terça-feira, 18 de junho de 2013


Herberto Hélder
 
 

 
A poesia do Herberto é de difícil situação – se pensarmos numa corrente literária; ela é como que um cruzamento entre o imagismo de Ezra Pound e o surrealismo de André Breton.
A Física está presente na poesia de Herberto Hélder, mormente em Antropofagias e em Cobra.
Poucos poetas fazem humor, servindo-se da Física, como ele o faz.
Leiam:
 
Texto 13 De “Antropofagias”
 
Afinal a ideia é sempre a mesma o bailarino a pôr o pé
no sítio uma coisa muito forte
na cabeça no coração nos intestinos no nosso próprio pé
pode imaginar-se a ventania quer dizer
«o que acontece ao ar» é a dança
pois vejam o que está a fazer o bailarino que desata por aí fora
(por «aí dentro» seria melhor) ele varre o espaço
se me permitem varre-o com muita evidência
somos obrigados a «ver isso»
que faz o pé forte no sítio forte o pé leve no sítio leve
o sítio rítmico no pé rítmico?
e digo assim porque se trata do princípio «de cima para baixo
de baixo para cima»
que faz? Que fazem? Oh apenas um pouco de geometria
em termos de tempo um pouco de velocidade
em termos de espaço dentro de tempo
«vamos lá encher o tempo com rapidez de espaço»
pensam os pés dele quando o ar está pronto
o «problema» do bailarino é coisa que não interessa por aí além
mas são chegados os tempos de agonia
estamos «exaltados» com este pensamento de morte
é preciso pensar no «ritmo» é uma das nossas congeminações exaltadas
na realidade algo se transformou desde que ele começou a dançar
sem qualquer auxílio excepto
não haver ainda nomes para «isso» e haver os ingredientes
do espectáculo i. e. a qualidade «forte» do sítio
e pés
esperem pela abertura de negociações entre «não» e «sim»
hão-de ver como coisas dessas se passam
não vai ser fácil os recursos de designações as acomodações várias
já se não encontram às ordens de vossências
comecem a aperceber-se da «energia» como «instrumento»
de criar «situações cheias de novidade»
vai haver muito nevoeiro nessas cabeças
e ainda «coração caiu-lhe aos pés» o banal
a contas com o inesperado talvez então se tenha a ideia de murmurar
«os pés subiram-lhe ao coração»
pois vão dizendo que exagero logo se verá
também Jorge Luís Borges escreveu esta coisa um nadinha espantosa
«a lua da qual tinha caído um leão» nunca se pode saber
maçãs caem Newton cai na armadilha
quedas não faltam umas por causa das outras
os impérios caem etc. o assunto do bailarino cai
mas sempre em cima da cabeça e estamos para ver
Cristo a andar sobre as águas é ainda o caso do bailarino
«o estilo»
claro que «isto» apavora
a dança faz parte do medo se assim me posso exprimir
 
Excerto de “Cobra”
….
O espelho é uma chama cortada, um astro.
E há uma criança perpétua, por dentro, quando se vive em recintos
cheios de ar alumiado. De fora, arremessa-se
   às janelas
as ressacas vivas dos parques. Ela toca o nó
    do espelho de onde salta
uma braçada de luz. Cada lenço que ata,
a própria seda do lenço
o desata. E o rosto que jorra do espelho
volta aos centros
arteriais.
 
Todos os anos fundos, essa extensa criança
sente brotar da terra como as árvores
do petróleo
a peste bubónica, fina na temperatura, alastrada nos bordados
das paredes ou nas crateras da cama. Os lençóis
nascem do linho que trepida
no abismo da terra, das sementes abraçadas pelas ramas
das nebulosa.
 
É perfeito o espelho quando apanha
um rosto nuclear.
Morre-se muito mais em cada doença, nesses
apartamentos que as noites sufocam
nos braços de mármore.
A energia das jóias.
O nó do sexo no espelho, as chamas agarradas
entre o umbigo e o ânus.
Esse trabalho da claridade quando as válvulas se destapam.
 
Correntes atómicas passam de lado a lado,
E ficam os buracos furiosos por onde o mundo
sopra
um meteoro a jacto, uma cara.
Os jardins deslocam-se através de si próprios
com as centelhas, defronte
das planas constelações dos espelhos.
 
E então, na assimetria severa, ela amaria
transformar-se,
súbita e solar – equinocialmente no espelho o relâmpago
côncavo de um girassol
espacial. Que sai assim do corpo: filões arrancados
desse mesmo espelho.
E ela imagina na teia de fogo a argila que se transmuda
em porcelana: a chuva labareda de uma chávena
expelida dos fornos.
E entre guardanapos, da mesa à boca,
arde em seu anel de estrela metalúrgica
a colher em órbita
- a assombrosa força terrestre da chávena.
E a infância desaparece nas funduras das casas,
nos jardins envoltos em nebulosas. O copo
com os electrões fechados.
 
 

3 comentários:

Anonymus disse...

«A poesia do Herberto é de difícil situação»
Mas que estranha forma de dizer uma coisa simples.
De difícil situação?
Não será antes «difícil de situar do ponto de vista estético-literário»?

Anónimo disse...

Caro anónimo: é bonito complicar (para alguns). Ninguém diz "recebi a sua carta" mas sim "recepcionei a sua carta" nem "vi qualquer coisa" mas "visualisei qualquer coisa". Quem vai dizer "acesso" podendo dizer "acessibilidade", ou "carecido" se pode dizer "carenciado"? Etc. etc. etc.

randomlessly disse...

Estão de parabens, adorei o post!

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