sexta-feira, 24 de maio de 2013

DO CRISTAL-PEDRA DE TEOFRASTO À FÍSICA DO ESTADO SÓLIDO

PRIMEIRA PARTE: DA ANTIGUIDADE AOS FINAIS DO SÉCULO XVIII



Aristóteles (384-322 a. C.) chamava cristal ao gelo (krystallos, em grego) e é sabido que, desde então e até ao século XVIII, se acreditou que os cristais de quartzo hialino, isto é, o incolor e transparente, eram ocorrências de água no estado sólido, num grau de congelação tão intenso que era impossível fazê-los voltar ao estado líquido. E foi assim, sob este nome, que a variedade hialina de quartzo passou aos domínios da alquimia, primeiro, e da mineralogia, depois.

Theofrasto (372-287 a. C.) distinguia o cristal-água (o gelo) do cristal-pedra (o quartzo hialino). Os romanos mantiveram este entendimento, latinizando o nome para cristallus, como se pode ler num dos 38 volumes da “História Natural”, de Plínio, o Velho (23-79 d. C.).

A expressão cristal-de-rocha, aplicada ao quartzo hialino, surgiu muito mais tarde (no séc. XIX) para distinguir o mineral do vidro de alta qualidade, produzido e comercializado sob o nome de cristal. A palavra cristal aplicou-se, depois, aos corpos sólidos, poliédricos, minerais ou orgânicos, naturais ou artificiais, e acabou por se generalizar a toda a porção de matéria sólida, limitada ou não por faces planas, cuja estrutura interna se caracteriza pela repetição periódica de um motivo (composto por átomos) nas três direcções do espaço.

O termo cristal foi, assim, usado como étimo do nome da disciplina – cristalografia – que estuda a matéria cristalina, afirmada como ciência, em finais do século XVIII, em França, com Romé de l'Isle e René-Just Haüy. Domínio de investigação nascido da mineralogia e inicialmente de cariz puramente geométrico e matemático, habitualmente referido por cristalografia morfológica, deu apoio, como complemento, tido por indispensável, à caracterização e diagnose dos minerais, até às primeiras décadas do século XX.

Alargou-se, depois, com o advento dos raios X e com o desenvolvimento da cristaloquímica, para, a partir daí, se irmanar com a física do estado sólido, com recurso às modernas tecnologias de análise. Constituiu-se, então, como um nova linha de investigação, a cristalografia estrutural, de âmbito alargado a todos os sólidos cristalinos, sejam eles inorgânicos ou orgânicos, naturais e artificiais ou sintéticos.

No século XVII, o anatomista dinamarquês Nicolau Steno (1638-1696) revelou, em 1669, que os “ângulos diedros, formados pelas faces homólogas dos cristais de quartzo, são constantes e independentes da forma e da dimensão das mesmas”. Esta sua revelação, que ainda tem um âmbito restrito, mas que alguns referem com Lei de Steno, está na base da conhecida Lei da Constância dos Ângulos (esta, sim, uma verdadeira lei), formulada um século mais tarde, pelo francês Romé de l'Isle.

Um pouco mais recente, Domenico Guglielmini (1655-1710), matemático e médico italiano, foi o primeiro a interessar-se pelos sais e pela cristalização destes, tendo chamado a atenção para a constância das formas cristalinas próprias de cada um deles, dando mais um passo no caminho do conhecimento dos cristais.

Na Rússia, Mikhayl Vasilyevich Lomonosov (1711-1765) produziu valioso trabalho de prospecção mineira e foi autor de um catálogo de minerais com várias centenas de espécies e variedades. Independentemente de Nicolau Steno, apercebeu-se da constância dos ângulos diedros entre faces homólogas de cristais da mesma espécie mineral.

Lomonosovite, um silicato complexo, co titânio, sódio e fósforo, é uma homenagem à sua memória.

Jean-Baptiste Louis Romé de l'Isle (1736-1790), antigo oficial de marinha francês, desenvolveu o gosto pela mineralogia durante um período de cerca de três anos em que, juntamente com Georges Balthazar Sage (fundador da École Royale des Mines de Paris), ficou prisioneiro dos ingleses nas Índias Orientais. Influenciado pelas ideias de Lineu, procurou estabelecer uma sistemática dos minerais em função das respectivas formas externas, em especial, dos seus cristais, tendo enunciado o conceito de “forma primitiva”. A mineralogia abriu-lhe, assim, o caminho da cristalografia. Autodidacta de génio, de l’Isle rodeou-se de colaboradores de grande craveira, como o naturalista e mineralogista francês, Arnould Carangeot (1742-1806), inventor do goniómetro de aplicação.

Servindo-se deste instrumento rudimentar, de l’Isle mediu os ângulos diedros dos cristais, o que lhe permitiu conceber a Lei da Constância dos Ângulos, que formulou com carácter genérico, na sequência dos estudos anteriores de Nicolau Steno, Domenico Guglielmini e Mikhail Lomonosov. Esta lei fundamental diz que “os ângulos diedros formados por faces homólogas são constantes para os cristais da mesma espécie mineral”.

Reforça-se, assim, o início de uma nova disciplina que, durante mais de dois séculos, como se disse atrás, constituiu um precioso complemento na diagnose mineralógica. Romé de l'Isle teve, ainda, o apoio de Swebach Desfontaines, escultor que, com base nos elementos que lhe forneceu, produziu a primeira colecção de modelos cristalográficos, em barro, num total de 448 “cristais” de referência.

O “Essai de Cristallographie”, de Romé de l'Isle, editado em 1772, teve uma segunda edição, em 1783, em 3 volumes, acompanhada de um atlas, tendo sido esta edição que o tornou conhecido e lembrado como o “Pai da Cristalografia”.

Sendo um mineralogista, celebrizou-se como cristalógrafo, distinção que lhe valeu ser eleito membro estrangeiro da Academia Real das Ciências da Suécia.

Romeíte, um antimoniato de cálcio, é uma homenagem à sua memória.

Um outro francês, seu contemporâneo, o abade René Just Haüy (1743-1822) deu grande desenvolvimento à cristalografia morfológica que caracterizou o século XIX e boa parte do XX ao enunciar, em 1784, a Lei da Racionalidade dos Índices. Também conhecida por Lei de Haüy, corresponde a uma abordagem matemática, entendida como um passo significativo no sentido da cristalografia moderna e que diz: “as relações paramétricas que definem as faces possíveis dos cristais são sempre números racionais geralmente pequenos”.

Uma outra contribuição deste pioneiro da cristalografia foi a sua concepção de “molécula integrante” que definiu como um paralelepípedo ínfimo e indivisível, característico de cada espécie mineral que, em justaposição com outros idênticos, edificava os cristais das respectivas espécies.


Esta inovação é considerada uma notável antevisão da estrutura triperiódica da matéria cristalina, estrutura confirmada mais tarde por Bravais, em 1847. Haüy foi ainda pioneiro no estudo e na compreensão da piroelectricidade. No seu “Traité de Minéralogie” descreve mais de uma centena de espécies, muitas delas conservando o nome original que lhes deu.

Haüy foi nomeado, em 1802, ao tempo de Napoleão, professor de mineralogia no Museu Nacional de História Natural de Paris, mas, em 1814, foi afastado desse lugar pelo Governo da Restauração.

Entre os seus discípulos conta-se o luso-descendente José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), um dos introdutores da mineralogia e da metalurgia em Portugal e patriarca da independência do Brasil.

Hauyna ou hauynite, um tectossilicato.
A. Galopim de Carvalho

Continua aqui.

4 comentários:

José Batista disse...

Muito interessante e bonito este texto, como é costume.
Para cativar alunos e para lhes mostrar a importância, a pertinência e a utilidade do estudo dos cristais tanto no passado como no presente, vinha a calhar, nesta matéria, o esclarecimento do funcionamento do quartzo nos relógios de precisão.
Se houver tempo e disposição claro.
Eu conto-me entre os que gostariam de aprender.
Muito grato.

Ide levar no déficite ide disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Helena Damião disse...

Meu caro José Batista
É sabido que uma deformação mecânica aplicada sobre uma lâmina de quartzo (talhada em qualquer direcção excepto a paralela ao alongamento) tem como consequência uma polarização eléctrica desse corpo cristalino. Este comportamento é conhecido por efeito piezoeléctrico. Este efeito, mas em sentido inverso ou recíproco, consiste em obter uma deformação dessa lâmina sempre que se lhe aplica, nas duas faces opostas (revestidas de uma película condutora, ouro, por exemplo), dois pólos de um campo eléctrico.
A piezoelectricidade foi descoberta em França, por Pierre e Marie Curie, o efeito directo, em 1880, e o inverso, um ano depois.
Se esse campo for alterno, a lâmina vibra com uma amplitude proporcional a ele. Se a frequência do campo eléctrico for conveniente, a lâmina produz ultra sons, efeito há muito utilizado nos sonares e que ficaram na história da Grande Guerra (1914 - 1918).Uma das aplicações mais conhecidas deste efeito, são os vulgaríssimos e baratos relógios de quartzo.
O facto de os cristais de quartzo ocorrerem quase sempre maclados e com defeitos cristalinos (condições naturais que perturbam o citado efeito), foi determinante na procura do quartzo sintético, um polimorfo de sílica, isento de maclas e de defeitos estruturais ao nível da rede cristalina, e grande interesse tecnológico e gemológico.
A síntese do quartzo consiste em fazer crescer um pequeno fragmento de quartzo muito puro e não maclado, a servir de germe, no seio de um soluto aquoso sobressaturado de sílica. O primeiro ensaio laboratorial teve lugar em 1905, a partir de uma solução de 1,9% de NaSiO3 e 12,7% de NaCl, no interior de uma autoclave. Nos anos que se seguiram, esta produção cresceu enormemente em resposta às múltiplas solicitações das tecnologias electrónicas, com destaque para os computadores, os radiotelefones, os receptores de televisão e os já citados relógios de quartzo.
Galopim de Carvalho

José Batista disse...

Caríssimo Professor

Vim dar um saltinho aqui, agorinha, mas não pensava que tivesse um presente tão valioso, em tão poucas palavras, tão completo e com tanta clareza.
Longe de merecer tão pronta e generosa atenção, maiores são o meu contentamento e agradecimento.
E o proveito, sobretudo.
Este textinho vou copiá-lo e guardá-lo, para o dar proximamente a ler a uma data de amigos e alunos, tão curiosos quanto eu. Com o nome do autor no fim, tal como está e como deve ser.

Muito obrigado outra vez, extensivo à Professora Helena Damião, que não me fez esperar nada.

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