sexta-feira, 21 de junho de 2013
Os últimos dias da Bear Stearns
Poucos meses depois de ter levado na tromba com a evidência de que alguns do modelos que andava a desenvolver poderiam estar enfermos de algumas fragilidades (ainda hoje não verificadas, no entanto, pelo menos no meu caso) e que me fizeram voltar à academia para encontrar explicações diferentes, chegou-me às mãos um artigo jornalístico chamado "The Last Days of Bear Stearns" * sobre o colapso de um dos maiores e mais antigos bancos de investimento do mundo. O caso, usado em inúmeras homilias "contra o monstro capitalista dos especuladores da economia de casino", é muito interessante. Infelizmente, ainda hoje muito interessante. E que está de alguma forma ligado à discussão sobre a origem da economia.
Resumindo a história, "a" Bear Stearns ** era um banco de investimento que faria qualquer banco de investimento luso parecer uma casa de câmbios. 33 000 empregados (mais ou menos o dobro da CGD) e uma presença global; tinha sobrevivido à Grande Depressão e, em Março de 2008, alguns meses depois do valor das suas acções em bolsa ser cerca de 135 USD, foi vendido ao seu rival JP Morgan a 10 USD por acção num cenário de completa insolvência. Apelando aos leitores que se livrem de moralismo e preconceitos relativamente ao negócio das finanças, isto é, que não ache que "foi a gula dos banqueiros!" ou que "andaram a jogar no casino!" são respostas válidas para explicarem este fenómeno, irei ao ponto verdadeiramente interessante da coisa: O colapso da Bear Stearns foi uma coisa de dias. Não de 30 ou 143 dias, mas de 4 dias. Em 4 dias, um banco sofre o impacto do que tiver que sofrer, entra em colapso e é vendido. Confessem que isto, no mínimo, é excitante!
Então lembro-me de, intuitivamente, ter pensado que isto não seria possível na geometria que estava subjacente a todos os modelos de risco que usávamos. A ideia de que a economia é um enorme banho contínuo de agentes económicos que "chocam" uns com os outros de forma aleatória não era compatível com este fenómeno. Então uma singela frase da notícia traz-me a um cenário "horrendo": Dois dos fundos da Bear tinham falido no Verão anterior. Isto significa que alguns milhares de clientes do banco tinham perdido todo o dinheiro investido e o resultado de tal tragédia para milhares de clientes foi... que o valor das acções subiu dos 90 para os tais 135 USD. Antes de me lançar aos moralismos e preconceitos de que gosto muito pouco, resolvi simular este episódio recorrendo a um tipo de programa de computador chamado "multi-agent model" em que se criam objectos com acções estupidamente simples perante vários cenários, também simples, para que, no fim, possamos entender o comportamento do sistema. Isto confirmou a minha suspeita: não é possível numa completa aleatoriedade que o banco tivesse falido daquela forma; a geometria da economia em torno do banco teria que ser algo completamente heterogéneo. Porquê? Porque a tragédia de milhares de clientes não provocou qualquer mossa em meio ano, pelo contrário, e bastou a suspeita da Goldman Sachs (ver a notícia) para que o banco colapsasse por completo, quase instantaneamente.
Para que é que isto serve? Bem, voltando à nossa conversa sobre a origem da economia, esta tem que nos dar alguma coisa que nos justifique essa geometria tão heterogénea que Pareto já tinha identificado no início do século XX (cujo nome serviu para de baptizar a forma matemática da distribuição de riqueza). Não havendo a atracção para consumir coisas novas, não sendo a economia um solução divergente da selecção natural, não seria possível que a riqueza tivesse a distribuição que tem ou que a Bear Stearns pudesse falir instantaneamente por causa de uns quantos emails. Não só Pareto *** tinha razão no início do século XX, como tinha descoberto algo de muito mais estrutural.
Mas há uma informação prática mais importante ainda e que resulta de um singelo detalhe em toda a história. A Bear Stearns era o banco de investimento com um dos melhores rácios de capital de toda a indústria financeira americana: nunca desceu abaixo dos 10%, de acordo com o regulador da altura, a SEC. O número de 10% é exactamente o número que a troika exigiu que os bancos portugueses tivessem para aguentar o impacto dos riscos acrescidos pela insolvência do estado português de 2011. Com que base este número é obtido? Avaliam-se os riscos de todas as posições do banco e ponderam-se as posições em função dos riscos que acartam. Pega-se no capital do banco (o dinheiro dos accionistas) e divide-se por esta soma.
Onde é que está o problema? Na frase "Avaliam-se os riscos.. ". A verdade é que os riscos da Bear Stearns avaliaram-se como se a economia fosse um enorme banho de agentes que "chocam" aleatoriamente. Só que a economia não é um sistema onde os agentes chocam aleatoriamente. O facto da sua origem ser (ou aparentar ser) um sistema divergente leva a uma geometria completamente heterogénea que explica os resultados de Pareto e a falência explosiva da Bear. E, na prática, onde é que está o problema? Bem, confiando que alguns leitores estão à espera de lançar uma frase como "a culpa é das agências de rating ao serviço dos especuladores da economia de casino", deixem-me dizer-lhes que as leis que regulam os bancos, e que mandam os bancos avaliar os riscos, supõem que a economia é um banho de agentes que chocam aleatoriamente e, portanto, os 10% que a troika exigiu (tal como os 8% que são exigidos pela regulação bancária global) não valem um caracol. Aprendemos alguma coisa com o colapso da Bear? Claro. Mas nada que seja usado pela regulação bancária europeia...
Voltando à origem da economia: como é que este troca-tintas do Cruz passa da falência de um banco de investimento para a origem da economia? Se a economia tivesse surgido de uma mera cooperação que existe para vencer um constrangimento natural, a geometria seria aquela que a regulação bancária espera que seja, um banho de trocas que são criadas e interrompidas à medida que os constrangimentos surgem. Uma alternância equilibrada entre "tenho comichão nas costas e portanto vamo-nos coçar um ao outro" e "já tenho as costas coçadas, larga-me!". Como a economia é uma solução divergente, a geometria resultante é uma estrutura altamente heterogénea a que se dá o nome de "rede livre de escala". Embora haja quem diga que bastaria a regulação bancária dizer o que é para ficar demonstrado o contrário... (mas não eu!).
Espero já estar a captar alguns entusiastas para o assunto, mas a história vai continuar........
REFERÊNCIAS:
* Ainda disponível online em http://money.cnn.com/2008/03/28/magazines/fortune/boyd_bear.fortune/ . Hoje há livros inteiros sobre a história, para quem for fanático destas coisas. Eu fico-me pelos bonecos....
** Os bancos de investimento ainda se tratam no feminino como "a" casa de investimento porque não eram bancos no aspecto formal.
*** http://en.wikipedia.org/wiki/Vilfredo_Pareto
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11 comentários:
A economia não é a minha área, nem tenho tempo para seguir os links indicados. Mas, numa análise à distância, o mundo da alta finança parece-me ser mais o reino do caos, no sentido matemático do termo. Pequenas variações nas condições iniciais podem transformar-se em tempo finito em perturbações em larga escala, o que torna as tentativas de previsões deterministas altamente falíveis e mais do reino do jogo de casino. Acresce que, pelo que vou lendo, o termo "investidor" adquiriu na Europa e nos EUA um sentido pernicioso, como sendo aquele que coloca o seu dinheiro em activos financeiros mais ou menos tóxicos, mais ou menos especulativos, na esperança de obter mais-valias a curto prazo e não o que o aplica em alguma actividade produtiva de onde resultem bens transaccionáveis.
No que a matemática diz respeito, sim João, economia é, por definição, um processo multiplicativo e, se adicionarmos que este processo multiplicativo se passa num meio discreto, essas variações de tamanho arbitrário quase instantâneas são aquelas que devem ser esperadas. Agora é só convencer o pessoal da regulação (Basileia, Banco de Portugal, BCE) que isso não é a mesma coisa que um gás perfeito em equilíbrio, de onde eles vão buscar os modelos...
De resto, o que é "tóxico" depende muito do "inquisidor". Se reparar bem, passou-se a chamar "tóxico" a tudo aquilo que ultrapasse o mero crédito ou depósito como se fosse uma espécie de bruxaria. Mas é um bom tema para um post, sim. E mais valias a curto prazo é que todos procuramos, uns alavancando com as ferramentas que têm, outros com dinheiro.
Mas obrigado pelo comentário.
Muito interessante. Mas todas os sistemas evolutivos são divergentes. Fuga ao equilíbrio, através de mecanismos como o perferencial attachement. O que tem a economia de especial? É mais complexa por são agentes com capacidades cognitivas (pelo menos alguns :) ) capazes de agir por antecipação.
Penso que não percebeu o meu comentário. Talvez desconheça a vertente da Matemática que dá pelo nome de Teoria do Caos. Não sou um especialista mas, grosso modo, existem equações diferenciais, eventualmente dependentes de parâmetros, que são altamente instáveis, no sentido em que se se variarem ligeiramente as condições iniciais, as soluções dessas equações (algumas só determinadas numericamente) apresentam variações enormes num tempo finito. É comum usar-se a citação, penso que de Edward Lorenz, sobre o bater de assas de uma borboleta na China e o furacão na América. Isso torna a previsão determinista a médio prazo desses sistemas altamente falível (veja-se o prazo de validade das previsões meteorológicas). Pouco sabendo dos detalhes do mundo da alta finança, a mim parece-me que o pânico, a ansiedade, a vontade de fazer dinheiro, ou de não o perder todo, num determinado dia e não noutro e por aí fora, tornam estes sistemas altamente caóticos. Tal como na Matemática dos sistemas caóticos, é possível fazer previsões nestes sistemas mas são mais de índole genérica e qualitativa e não do tipo "qual vai ser a cotação desta acção daqui a uma semana" ou "quando será o próximo crash".
Já agora, deixe-me dizer mais uma coisa. Essa ideia que o que interessa é fazer dinheiro, qualquer que seja a forma, é que nos está a pôr onde estamos. Para uma meia dúzia nadar nele, há muitos que ficam nas lonas. Seria um passo em frente se, ao mesmo tempo que alguns preocupam em fazer dinheiro, se preocupassem também em criar algo de concreto e não apenas umas linhas no ecrân de um qualquer yuppie.
Essa é uma opinião e opiniões, obviamente, são para respeitar.
Na matemática, sim tem razão. Mas sabe-se um pouco mais da economia já (não ache estranho esta expressão, mas sabe-se bem mais de física que de economia...) que nos permite ser menos generalistas.
A resposta a essa pergunta seria outra pergunta: "o que o preferential attachment" tem de especial para ser tratado fora da economia?" :)
Mas essa levava-nos a uma discussão matemática muito espessa!
Vai lá e vem cá...é a mesma coisa.
Gosto de matemática financeira.
Parabéns pelo interessante texto. Os modelos económicos são muito frágeis porque se baseiam em pressupostos muitas vezes falsos sobre os comportamentos dos agentes económicos. Por exemplo, do ponto de vista da economia clássica, cada agente económico visa apenas o máximo lucro, ainda que erre muitas vezes no seu comportamento devido a falta de informação ou interpretação errada da informação disponível. Mas a verdade é que em algumas circunstâncias os agentes económicos reais preferem perder dinheiro para apanhar "free riders", por exemplo, a ficar com mais dinheiro. Isto faz todo o sentido em termos evolutivos, mas foi uma surpresa quando descobrimos isto porque viola uma das ideias básicas da economia clássica.
Ser economista ou ecomunista? Meu caro, lastimo que se tenha interessado pela actual economia, dita "ciência" económica. Coisa "eco", mais de mulheres portanto, nunca deixou de ser uma ciência social. Foi a matematicidade, para impressionar os leigos, que fez dela a porcaria que é hoje. Bahhhh
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