernandes, na &etc, de 1980), tornou-se um clássico do género: mostra como humor pode ser alvo de intolerância por ser um meio de crítica política e social: o editor foi preso.  Na mesma veia satírica, Swift escreveu Preceitos para Uso do Pessoal Doméstico (n.º 49 da colecção Livro B, da Estampa, 1985, com prefácio de André Breton, o autor da Antologia do Humor Negro, que a Afrodite publicou entre nós em 1973), de 1745;  Sermão para Quem Adormece na Igreja (Universidade Católica Editora, 2017); e, sem haver certeza da autoria, a Arte da Mentira Politica, de 1733, publicado em Amesterdão de autor anónimo (em português: Fenda, 1996).

Swift nasceu e morreu em Dublin, mas passou boa parte da sua vida em Inglaterra. Estudou de início no Trinity College, de Dublin. Formado em Teologia em Oxford, foi pastor da Igreja Anglicana. Amou e foi amado (por várias mulheres; a uma delas deu o nome, inventado por ele, de Vanessa), mas nunca casou. Teve numerosas intervenções políticas: num tempo em que havia lutas entre o liberalismo (os whigs) e os conservadores (os tories), Swift esteve de um lado e… do outro. Em 1713 tornou-se deão da Catedral de Saint Patrick, em Dublin (Patrick é o bispo do século V que a Irlanda tomou para seu padroeiro), que é a sede da igreja da Irlanda.

O livro mais famoso de Swift, é, sem sombra de dúvida, Viagens de Gulliver, saído em 1726, uma sátira tanto das viagens literárias como da natureza humana, onde uma pessoa normal encontra criaturas minúsculas em Liliput, uma ilha fictícia do oceano Índico. Os liliputianos – que representam os ingleses – estão em guerra com os blesfucuanos, da ilha de Blefuscu – que representam os franceses. Há inúmeras traduções em português, a primeira das quais no início do século XIX (Viagens de Gulliver a Varios Paizes Remotos, Lisboa: Typographia Rollandiana, 1816: a tradução é de um anónimo J. B. G.) e uma das últimas da própria Guerra e Paz (esta editora publicou recentemente o primeiro livro em prosa de Swift, a História de um Barril, de 1704). As Viagens de Gulliver é a obra de um autor irlandês mais impressa e mais lida em todo o mundo. Está longe de ser um livro juvenil que muitos julgam que é. Swift está sepultado na catedral de Saint Patrick.

O epitáfio reza assim: "Aqui jaz o corpo de Jonathan Swift, deão desta catedral, onde a colérica indignação já não poderá dilacerar-lhe o coração. Segue, viajante, e imita, se puderes, este que se consumiu até ao extremo pela causa da Liberdade".

Swift é o autor de um livro de aforismos, que em 2010 saiu entre nós, com selecção e tradução de Paula Seixas. Coleccionador que sou de livros de citações, não foi difícil encontrar este volume, apesar do seu pequeno tamanho: Pensamentos (Licorne, 2010). Termino com alguns pensamentos swiftianos, que são grandes reflexões: “As palavras certas no lugar certo: eis a melhor definição de estilo”; “O elogio é filho do poder”; e “Algumas pessoas preocupam-se mais em esconder a sua sabedoria do que a sua parvoíce.”

2 comentários:

Um ar que lhe deu disse...

É tão engraçado o humor J.B.!


c.eliseu disse...

Comprei o jornal por causa deste texto...

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