quarta-feira, 19 de junho de 2013

Economia e Evolução

O meu parceiro de blog Desidério diz que não existe mistério na justificação da existência de uma economia depois de eu ter iniciado a discussão aqui. Como esta é(*), provavelmente, a maior discussão da história sobre tal coisa (obrigado Carlos e Armando) não me parece que deva ficar por aqui e por isso cá vai mais uma, a bem da nação.

A selecção natural é um processo universal de optimização, i.e., uma forma de resolver um problema dentro de um dado conjunto de constrangimentos que leva a mais que uma solução. A natureza usa-o para determinar que espécies devem existir, os gestores de fundos usam-no para determinar que activos devem compor o fundos, os arquitectos de soluções usam-no para determinar que recursos computacionais devem estar disponíveis para o leitor ler esta posta. Dizer que é um produto da evolução por selecção natural não acrescenta nada à compreensão do fenómeno porque tudo o que existe é produto desse processo evolutivo, i.e., dizer que existe e dizer que é produto da selecção natural são duas afirmações equivalentes.

Pegando de onde estávamos, a pergunta que ajuda à compreensão da existência do fenómeno é "qual é o factor diferenciador que possa levar a uma economia tem e que não leva às outras interacções de grupo?". As baleias têm comunicação e alguma inteligência, já foram observadas formas de cultura em macacos, as formigas e as abelhas têm formas altamente bem sucedidas de sociedade. Todas estas sociedades existem, todas elas são produto da evolução. Perante os constrangimentos que eram apresentados pelo meio ambiente, o processo evolutivo seleccionou estas soluções como soluções de sucesso(de elevado "fitness", para os fanáticos da algoritmia).

No entanto, a natureza seleccionou outra solução que, não só se tornou um sucesso perante os constrangimentos, como eliminou os constrangimentos (bem, quase todos, há a questão dos vírus, da vida do Sol, do tamanho do planeta,...). O conjunto humano continua a formar interacções económicas num processo de "clustering" juntando cada vez mais elementos ao sistema, ligando os vários subsistemas,  criando mais mundo onde ele não existia (virtual) para onde expandir o sistema. Há muito que as questões de sobrevivência estão eliminadas, que o processo de selecção natural não só está vencido, como acontece em todos os outros casos, como está "descontrolado" ao ponto de os contrangimentos terem sido destruídos.

Esta solução difere fundamentalmente de todas as outras soluções num aspecto fundamental e que não tem nada a ver com inteligência, pelo contrário. É um processo multiplicativo, absolutamente divergente (daí a necessidade do mundo virtual para se expandir) completamente fora do equilíbrio. O ser humano "destrói" tudo à sua volta para construir o mundo económico que está sempre, sempre, a crescer. Isto só tem uma explicação, na minha modestíssima e pouco credível opinião, é a existência de um instinto económico que não tem um mecanismo de "feedback". Que a natureza nos colocou sem que o mecanismo compensatório tenha sido desenvolvido, daí o carácter divergente da solução.

As interacções económicas são sempre diferentes das anteriores devido impulso de consumir e produzir. Não se troca algo por algo igual, por definição isso não é uma troca. Por isso, o ser humano vai sempre escolher o que não tem, ao contrário de todos os outros mecanismos de interação que resultam sempre na mesma troca. Se fosse sempre a mesma troca, ela só existiria se houvesse necessidade de troca, i.e., se os lados da troca não tivessem aquilo que vão trocar. Isto é um mecanismo compensatório de per si, "como tenho não quer ter".  Mas se sou impelido a ter tudo, se basta o que quero ser diferente para essa sensação de falta surgir ("escassez", segundo os economistas teóricos), o mecanismo compensatório desaparece e o sistema não para de crescer.  


Concluindo (por enquanto, que tenho que ir fazer crescer ainda mais sistema) a evolução deu-nos a economia, mas não explica a sua existência porque a evolução deu-no várias soluções, mas só uma é a economia. E esta só se explica se olharmos para o carácter divergente dela comparativamente com todas as outras soluções encontradas pela natureza que são soluções de equilíbrio. E, respondendo também a alguém que comentava ontem "porque existe? Eu quero saber para quê!", não é fundamental saber se o instinto existe de facto ou não. Basta saber que, em boa aproximação, todos os efeitos são semelhantes e, logo, para os efeitos pretendidos - a explicação do "para quê" - chega. E o "para quê" já lá vamos.


(*) Se tivesse havido outra, as últimas crises não teriam ocorrido!

19 comentários:

Unknown disse...

Muito interessante!

e tem razão quando refere que a afirmação de que "algo que existe é um produto da selecção natural" não diz nada quanto às razões da sua existência, mas apenas confirma que existe.

Quanto à preversão do sistema económico, não será que ele reflecte a ordem de importância (prioridades) que a sociedade atribui à própria economia, talvez por se esquecer as razões fundamentais da existência da actividade económica (que se relacionam com o bem estar humano e não a economia em si mesma).

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Muito bem! Economia e Evolução são apenas, temas...

Por exemplo, economizar-se-ia o diploma de Filosofia do vosso parceiro! Por uma questão de evolução, segundo a economia filosófica.

Unknown disse...

João Cruz,

O seu post é muito interessante. Eu não percebo nada de filosofia da economia, mas acho estranho que este assunto não tenha qualquer resposta, como sugere). Como é obvio a teoria da evolução e a selecção natural (por si só) não conseguem explicar a existência da economia (como tantas outras coisas) e a afirmação de que "a economia é um resultado da seleção natural" (querendo dizer tudo) não quer dizer nada. Compreende-se que o Desidério, fascinado como é pela filosofia da ciência, tenha esse tipo de aproximação simplista (neste caso claramente falaciosa e vazia), o que não deixa de ser curioso para um crítico do cientismo.

Embora a economia tenha (ou deva ter) como objectivo o bem comum das pessoas, periódicamente manifestam-se as suas próprias preversões, que manifestam um descentrar dessa sua finalidade (o bem estar comum). Parece-me que, de um modo geral este tipo de preversões resultam da perda da perspectiva dessa mesma finalidade, ou seja quando a prioridade vigente se desloca das pessoas para a economia em si mesmo. Talvez pudesse sugerir que falta uma dimensão ética à economia, mas não tenho a certeza se a tentativa de dotar a economia de uma dimensão ética mais explicita não resulte ela mesmo noutro tipo de preversões.

maria disse...

economia animal ,só não têm é dinheiro :

http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/como_os_animais_fazem_negocios.html

João Pires da Cruz disse...

Obrigado pelo comentário, Vasco.

É natural que economistas não liguem nada à explicação da origem da economia. Eu também me estaria nas tintas para isso se não tivesse levado com essa ignorância na cara quando tudo (bem, alguma coisa...) o que sabia profissionalmente desapareceu em 2008. A verdade é que quando me comece a questionar sobre porque é que estava tão errado, isso me levou a questionar a razão de existir uma economia (um sistema de troca livre de trabalho). Tenho razão? Bem, tendo ou não, os resultados são iguais. Sobre os efeitos disso... Ainda agora comecei a escrever aqui :)

João Pires da Cruz disse...

Dinheiro é só uma forma escapsulada de trabalho, maria. Cooperação, trocas, ajudas, solidariedade, grupos, são tudo características de uma economia, mas não fazem uma economia. A prrincipal diferença de uma economia face a estes comportamentos que também se observam numa economia, é que uma economia é um sistema divergente. Não é apenas "coça as minhas costas e eu coço as tuas", como no texto (que não conhecia, agradeço!). É coça as minhas costas, mas depois delas coçadas, quero um iPhone.

A diferença entre as duas é que como só há duas costas para coçar, quando elas estiverem coçadas, param as transacções. O equilíbrio vai andando entre ter comichão e ter coçado. E não vai sair daí. Na economia, como a seguir a ter as costas coçadas, quero os pés e quero uns sapatos e quero andar e quero umas mãos com umas unhas maiores... o sistema sai logo do equilíbrio e diverge.

São coisas fisicamente completamente diferentes que originam geometrias diferentes, distribuições diferentes, esperanças diferentes, toda a caracterização matemática é completamente diferente... Mas um dia chego lá:

João Pires da Cruz disse...

Mas são temas interessantes, Cláudia. Espero!...

maria disse...

maquiavel diz que a natureza humana se caracteriza pela avidez... algures nas sociedades modernas terá de meter a psicologia a publicidade e o marketing e as lavagens cerebrais aos pobres de espírito.

deve ser uma questão de evolução de servidões : de Deus , dos príncipes , da economia :)

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Implica a nem desvio. Cá?! Estudar é argumento certeiro. O Brasil leva a sério ser participativo.

Desidério Murcho disse...

Olá, João! Muito obrigado por ter dado atenção ao meu artigo. Mas eu sou mesmo obtuso e não consigo ver mistério algum. Na verdade, não consigo sequer ver o que quer o João explicar. É a existência de economia? A economia é uma forma muito sofisticada de trocas. Muitos outros animais têm sistemas de trocas, mas estas tendem a ser estáticas, em grande parte porque os comportamentos dos animais são eles próprios muito estáticos, precisamente porque não têm a imensa plasticidade que têm os seres humanos, o que lhes advém da inteligência mais sofisticada. Assim, basta você colocar dois agentes de inteligência sofisticada a fazer trocas entre eles e eles irão tentar o tempo todo ganhar vantagens, o que se consegue de diversas maneiras. Isso imprime um dinamismo às trocas que em nada se assemelha ao que ocorre com outros animais. Mas a base é a mesma.

Estou só a tentar ajudar a formular com rigor e clareza o seu problema, pois interesso-me pelo tema. Mas a dificuldade é que nem consigo entender bem o que está a querer explicar. Peço desculpa se estou sendo obtuso, mas só quero 1) entender e 2) ajudar. :-)

Desidério Murcho disse...

Esqueci-me de um pormenor. Em algumas passagens o João parece estar preocupado com o seguinte: por que razão os seres humanos querem mais e mais riqueza, depois de as suas necessidades básicas terem sido satisfeitas? A resposta a isso é social, em parte, e não é mistério algum. Na verdade, está estudado: dez pessoas com mil euros por mês sentem-se mais pobres se à volta delas viverem 500 pessoas com 5 mil euros por mês, do que noutra situação em que essas dez pessoas ganham à mesma mil euros, mas à volta deles 500 pessoas ganham apenas 800 euros. Em termos brutos as tais dez pessoas têm o mesmo poder de compra exactamente, mas sentem-se mais pobres na primeira porque a riqueza tem uma fortíssima componente social mal saímos da satisfação das necessidades mais básicas: por outras palavras, as pessoas usam a riqueza como adereço social, como sinal de superioridade, o que é semelhante ao rabo dos pavões. Isto não é de espantar em seres muitíssimo sociais como os seres humanos. Observamos o mesmo género de hierarquias sociais nos símios. Os seres humanos usam a riqueza, e portanto a economia, para alimentar as suas ansiedades quanto ao lugar da hierarquia, e como o lugar na hierarquia é relativo, quanto mais as pessoas à nossa volta enriquecem mais nós temos de enriquecer para ficar relativamente no mesmo lugar da hierarquia (imaginária, isto é tudo fantasia de gente maluca, mas os seres humanos são mesmo assim, é como os símios). Portanto, uma vez mais não consigo ver mistério algum. O que estou a ver mal ou a não entender, João?

Desidério Murcho disse...

Raios, a minha primeira resposta foi apagada! WTF?

Desidério Murcho disse...

Ora bem, o que eu tinha dito no outro comentário era outra coisa, mas estou sem pachorra para voltar ao mesmo. Vou começar pelo fim: o meu objectivo é apenas ajudar a formular com rigor o problema e entender o que você tem em mente. Acho que ainda não consegui fazer uma coisa nem outra :-(

Peguemos no fim. As soluções evolutivas NÃO são estáveis. Isso é uma ilusão. O que são é mais ou menos instáveis num dado corte do tempo. A competição é contínua, mas quando as diferenças introduzidas dependem quase exclusivamente de mutações genéticas, são MUITO lentas. Isso dá-nos a ilusão de olhar para a savana africana e parece que tudo está em equilíbrio.

Por exemplo, a cauda do pavões. É uma chatice ter de andar com uma cauda ridícula, mas é uma maneira de provar à fêmea que somos tão bons a sobreviver que podemos arrastar uma chatice que só atrapalha e mesmo assim cá estamos prontinhos a ir para a cama com ela. Há equilíbrio? Não. Cada pavão tem a vantagem de ter uma cauda maior do que o vizinho, mas as caudas só mudam geneticamente; então, a coisa é lenta como o raio. Mas é um excesso, é um desequilíbrio, é uma corrida às armas -- mas a passo de caracol.

Transfira isto agora para os seres humanos. Tem exactamente a mesma corrida às armas -- cada qual tenta ficar mais rico do que o parceiro -- só que não é a passo de caracol. Isto porque as diferenças introduzidas não são genéticas, são comportamentais e o nosso comportamento não tem de esperar pela genética para mudar: é essa a nossa plasticidade.

Desidério Murcho disse...

Aconteceram coisas malucas, escrevi dois comentários que foram publicados e logo de seguida desapareceram. WTF?

Unknown disse...

Também já me aconteceu (algum erro)

João Pires da Cruz disse...

Caro Desidério,

As soluções de um processo de evolução por selecção natural são "estáveis". Têm oscilações e existem soluções meta-estáveis, "mínimos locais", mas são relativamente estáveis. Isto é matemática, não é opinião. A solução encontrada pela natureza para o homem, que deu uma economia, é uma solução que destruiu os constrangimentos em que foi formada. É uma solução estável na mesma, como as outras, mas divergente nesse sentido. Não se justifica pela competição apenas porque, se fosse, estava fechada na competição. E onde é que a competição(natural) já vai...

Quanto ao estudado, eu sei que muita coisa está "estudada" (desculpe as aspas, mas como fui formado como físico, o estudado envolve algo mais que umas quantas evidências empíricas). E longe de mim querer chegar à verdadeira razão da origem da economia, até porque não há "dinheiro nisso". "Eu" só preciso de que seja plausível face às evidências actuais, que são muito mais profundas que essas que indica de "imitação". Essas que indica, dizem-me que existem, não porque existem. O porque existem é importante para saber o que significam e, no fim do dia, saber a distribuição que podemos esperar, que não está naquele que observamos. Como é que sei que não está?? Quando entendo o porquê.

Mas tem razão que o melhor mesmo é ir pelo "fim". Vou tentar meter aqui o exemplo do "subprime" para tentar explicar a importância da diferença do porquê e do "estudado". E o "subprime" foi o caso que me trouxe a "isto"...

De qualquer forma, obrigado pela discussão. Está boa!

maria disse...

a insatisfação do João com as respostas dadas e a avidez por novas está a desequilibrar o sistema...conseguirá um novo equilíbrio ?
ou seja , se não fossemos cronicamente insatisfeitos ainda coçávamos as mesmas costas :) a questão é a canalização da insatisfação crónica que pode ser boa ou má.

João Pires da Cruz disse...

Sim, maria, mas seja boa ou má, é o que a natureza nos deu. Eu também preferia ter tido outra cara...

João Pires da Cruz disse...

O subprime vou deixar para depois. Prefiro meter o Bear Sterns primeiro.

"A escola pública está em apuros"

Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião   Cristiana Gaspar, Professora de História no sistema de ensino público e doutoranda em educação,...