Numa altura em que o estudo das humanidades tem sofrido
tratos de polé do nosso sistema educativo e andado arredada de políticos que
levam metade do tempo a dizer-nos o que vai acontecer e outra metade a
dizerem-nos por que não aconteceu (como li sobre a definição humorada de
economista!), é como um bálsamo para a alma ler textos como este do ensaísta
Eugénio Lisboa publicado no Jornal de Letras ( 29/05/2013), que se transcreve abaixo por amável envio do seu autor presença sempre muito grata neste blogue:
“Os clássicos são um descanso: pode-se pagar-lhes o tributo
que lhes é devido, mesmo sem os ter lido. Se dissermos que Homero é grande, não
corremos o risco de nos virem perguntar se, por acaso, já o lemos. Ele é
grande, por definição, porque é um clássico, e continua a ser grande, quer o
tenhamos lido quer não. A nossa opinião sobre ele é completamente irrelevante.
Se por um bambúrrio qualquer, eu desse com um verso coxo, na Odisseia, ninguém me prestaria atenção.
Homero é Homero e está tudo dito: quem devia estar coxo era eu...
Como digo, é um descanso. Isto mesmo tem sido reconhecido,
com alguma maldade, por alguns escritores anglo-saxónicos (esses eternos
questionadores e desmancha-prazeres, que, mesmo quando aplaudem, não se deixam
entusiasmar!) Chesterton, por exemplo, no seu ensaio “Tom Jones and Morality”,
observa, com desenvoltura escarninha: “Um grande clássico é um homem de quem se
pode fazer o elogio sem o ter lido.” E Mark Twain, depois de ter dito o mesmo,
quase palavra por palavra, em “Pudd’nhead Wilson”, agravou o ultraje, ao
observar: “Um clássico é algo que toda a gente quer ter lido e ninguém quer
ler” (“The Disapearance of Literature”).
Sim, sejamos sinceros (nada de batota): tirando Vasco Graça
Moura e uns especialistas universitários, quem, entre nós, leu A Divina Comédia, do princípio ao fim?
V. diz que leu? Mentiroso!
A propósito de Dante, li, num livro de Paul Morand, sobre a
morte, uma história deliciosa e saboreadamente afrontosa. Conta-se que, estando
Lope de Vega em “artigo de morte”, pediu que lhe levassem ao leito da dita, não
um padre mas, antes, um médico. Chegado este, o grande dramaturgo e poeta
explicou o seu problema: queria saber, tão exactamente quanto possível, o tempo
que tinha de vida. É que tinha uma terrível confissão a fazer, mas esta era tão
medonha, tão descomunal, que só teria ânimo de a fazer, se morresse logo a
seguir. Não suportava a ideia de viver muito, depois de confessar aquela
vergonha. O médico compreendeu a situação e fez um exame meticuloso ao
moribundo, no final do qual lhe disse que, se tinha algo de que se queria
aliviar, o melhor era fazê-lo depressa, porque o fio da vida estava mesmo a
quebrar-se... Lope de Vega deu então um suspiro de alívio e sussurrou: “O que
eu quero confessar é que acho o Dante tão chato!” Dito o que, cheio de sorte,
morreu.
Podem tirar-se desta história várias conclusões, conforme as
várias escolas de pensamento. Eu tiro, sobretudo, uma: a opressão intelectual
que exerce sobre as pessoas a glória pesada dos grandes clássicos é tal, que
nem “um monstro da natureza” como Lope se atreveu a dar, em tempo útil, uma opinião
franca sobre um clássico que supinamente o chateava! Na sua segurança
inabalável, os clássicos confortam mas também aterram! “Que sentido de
segurança, num velho livro que o Tempo criticou por nós!”, suspirava James
Russell Lowell, o poeta romântico, diplomata e abolicionista americano. É tão
bom não termos que pensar nem afrontar opiniões contrárias... Repito: é um
descanso.
A verdade, porém, é que toda esta indiscutida veneração, por
mais que tenha a bênção do Tempo, me parece intelectualmente pouco saudável. Eu
tenho todo o direito de achar, como achava um grande escritor francês, que a Ilíada é pueril (ele achava-a “idiota”).
E não há razão para alaridos: tenhamos, sobre o assunto, uma sóbria e salutar
conversa, eis tudo. Nisto, subscrevo, de todo o coração, o conselho do velho
Lord Chesterfield, numa das suas cartas ao filho: “Fala dos modernos, sem
desprezo, e dos antigos, sem idolatria; julga-os todos pelo mérito e não pela
idade” (sempre o bom senso terráqueo e irritante destes ingleses, para quem
tudo é sempre questionável – como na ciência!)
A inquestionada veneração pelo “clássico” pode até ter razões
menos nobres: o seu “estabelecimento” definitivo assegura a carreira de muita
gente, mesmo que alguns não disponham dos verdadeiros recursos necessários a
uma fruição autêntica do que faz o real valor daquele. Os irmãos Goncourt, por
exemplo, numa das “entradas” desenvoltas do seu Journal, não estiveram com papas na língua: “A Antiguidade foi
criada para proporcionar aos professores o seu pão com manteiga.”
Há, nisto, admito, algum exagero. Mas há – e é, repito,
intoleravelmente opressivo – um equivalente excesso, na admiração acrítica e
beócia de um clássico, só porque, oficialmente, o é.
Dito o que fica para trás, para desatravancar o que se segue
de qualquer aura de veneração beatífica, não custa aceitar que os clássicos,
quando são bons, nos fazem boa serventia. Há até um bom livro a escrever sobre
“o bom uso dos clássicos”. Em períodos difíceis da minha vida, o filósofo
Vauvenargues ou, por exemplo, Schopenhauer, ajudaram-me a vencer a crise. No
seu seminal ensaio sobre Goethe (“desde dientro”), o imprescindível Ortega y
Gasset observa: “Só nos resta uma maneira de salvar um clássico: desistirmos de
venerá-lo e usarmo-lo para a nossa própria salvação.” As conversas do autor do Fausto com Eckerman “salvaram-me”, de
uma vez que estive à beira do abismo.
Tudo isto, a propósito de uma leitura que tenho andado a fazer
de um clássico: os contos dos Irmãos Grimm. Aproveito para saudar a bela e
exaustiva edição integral dos Contos da
Infância e do Lar, com coordenação científica de Francisco Vaz da Silva e
tradução, introdução e notas de Teresa AigaBairos. É esta que tenho andado a
ler, devagar e muito mastigadamente, como gosto de fazer. Recomendo-a do modo
mais enfático.No segundo volume, entre os 91 contos que comporta, escolho um
para que alguém – não eu – possa fazer dele um bom uso. Por outras palavras,
para que possa, salvando-se, salvá-lo (ou, salvando-o, salvar-se)... O conto
intitula-se “O velho avô e o neto” e ocupa apenas três quartos de uma página (e
mais uma “Nota” de página e meia).É curtíssimo, mas um forte teor de sabedoria
fecunda pode acolher-se em modesto espaço... A diarreia verbal quase nunca é o
melhor veículo.
No continho em questão, fala-se de “um homem muito, muito
velho que ficou com os olhos turvos e os ouvidos surdos e os joelhos
tremelicantes.” Dou a palavra aos Irmãos Grimm, para não estar a fazer
paráfrases desnecessárias: “Quando estava sentado à mesa, mal conseguia segurar
a colher e espalhava a sopa na toalha e deixava-a cair da boca. O filho e a
nora tinham nojo dele e assim o velho avô acabou por ter de se sentar num canto
atrás do fogão, e eles davam-lhe a comida numa tigelinha de barro e nem sequer
a enchiam. E ele olhava tristemente para a mesa e vinham-lhe lágrimas aos
olhos. Uma vez, as suas mãos tremelicantes não conseguiram segurar na tigelinha
e ela caíu ao chão e partiu-se. A jovem mulher admoestou-o, mas ele não disse
nada e apenas suspirou. Ela comprou-lhe então uma tigelinha de madeira por dois
tostões e era dela que ele tinha que comer. Estando ali sentados, o pequeno
neto começou a reunir uns pedacinhos de madeira do chão. «O que estás a
fazer?», perguntou-lhe o pai. «Estou a fazer uma tigelita», respondeu o filho,
«para dar de comer ao pai e à mãe quando for crescido». O homem e a mulher
entreolharam-se por um momento e depois desataram a chorar.”
Na muito documentada “Nota”, que complementa o conto, os
organizadores informam-nos de duas coisas: primeiro, da imensa variedade de
versões que há, desta mesma história, o que testemunha a profundidade da ferida
que deixou no imaginário universal; segundo, que já o poeta medieval Walther
(von der Vogelweide) num seu poema, meditou sobre este tema dilacerante, em
versos assim: Os jovens afastaram os
velhos / E agora achincalham os velhos. / Isto não fica esquecido / Até a vossa juventude ser esquecida: / O que
aos velhos fizerdes os vossos jovens vo-lo farão".
Sugiro, pois, ao Círculo de Leitores que ofereça ao ministro
Victor Gaspar e ao Primeiro Ministro Passos Coelho exemplares destes admiráveis
contos de Grimm, à laia de pepita de sabedoria que ajude a evitar que, um dia,
daqui a não muitos anos, eles tenham que “desatar a chorar”. O que aos velhos
reformados e à velha e estimada Constituição eles andam repetidamente a fazer,
agora, os filhos deles lho farão a eles também. O que eles têm congeminado e
continuam a congeminar ultrapassa as marcas do decentemente aceitável. Mas cá
se fazem, cá se pagam, como dizem os clássicos, quando acertam – e acertam um
número assustador de vezes!
Eugénio Lisboa
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