terça-feira, 5 de novembro de 2019

"O problema é teu", eis a lógica do mindfulness.

Na sequência de outros textos sobre a generalização do mindfulness em diversos sectores da sociedade, como as empresas e os sistemas de ensino (por exemplo, aqui, aqui, aquiaqui), vale a pena ler a entrevista realizada pela jornalista Alexandra Correia a um dos críticos mais destacados deste conceito que se traduz em prática: Ronald Purser.

Dessa entrevista, recentemente publicada na revista Visão com o título "O mindfulness é a ‘espiritualidade do capitalismo’", extraí as passagens abaixo, que evidenciam bem como a escola se organiza, desde os primeiros anos de escolaridade, para produzir "capital humano", pronto a ser "precariado" (expressão de Bauman) "feliz" nas empresas.
“O mindfulness envia a mensagem de que os indivíduos são responsáveis pela sua saúde mental, independentemente dos salários ou das condições de trabalho” 
"Estou mais preocupado com a forma como o mindfulness tem sido usado em determinados contextos como uma forma de controlo social. Falo, por exemplo, do ambiente empresarial, em que o mindfulness é usado como um meio de substituir o fardo, ou seja, de levar os trabalhadores a adaptarem-se e 
mesmo a assimilar determinadas condições de trabalho numa cultura empresarial que é ela própria a causa de tanto stresse. Ou seja, o ónus passa a ser dos indivíduos, e o mindfulness é usado para manter um sentimento de pertença e statu quo em vez de ajudar as pessoas a, coletivamente, trabalhar para que haja mudanças estruturais nas condições de trabalho a que estão sujeitas – e assim reduzir o stresse.
Assim, estes problemas laborais ficam reduzidos a uma questão individualizada, como se fosse uma questão de lifestyle com que a pessoa tem de lidar, e não uma questão social e política. Assim, focando-nos no stresse, podemos ser ensinados a ser mindful em vez de olharmos para as condições subjacentes que nos causam tanto stresse (...). Retira da empresa a responsabilidade pelo stresse que está a causar e coloca-a nos indivíduos. É por isso que eu chamo ao mindfulness a “espiritualidade do capitalismo”. 
"Houve um académico (não recordo o nome) que cunhou o termo self-helpism (autoajuda), e que coloca os problemas a nível do indivíduo. Isso quer dizer que as soluções também são formuladas a esse nível. Isso molda a forma como refletimos sobre os problemas reais, colocando-os no plano do não político, privatizando a luta pelo bem-estar. "
"A questão de fundo é que o movimento do mindfulness está a ser usado para dizer que é o indivíduo que tem de se adaptar às condições políticas, sociais e económicas, que a mudança tem de ser feita dentro da própria pessoa. O que oculta a importância da ação coletiva. O mindfulness é um pobre substituto para a real mudança das organizações, agarrando nos problemas estruturais e reformulando-os como problemas psicológicos.
Por outro lado, normaliza o stresse, naturaliza-o e diz às pessoas: “Olha, o stresse é algo com que tens de lidar, então descobre por ti como lidar com ele, seja através do mindfulness, ioga, o que quer que seja.” 
"Promovendo programas para os seus trabalhadores, fá-las parecer empresas benevolentes. É como as empresas de petróleo e de químicos a aparecer em anúncios de televisão a dizer que estão muito preocupadas com o ambiente… "
"O que vemos agora é um mindfulness como terapia centrada no “eu”, no bem-estar, algo reduzido a uma competência. É muito diferente."

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