domingo, 9 de junho de 2013

DO CRISTAL-PEDRA DE TEOFRASTO À FÍSICA DO ESTADO SÓLIDO

TERCEIRA PARTE: SÉCULOS XIX E XX (CONTINUAÇÃO)
(A primeira e segunda partes podem ser lidas a partir daqui)


François Ernest Mallard (1833-1894), geólogo e engenheiro de minas francês, ensinou mineralogia na Escola Nacional Superior de Minas de Paris, tendo sido professor de Friedel, e foi como mineralogista e cristalógrafo que se notabilizou ao levar a cabo alguns dos trabalhos científicos mais notáveis do seu tempo, com destaque para a memória Explication des phénomènes optiques anormaux que présentent un grand nombre de substance cristallines, publicada em 1876.

Deve-se-lhe ainda a obra em dois volumes, Traité de cristallographie géométrique et physique, (1879 e 1884).Tendo dado particular atenção às maclas (geminações), inovou conhecimentos sobre este tipo de edifícios cristalinos, como a que ficou conhecida por Teoria das Maclas de Mallard.

Na Rússia, alguns anos mais tarde,Yevgraf Stepanovich Fedorov (1853-1919), matemático, cristalógrafo e mineralogista, deduzia os 230 grupos espaciais na estrutura cristalina, independentemente do matemático alemão Arthur Moritz Schönflies (1853-1928) e do geólogo inglês William Barlow (1845-1934). Entretanto, o físico alemão Leonhard Sohncke (1842-1897) já havia derivado 65 dos referidos grupos.

Doutorado pela Universidade de Berlim, em 1877, Schönflies aplicou a teoria dos grupos à cristalografia e, assim, acabou por deduzir os mesmos 230 grupos espaciais, que publicou em 1892, em paralelo e, como se disse, independentemente de Fedorov e de Barlow. Este dedicou-se inteiramente, como amador, ao estudo da matéria cristalina, tendo concluído também que apenas podiam existir 230 diferentes formas de simetria cristalina, conhecidas como grupos espaciais. Estes seus resultados só foram, porém, publicados em 1894, após terem sido anunciados separada e independentemente por Fedorov e por Schönflies. Os seus modelos estruturais de compostos simples, tais como, o da halite (cloreto de sódio), foram confirmados posteriormente por difractometria de raios X.

Este tema foi retomado um século depois pelo cristalógrafo norte-americano, Ralph Walter Graystone Wyckoff (1897-1994), ao publicar, em 1922, um livro que, entre outros ensinamentos, contém as tabelas com as coordenadas de posicionamento, gerais e especiais, autorizadas pelos elementos de simetria.

Numa época em que a teoria atómica de Dalton já estava bem estabelecida, Em 1877, fundou a revista Zeitschrift für Krystallographie und Mineralogie e, posteriormente, serviu como seu editor até 1920. Em 1888, foi o primeiro a sugerir a possibilidade de átomos, que imaginou como crepúsculos esféricos, se disporem em posições bem definidas na rede cristalina, o que deu significado físico a uma ideia ainda um tanto ou quanto abstracta da repetição regular e simétrica do espaço.

Nas pisadas de Mallard, o seu discípulo francês Georges Friedel (1865-1933) foi, sobretudo, um mineralogista e cristalógrafo que, na sua memorável obra, publicada em 1822, inovou grande parte da actual terminologia em uso na física dos cristais líquidos ou mesofases. Com recurso à difracção de raios-X, este engenheiro de minas aprofundou os trabalhos do fundador da cristalografia estrutural, Auguste Bravais, tendo publicado, em 1913, Sur les symétries cristallines que peut révéler la diffraction des rayons Röntgen, onde enunciou a que ficou conhecida por Lei de Friedel.

Prémio Nobel de Física, em 1915, o inglês William Henry Bragg (1862-1942), juntamente com o seu filho, William Laurence Bragg, criaram e puseram em prática o espectrómetro de raios X, abrindo as portas a uma via de análise da estrutura dos cristais por difractometria desta radiação, uma tecnologia descoberta em 1912 pelo físico alemão Max von Laue (1879-1960), laureado, por isso, com o Nobel de Física, em 1914, criando as bases da cristalografia estrutural. Esta inovação, com reflexos imediatos e frutuosos na cristalografia estrutural e na mineralogia, valeu-lhe, a ele e ao filho, o referido galardão.

O mineral braggite, um sulfureto de níquel, platina e paládio, associado aos noritos do complexo Bushweld, na África do Sul, o primeiro novo mineral a ser isolado e determinado recorrendo aos raios X, foi assim chamado em homenagem aos Bragg pai e filho.

Numa derradeira ligação à cristalografia geométrica e matemática, o cristalógrafo e mineralogista francês, Charles-Victor Mauguin (1878-1958), fundador da União Internacional de Cristalografia, criou, em parceria com o alemão Carl Hermann (1898-1961), uma simbologia padrão para os grupos cristalográficos, internacionalmente adoptada, conhecida como a “notação de Hermann-Mauguin” ou “notação internacional”.

Mauguin foi professor de Mineralogia nas Universidades de Bordéus, Nancy e Paris (Sorbonne), onde enveredou por estudos de mineralogia e cristalografia por difracção de raios X. ensinou na Politécnica de Darmstadt e na Universidade de Marburgo, como professor da recém-criada cadeira de Cristalografia, tendo aí ocupado o cargo de director do Instituto de Cristalografia.

O termo hermannite, criado em sua homenagem, é sinónimo obsoleto da rodonite, uma espécie afim das piroxenas. Em 1983, o português José Lima de Faria propôs uma nova sistemática dos minerais com base na adaptação da classificação das estruturas inorgânicas que definiu em 1976, em colaboração com Maria Ondina Figueiredo.

Trata-se de uma extensão da física do estado sólido (já experimentadas nos silicatos, nos boratos e nos fosfatos) a todos minerais e baseia-se na distribuição e no carácter direccional das forças de ligação entre os átomos nas redes cristalinas. Esta nova abordagem foi aprovada pela Comissão de Nomenclatura da International Union of Crystallography, em 1990.

A classificação estrutural de Lima de Faria, apresentada à comunidade científica internacional, em língua inglesa, comporta cinco grandes conjuntos: atomic – configurado por átomos isolados num empilhamento compacto de átomos, exemplificado por espécies quimicamente muito diferentes ente si, como galena, halite, rútilo, zircão, ouro; group – definido pela predominância do carácter direccional das forças de ligação em arranjos de átomos associados em grupos finitos (anéis, por exemplo); reúne pirite e alguns carbonatos, nitratos, boratos e muitos silicatos; chain - definido pela predominância do carácter direccional das forças de ligação em arranjos de átomos associados em grupos infinitos unidireccionais, em cadeias; reúne cinábrio, piroxenas, anfíbolas; sheet – definido pela predominância do carácter direccional das forças de ligação em arranjos de átomos associados em grupos infinitos bidireccionais, desenvolvendo-se em superfície, em folhas; reúne micas, minerais das argilas, grafite; framework - definido pela predominância do carácter direccional das forças de ligação em arranjos de átomos associados em grupos infinitos reticulados tridimensionais, em volume; reúne diamante, quartzo e feldspatos, entre outros.

Acontece, porém, que as fórmulas estruturais e todo o conjunto de notações utilizadas na cristalografia estrutural não fazem parte da generalidade dos curricula, ao contrário do que se passa com as fórmulas químicas clássicas, em uso para a generalidade das espécies minerais.

O salto em frente está a ser dado pelos defensores desta nova maneira de arrumar os minerais numa perspectiva de futuro. Está, porém ainda longe de se impor nas colecções dos museus, das escolas e dos coleccionadores (cada vez mais numerosos, a nível mundial) e de figurar nos manuais de ensino. Se é certo que o progresso científico assenta na criatividade, a história mostra como é difícil mudar hábitos arreigados. A novíssima classificação de Lima de Faria goza de reputação internacional, mas a inovação não é fácil e necessita de tempo, As bases da classificação estrutural alargada a todos os minerais estão, pois, lançadas.

Em conclusão, pode dizer-se que a cristalografia passou da forma exterior dos cristais à teorização sobre a sua estrutura interna. Por outras palavras o seu objecto de estudo passou das propriedades geométricas dos poliedros cristalinos à descrição das estruturas cristalinas ideais e, actualmente, ao estudo das suas estruturas reais, das suas propriedades e dinâmica.

Embora mais afastada da geologia e de se ter convertido numa física do estado sólido, com aplicações em muitos domínios científicos (física, química, mineralogia, ciência dos materiais, farmácia e biologia) e tecnológicos (tão diversos como da engenharia de cristais à biotecnologia e medicina, ou da nanotecnologia à química supramolecular), a sua actualidade e importância ficam demonstradas pela declaração oficial, pelas Nações Unidas, de 2014 como o Ano Internacional da Cristalografia.

A. Galopim de Carvalho

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