terça-feira, 4 de junho de 2013

FAZER UM BOM USO DOS CLÁSSICOS

Numa altura em que o estudo das humanidades tem sofrido tratos de polé do nosso sistema educativo e andado arredada de políticos que levam metade do tempo a dizer-nos o que vai acontecer e outra metade a dizerem-nos por que não aconteceu (como li sobre a definição humorada de economista!), é como um bálsamo para a alma ler textos como este do ensaísta Eugénio Lisboa publicado no Jornal de Letras ( 29/05/2013), que se transcreve abaixo por amável envio do seu autor presença sempre muito  grata neste blogue:

“Os clássicos são um descanso: pode-se pagar-lhes o tributo que lhes é devido, mesmo sem os ter lido. Se dissermos que Homero é grande, não corremos o risco de nos virem perguntar se, por acaso, já o lemos. Ele é grande, por definição, porque é um clássico, e continua a ser grande, quer o tenhamos lido quer não. A nossa opinião sobre ele é completamente irrelevante. Se por um bambúrrio qualquer, eu desse com um verso coxo, na Odisseia, ninguém me prestaria atenção. Homero é Homero e está tudo dito: quem devia estar coxo era eu...

Como digo, é um descanso. Isto mesmo tem sido reconhecido, com alguma maldade, por alguns escritores anglo-saxónicos (esses eternos questionadores e desmancha-prazeres, que, mesmo quando aplaudem, não se deixam entusiasmar!) Chesterton, por exemplo, no seu ensaio “Tom Jones and Morality”, observa, com desenvoltura escarninha: “Um grande clássico é um homem de quem se pode fazer o elogio sem o ter lido.” E Mark Twain, depois de ter dito o mesmo, quase palavra por palavra, em “Pudd’nhead Wilson”, agravou o ultraje, ao observar: “Um clássico é algo que toda a gente quer ter lido e ninguém quer ler” (“The Disapearance of Literature”).

Sim, sejamos sinceros (nada de batota): tirando Vasco Graça Moura e uns especialistas universitários, quem, entre nós, leu A Divina Comédia, do princípio ao fim? V. diz que leu? Mentiroso!

A propósito de Dante, li, num livro de Paul Morand, sobre a morte, uma história deliciosa e saboreadamente afrontosa. Conta-se que, estando Lope de Vega em “artigo de morte”, pediu que lhe levassem ao leito da dita, não um padre mas, antes, um médico. Chegado este, o grande dramaturgo e poeta explicou o seu problema: queria saber, tão exactamente quanto possível, o tempo que tinha de vida. É que tinha uma terrível confissão a fazer, mas esta era tão medonha, tão descomunal, que só teria ânimo de a fazer, se morresse logo a seguir. Não suportava a ideia de viver muito, depois de confessar aquela vergonha. O médico compreendeu a situação e fez um exame meticuloso ao moribundo, no final do qual lhe disse que, se tinha algo de que se queria aliviar, o melhor era fazê-lo depressa, porque o fio da vida estava mesmo a quebrar-se... Lope de Vega deu então um suspiro de alívio e sussurrou: “O que eu quero confessar é que acho o Dante tão chato!” Dito o que, cheio de sorte, morreu.

Podem tirar-se desta história várias conclusões, conforme as várias escolas de pensamento. Eu tiro, sobretudo, uma: a opressão intelectual que exerce sobre as pessoas a glória pesada dos grandes clássicos é tal, que nem “um monstro da natureza” como Lope se atreveu a dar, em tempo útil, uma opinião franca sobre um clássico que supinamente o chateava! Na sua segurança inabalável, os clássicos confortam mas também aterram! “Que sentido de segurança, num velho livro que o Tempo criticou por nós!”, suspirava James Russell Lowell, o poeta romântico, diplomata e abolicionista americano. É tão bom não termos que pensar nem afrontar opiniões contrárias... Repito: é um descanso.

A verdade, porém, é que toda esta indiscutida veneração, por mais que tenha a bênção do Tempo, me parece intelectualmente pouco saudável. Eu tenho todo o direito de achar, como achava um grande escritor francês, que a Ilíada é pueril (ele achava-a “idiota”). E não há razão para alaridos: tenhamos, sobre o assunto, uma sóbria e salutar conversa, eis tudo. Nisto, subscrevo, de todo o coração, o conselho do velho Lord Chesterfield, numa das suas cartas ao filho: “Fala dos modernos, sem desprezo, e dos antigos, sem idolatria; julga-os todos pelo mérito e não pela idade” (sempre o bom senso terráqueo e irritante destes ingleses, para quem tudo é sempre questionável – como na ciência!)

A inquestionada veneração pelo “clássico” pode até ter razões menos nobres: o seu “estabelecimento” definitivo assegura a carreira de muita gente, mesmo que alguns não disponham dos verdadeiros recursos necessários a uma fruição autêntica do que faz o real valor daquele. Os irmãos Goncourt, por exemplo, numa das “entradas” desenvoltas do seu Journal, não estiveram com papas na língua: “A Antiguidade foi criada para proporcionar aos professores o seu pão com manteiga.”
Há, nisto, admito, algum exagero. Mas há – e é, repito, intoleravelmente opressivo – um equivalente excesso, na admiração acrítica e beócia de um clássico, só porque, oficialmente, o é.

Dito o que fica para trás, para desatravancar o que se segue de qualquer aura de veneração beatífica, não custa aceitar que os clássicos, quando são bons, nos fazem boa serventia. Há até um bom livro a escrever sobre “o bom uso dos clássicos”. Em períodos difíceis da minha vida, o filósofo Vauvenargues ou, por exemplo, Schopenhauer, ajudaram-me a vencer a crise. No seu seminal ensaio sobre Goethe (“desde dientro”), o imprescindível Ortega y Gasset observa: “Só nos resta uma maneira de salvar um clássico: desistirmos de venerá-lo e usarmo-lo para a nossa própria salvação.” As conversas do autor do Fausto com Eckerman “salvaram-me”, de uma vez que estive à beira do abismo.

Tudo isto, a propósito de uma leitura que tenho andado a fazer de um clássico: os contos dos Irmãos Grimm. Aproveito para saudar a bela e exaustiva edição integral dos Contos da Infância e do Lar, com coordenação científica de Francisco Vaz da Silva e tradução, introdução e notas de Teresa AigaBairos. É esta que tenho andado a ler, devagar e muito mastigadamente, como gosto de fazer. Recomendo-a do modo mais enfático.No segundo volume, entre os 91 contos que comporta, escolho um para que alguém – não eu – possa fazer dele um bom uso. Por outras palavras, para que possa, salvando-se, salvá-lo (ou, salvando-o, salvar-se)... O conto intitula-se “O velho avô e o neto” e ocupa apenas três quartos de uma página (e mais uma “Nota” de página e meia).É curtíssimo, mas um forte teor de sabedoria fecunda pode acolher-se em modesto espaço... A diarreia verbal quase nunca é o melhor veículo.

No continho em questão, fala-se de “um homem muito, muito velho que ficou com os olhos turvos e os ouvidos surdos e os joelhos tremelicantes.” Dou a palavra aos Irmãos Grimm, para não estar a fazer paráfrases desnecessárias: “Quando estava sentado à mesa, mal conseguia segurar a colher e espalhava a sopa na toalha e deixava-a cair da boca. O filho e a nora tinham nojo dele e assim o velho avô acabou por ter de se sentar num canto atrás do fogão, e eles davam-lhe a comida numa tigelinha de barro e nem sequer a enchiam. E ele olhava tristemente para a mesa e vinham-lhe lágrimas aos olhos. Uma vez, as suas mãos tremelicantes não conseguiram segurar na tigelinha e ela caíu ao chão e partiu-se. A jovem mulher admoestou-o, mas ele não disse nada e apenas suspirou. Ela comprou-lhe então uma tigelinha de madeira por dois tostões e era dela que ele tinha que comer. Estando ali sentados, o pequeno neto começou a reunir uns pedacinhos de madeira do chão. «O que estás a fazer?», perguntou-lhe o pai. «Estou a fazer uma tigelita», respondeu o filho, «para dar de comer ao pai e à mãe quando for crescido». O homem e a mulher entreolharam-se por um momento e depois desataram a chorar.”

Na muito documentada “Nota”, que complementa o conto, os organizadores informam-nos de duas coisas: primeiro, da imensa variedade de versões que há, desta mesma história, o que testemunha a profundidade da ferida que deixou no imaginário universal; segundo, que já o poeta medieval Walther (von der Vogelweide) num seu poema, meditou sobre este tema dilacerante, em versos assim: Os jovens afastaram os velhos / E agora achincalham os velhos. / Isto não fica esquecido /  Até a vossa juventude ser esquecida: / O que aos velhos fizerdes os vossos jovens vo-lo farão".

Sugiro, pois, ao Círculo de Leitores que ofereça ao ministro Victor Gaspar e ao Primeiro Ministro Passos Coelho exemplares destes admiráveis contos de Grimm, à laia de pepita de sabedoria que ajude a evitar que, um dia, daqui a não muitos anos, eles tenham que “desatar a chorar”. O que aos velhos reformados e à velha e estimada Constituição eles andam repetidamente a fazer, agora, os filhos deles lho farão a eles também. O que eles têm congeminado e continuam a congeminar ultrapassa as marcas do decentemente aceitável. Mas cá se fazem, cá se pagam, como dizem os clássicos, quando acertam – e acertam um número assustador de vezes!


Eugénio Lisboa

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