Minhas declarações ao jornal Público na semana passada que foram publicadas em parte. Elas ocorreram logo a tomada de posição do CRUP e antes da posição do Reitor da Universidade de Lisboa, a maior do país, que se distanciou do CRUP, e do Conselho de Laboratórios Associados, que representa a posição conjunta dos maiores laboratórios do país.
P- A FCT entrou em processo de negação, desmentindo o que está à vista no contrato. Depois
de termos ficado a saber que o contrato entre a FCT e a ESF definia à partida uma taxa de aprovação de 50%, esta avaliação deveria ser impugnada?
R- De facto, uma avaliação assim não é credível, podendo ser impugnada. Uma coisa é tomar a decisão política de financiar apenas 50% das unidades de investigação.
Essa seria uma decisão completamente errada, com a qual eu não concordaria, mas em teoria legítima, no quadro da responsabilidade governativa, se tivesse sido
assumida por quem de direito e aprovada, depois de devidamente debatida. Outra coisa é manipular uma avaliação de modo a que metade dos centros fiquem abaixo de uma determinada classificação, não sendo assim financiados. Isso não é sério! A avaliação das unidades é uma peça fundamental no sistema científico português,
pois este cresceu e consolidou-se graças a sucessivas avaliações credíveis. Actualmente, essa avaliação é determinante não só no financiamento directo às unidades, mas também no desfecho dos concursos a financiamentos em que o centro está envolvido. A comunidade científica tem de confiar no sistema de avaliação. Não poderá aceitar
avaliações que são uma farsa e que distorcem a realidade da ciência em Portugal. O problema não só desta avaliação da FCT mas como de toda a
gestão da FCT nos últimos anos é a inexistência de confiança por parte da comunidade científica.
Sem confiança, sem representatividade que a assegure, dificilmente se pode alcançar um objectivo que
mobilize a todos para o aperfeiçoamento do nosso sistema científico-tecnológico.
P- Sabe de alguma instituição que esteja a preparar formalmente a impugnação da avaliação?
R- Sim. Organizações de professores e investigadores já manifestaram a sua disponibilidade para, em conjunto com unidades de investigação, avançarem
com acções com vista à impugnação da avaliação.
P- Ainda é possível corrigir este processo, como defendeu ontem o CRUP? Ou esta posição não passará de um remendo de algo que já não tem remendo?
R- Penso que será muito difícil endireitar algo que nasceu torto. Diz o povo e com razão que o que nasce torto tarde ou nunca se endireita. A proposta do CRUP, decerto bem intencionada, permitiria repescar algumas unidades para a segunda fase, designadamente aquelas que ficaram ligeiramente abaixo da linha de água arbitrária dos 50%, aquelas cuja classificação terá sido baixada artificialmente de um modo mais injusto e flagrante. Mas, para além de não ser ético aceitar uma avaliação sem pés nem cabeça, seria uma absoluta falta de bom senso fazer correcções desse tipo. Então iríamos ter unidades repescadas pelas mesmas pessoas que, por imposição da FCT, as liquidaram há pouco tempo, com a agravante que agora tudo isso já é sabido? Já nem falo na atribuição do financiamento, pois adivinho que a FCT possa deixar passar uma ou outra unidade para a seguir as deixar sem financiamento. Quer dizer, daria um prolongamento de vida do condenado antes da execução da sentença. Por outro lado, a proposta do CRUP permitiria a passagem à segunda fase de unidades muito bem classificadas na avaliação anterior. Mas muitas unidades que existiam antes já não existem: fundiram-se, em consonância com o apelo à formação de massa crítica feito pela FCT. Mas, mais uma vez, a passagem à segunda fase nada garantiria, uma vez que as unidades que passam a esta fase ainda podem ter qualquer classificação, até mesmo insuficiente. Seria um indulto de alguns condenados, mas sempre uma solução desajeitada, que pioraria ainda mais a credibilidade da FCT e deste processo de “avaliação”. O mais sério é preparar, com tempo, outro processo de avaliação. Este foi barato e rápido, ainda não se perdeu muito nem do ponto de vista financeiro nem do ponto de vista temporal. Aliás até se ganhou alguma coisa: no meio de muita confusão, apareceram algumas coisas úteis, em particular quando calhou haver pareceres de especialistas. Não é um instrumento completamente perdido.
P- Embora a impugnação possa corrigir os erros, que implicações pode ter para o sistema científico? Haveria atrasos?
R- Isso depende do que a FCT e sobretudo do que o ministro Nuno Crato optar por fazer. A avaliação das unidades é hoje fundamental para qualquer concurso em que a FCT
esteja envolvida (bolsas, contratos de investigador, projectos, etc.) e é bom que o seja. Com a impugnação desta avaliação, vigorariam naturalmente as
classificações anteriores até que estivesse concluída uma avaliação credível. É impensável que a FCT optasse por congelar a ciência em Portugal. Se o soneto é
mau, a emenda seria muito pior.
P- Considera esta avaliação uma fraude?
R- Sim, tudo o indica. Numerosas instituições consideram-se defraudadas. Uma avaliação em
que o resultado não depende exclusivamente do mérito dos avaliados, mas em que
há classificações manipuladas para encaixarem em quotas pré-definidas e
escondidas dos avaliados não pode ser considerada honesta. Houve manipulação
feita por não-especialistas, isto é, não se pode falar de uma verdadeira avaliação
por pares. A FCT primeiro sonegou os documentos. Depois, com os documentos à
vista, insiste em negar o óbvio. Ela não pode desmentir o que está escrito no
contrato que assinou.
P- Este processo descredibiliza Portugal a nível internacional?
R- Sem dúvida. Logo, pela opção algo provinciana de chamar uma entidade estrangeira
para conduzir todo o processo de avaliação sem permitir qualquer representação
da comunidade científica nacional. E ainda por cima, uma entidade sem
experiência específica para o fazer. Que país desenvolvido faria isso? A Espanha
não o fez, a França não o fez e a Alemanha também não. Parece que só há um caso aparentado - o da Bulgária - mas mesmo esse caso não foi tão mau como aqui. É um certificado de menoridade que a FCT passou à ciência
em Portugal e, já agora, a ela própria. Uma coisa é evitar a endogamia, outra
coisa é dar a avaliação a alguém que não
conhece o país nem o vem visitar. Por outro lado, a imposição de quotas nas
classificações é uma atitude anti-científica. A intenção de fechar metade das
unidades de investigação em Portugal, por um processo não directo mas viciado,
dá a imagem de um país que assume ser subalterno e que desistiu de ascender,
pelos seus meios e pelos seus méritos, ao pelotão da frente. Recebi chamadas
do Instituto de Física britânico e da Sociedade Americana de Física e
verifiquei que eles dificilmente percebiam o que aqui se está a passar.
P- Miguel Seabra, Leonor Parreira e Nuno Crato deveriam demitir-se perante os factos
entretanto conhecidos sobre a avaliação?
R- Conheço bem Nuno Crato, a quem noutro tempo apoiei (toda a gente já percebeu que ele
mudou), e já lhe disse o que tinha a dizer. Agora ele fará o que entende fazer e
nós julgá-lo-emos por isso. Tenho pena que tenha deixado as coisas escorregar
até este ponto, mas pode ser que ainda tenha a lucidez necessária para perceber
o mal que está a fazer ao país. Ficará de um lado ou de outro no juízo da
história conforme as decisões que tomar. Se ele ainda vier a escolher o lado
certo, aplaudi-lo-ei. O importante é que haja uma inversão deste caminho de
prejuízo para a ciência em Portugal e que se retome a via de aproximação à
Europa, que foi seguido nas últimas duas décadas, com resultados positivos inegáveis.
Foi um caminho feito, com muito esforço de muita gente, com os investigadores e
não contra eles. Quando tento perceber o que se passa, concluo que o governo de
Pedro Passos Coelho tem uma má relação com a ciência. Quando este governo
cessar, respirar-se-á uma nova esperança em Portugal, não só na ciência como noutras
áreas da nossa vida colectiva.
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