domingo, 2 de junho de 2013

"Ciência e liberdade", n.º 200 da Ciência Aberta


Início do livro "Ciência e Liberdade" de Timothy Ferris, n.º 200 da Colecção Ciência Aberta da Gradiva:

"A liberdade [...] é a grande mãe da ciência e da virtude; e [...] uma nação será grande em ambas, sempre na medida da sua liberdade."

THOMAS JEFFERSON A JOSEPH WILLARD, 1789

"A ciência enquanto subversão tem uma longa história."

FREEMAN DYSON, 1989

"Ao longo dos últimos séculos, duas transformações — uma científica, outra democrática — alteraram a maneira de pensar e o bem-estar da espécie humana. A revolução científica está ainda a ganhar velocidade, mas já revelou mais sobre o universo do que tudo aquilo que se tinha aprendido anteriormente ao longo da história, enquanto as aplicações tecnológicas do conhecimento científico salvaram milhões de pessoas da pobreza, da ignorância, do medo e de uma morte prematura.

A revolução democrática fez chegar a liberdade e a igualdade de direitos a quase metade dos habitantes do globo, tornando a democracia o sistema preferido dos povos esclarecidos, um pouco por toda a parte.

Estas duas transformações estiveram e continuam a estar ligadas: no final do século XX, todas as nações científicas do mundo eram democracias liberais, ou pelo menos parcialmente liberais (o que significa um Estado que garante os direitos humanos aos seus cidadãos, os quais elegem os seus dirigentes). De que forma, porém, estão elas ligadas?

O cenário que a maior parte de nós aprendeu na escola apresenta estas transformações em três actos - o Renascimento, a revolução científica e o Iluminismo.

Na Renascença (ou Renascimento, entre cerca de 1450 e 1600), os textos clássicos gregos e romanos foram disponibilizados aos europeus através do comércio com o mundo árabe, produzindo uma profusão de arte e pensamento humanísticos, assim como alguns rebentos de ciência— como quando, em 1543,

Copérnico demonstrou que os movimentos dos planetas nos céus podiam ser tão facilmente explicados pelo movimento da Terra em volta do Sol como pela velha cosmologia centrada na Terra. A resultante efervescência de pensamento humanístico e científico acabaria por produzir o Iluminismo, que, por sua vez, desencadeou a revolução democrática. Por este motivo, o Iluminismo é frequentemente referido como tendo começado com a revolução inglesa de 1688 e terminado com a Revolução Francesa, de 1789. Entretanto, por alguma razão, deu-se uma revolução científica e assim surgiu o mundo moderno.

O cenário tradicional funciona razoavelmente como âmbito de estudo, mas retrata a ascensão simultânea da ciência e da democracia liberal como pouco mais do que uma série de coincidências. A situação torna-se mais clara se nos interrogarmos sobre o que havia de novo: qual foi o ingrediente inovador — o cristal lançado no líquido supersaturado que o fez solidificar subitamente — sem o qual a revolução democrática não teria ocorrido?

Este livro defende que esse novo ingrediente foi a ciência. Afirma que a revolução democrática foi desencadeada — provocada talvez não seja uma palavra demasiado forte — pela revolução científica e que a ciência continua, ainda hoje, a alimentar a liberdade política. Não se trata apenas de a criatividade científica ter produzido melhorias tecnológicas, que, por sua vez, contribuíram para aumentar a prosperidade e a segurança das nações científicas, embora isso seja uma parte da história; trata-se de as liberdades garantidas pelas democracias liberais serem essenciais para facilitar a investigação científica e de a democracia ser ela própria um sistema experimental sem o qual nem ciência nem liberdade podem florescer.

A fim de investigar esta afirmação e as suas implicações, este livro propõe-se fazer três coisas.

Primeiro, explora a relação histórica entre ciência e liberdade desde o Renascimento até ao final do século XVIII, analisando a ciência como um empreendimento contínuo que requer liberdade de expressão, de circulação e de associação. Defende que o cepticismo científico é corrosivo para o autoritarismo e que a experimentação científica constitui um melhor modelo para a governação do que qualquer dos sistemas que a precederam.

Segundo, o livro esboça a evolução das sociedades democráticas e científicas a partir do século XVIII, para tentar perceber de que forma as ideias e as práticas da ciência influenciaram as suas políticas sociais. Até certo ponto, isso equivale a testar o argumento fazendo previsões retroactivas sobre o que teria acontecido se a ciência promovesse, efectivamente, a liberdade e a democracia.

Reconheço que este procedimento é facilmente susceptível de abuso — qualquer um poderá, hoje em dia, sabendo como as coisas se desenrolaram, peneirar a documentação existente em busca de factos que confirmem a sua argumentação —, mas são essas as contingências da história.

Finalmente, o mundo actual é analisado à luz da ciência e da liberdade — tendo em conta as poderosas forças anticientíficas que ensombram os nossos tempos — revelando, surpreendentemente, por entre uma amálgama de problemas, grandes razões de esperança. A palavra «ciência» deriva do termo latino scientia, que significa conhecimento. Nesse sentido mais lato da palavra, Anaximandro de Mileto poderá ser considerado um biólogo por ter proposto, no século VI a. C., que os seres humanos descendiam dos peixes e Aristarco de Samos um astrónomo, uma vez que, no século III a. C., sugeriu que a Terra girava à volta do Sol. O problema com esta abordagem é que ela faz um cientista de qualquer filósofo que possa ter exprimido uma opinião razoavelmente rigorosa sobre um tema que depois disso se tornou efectivamente uma ciência. Especular e ter razão não é o mesmo que fazer ciência. Como observou o filósofo norte-americano Alfred North Whitehead: «Tudo o que é importante já foi dito anteriormente por alguém que não o descobriu.» A essência da ciência é a experimentação e só alguns pensadores antigos realizaram experiências científicas, entre os quais Eratóstenes de Cirene, que fez uma medição geométrica do diâmetro da Terra no século III a. C.; Estratão de Lâmpsaco, que fez experiências com vácuo e ar comprimido, por volta da mesma época, e Galeno, que, um pouco mais tarde, dissecou cadáveres de animais e de seres humanos.

Assim, por uma questão de clareza, este livro usará o termo «ciência» para referir aquilo que é frequentemente designado por ciência moderna — ou seja, a investigação que envolve observação e experimentação, conduzida como um empreendimento social contínuo por cientistas profissionais, que trabalham em laboratórios e dão contributos para conferências e revistas da sua especialidade.

Liberdade significa respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades individuais. Na prática, os governos que conseguiram isso eram quase todos democracias liberais, de modo que a ascensão da liberdade pode ser aproximadamente equiparada à ascensão da democracia liberal. Este processo começou lentamente, mas acelerou muito durante os últimos cem anos. Em 1900 não havia uma única democracia liberal em todo o mundo (uma vez que nenhuma tinha ainda sufrágio universal); em 1950 havia vinte e duas e em 2009, apesar de recentes reveses, havia oitenta e nove democracias, abrangendo 46 por cento da população mundial. (...)"

Timothy Ferris


5 comentários:

perhaps disse...

Que não aconteça com a liberdade o que tanta vez acontece à literacia: ser apenas funcional.

José Batista disse...

Na esperança e na convicção de que a presente ofensiva do capitalismo selvagem, extremista e violento, tenha um fim a breve trecho (que nunca será tão breve assim nas consequências que já provocou) por exigência de todos os que não querem ver morta a liberdade e a ciência restrita aos que com ela pretendem dominar o mundo.
Liberdade sim. Lutemos por ela. Senão passa rapidamente ao estado de "funcional" como dito por "perhaps", ou mesmo ficcional, como já vai sendo.

Cláudia da Silva Tomazi disse...

De qualquer forma, merece em natural que o pensamento firme-se através da ciência. Prova?! Ao termo cientista profissional, ganha de breve descrição.

Carlos Ricardo Soares disse...

Tornaram a palavra liberdade tão sacrossanta, tão sacrossanta, que é tão ou mais importante para quem a tem, como para quem a não tem. A liberdade sempre existiu e sempre inexistiu. Em todos os regimes políticos. O mal da liberdade é quando uns a "ab"usam contra os outros. A liberdade de uns é a sujeição e a opressão dos outros. Quanto maior for a liberdade de uns maior é a sujeição e a opressão dos outros. Conquistar a liberdade, a partir de certo ponto, pode ser impossível mas, para quem goza de liberdade esta deixa de ser uma conquista para passar a ser uma mera consequência. A liberdade é o que tem permitido a uns escravizar os outros. Mas não é por esta razão, certamente, que a liberdade é boa e que devemos lutar por ela. Parece-me que os problemas levantados pela liberdade, em grande medida, ainda estão por resolver e a ciência, embora não seja bom que seja instrumento de vontades e de poderes que não respeitem o direito à liberdade de quem a não tem, não tem maneira de escapar a isso.

maria disse...

acho curioso como é que alguém vendo no que deu a democracia representativa afirme que esta continua sendo fonte de liberdade ; também acho curioso que alguém que viva na época em que até se quer "prender" sementes a mando de multinacionais muito cientificas diga que a ciência continua fonte de liberdade. puro pensamento mítico.

quem disse isto " todas as instituições humanas passam por 3 estádios : a utilidade , o privilégio e , por fim , o abuso " tinha carradas de razão .

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...