sábado, 4 de maio de 2013

Portanto, alunos relatem...

A página na internet onde li o que se segue é de uma escola brasileira, mas podia ser de uma escola portuguesa. Trata-se de um blogue que tem por título "Diário na rede"
"O blog é uma linguagem bem conhecida dos adolescentes, que o utilizam para publicar páginas pessoais, como os tradicionais diários. É uma maneira informatizada de contar o que aconteceu no seu dia, expressar as emoções diárias, e ainda, divulgar atividades, permitindo a interatividade com outras pessoas. Portanto, alunos do 8º ano, relatem o que aconteceu nesta manhã de ..."
O leitor terá percebido que é um professor (ou professora, isso não interessa) supostamente bem formado, um adulto que tem o dever de ensinar (incluindo os valores fundamentais) e de cuidar (nunca pondo em situação delicada ou em perigo aqueles que tem o dever de proteger) que, ao contrário de procurar que os seus alunos percebam as fronteiras entre o público e o privado e intimo, entre o que é escolar e não é escolar, os solicita, em nome da interactividade, a falar de acontecimentos vividos e de emoções tidas... É a voz de autoridade que aqui se ouve, "alunos... relatem..." O que o professor diz para fazer deve ser feito e os alunos obedeceram...
"Hoje acordei às sete da manhã, arrumei minha bolsa, me arrumei, li um pouco e vim para a escola. Deixei minha bolsa na sala e subi para a quadra. O sinal bateu e fui para a aula de natação, foi muito cansativa. Tivemos intervalo, então comi meu lanche e fui para a quadra. Depois fomos para a aula de português e em seguida para a aula de matemática. Neste momento estou na aula de português na sala de informática escrevendo um relato da manhã de hoje."
Mas, curiosamente, parece haver ali um mimetismo: o primeiro relato é semelhante a todos os outros...  Pode ser falta de imaginação dos alunos ou algum pudor em se exporem do modo como foram solicitados.

5 comentários:

José Batista disse...

..."Pode ser falta de imaginação dos alunos ou algum pudor em se exporem do modo como foram solicitados"

Pode, mas também pode ser uma forma inteligente de, sem deixar de cumprir a "ordem", dizer o mínimo sobre si próprio. Não sei qual é a idade dos alunos mas, entre nós, e ao nível do ensino secundário, várias vezes li coisas mais ou menos tipificadas e genéricas em escritos de alunos no preenchimento de certos documentos ou correspondentes a certas solicitações de professores ou directores de turma. O que achei sempre bem e, nalguns casos, felicitei os alunos directamente ou elogiei-os perante os seus encarregados de educação.

Nesta matária (já) posso, de resto, fazer uma inconfidência relativamente ao meu filho mais velho: ainda na escola primária, havia uma professora que tinha por hábito pedir aos meninos que fizessem composições sobre o que tinham feito no fim de semana. Ora, a certa altura, a professora começou a apelar para a conveniência de os pais dedicarem tempo aos filhos e os levarem a passear nos fins de semana, etc. Como eu e a minha mulher não nos dávamos por achados, fez questão de que víssemos mais pormenorizadamente o caderno escolar do rapaz, especificamente as composições do início da semana. E foi então que lemos, repetidamente, mais ou menos o seguinte: "Este fim de semana não fiz nada: fiquei em casa".
Discretamente contentes, agradecemos à professora.

Anónimo disse...

Este artigo fala realmente do problema da docência e de como deixar de ter professores na Escola é um autêntico campo minado.

Jorge Teixeira disse...

Felizmente o ser humano, mesmo pequeno, aprende depressa que quando alguém que ocupa uma posição de poder dá ordens estúpidas, se deve "obedecer", assim mesmo, entre aspas.
Infelizmente, há muitas décadas que as escolas estão cheias de "professores", assim mesmo, entre aspas.

José Batista disse...

Olha, ali, no início do último parágrafo, lá me ficou "matária" em vez de "matéria". Como não reparei não sei.

Helena Damião disse...

Caros Leitores
A solicitação para os alunos fazem redacções sobre as suas férias e os seus fins-de-semana bem como prestarem informações sobre si próprios e a sua família num o questionário de caracterização social e cultural (que pode ter outras designações) foi das primeiras solicitações intrusivas, com carácter formal, da parte da escola, na vida privada dos sujeitos que atendia. Longe de serem fruto do acaso, essas solicitações operacionalizavam princípios de correntes pedagógicas que ganhavam força. Assim, no presente, tudo o que pertence ao privado e intimo pode ser solicitado no espaço público que é a sala de aula, a escola e, com as novas tecnologias de comunicação, o mundo. E, neste último caso, para sempre. O que neste cenário (que entendo ser) tenebroso, mais perplexa me deixa é o facto de muitos futuros professores e educadores, bem como professores e educadores experientes o acharem normal e vantajoso. Isto em nome da "aprendizagem significativa". Opinião que não destoa da de muitos pais e encarregados de educação. Trata-se, pois, de uma questão mais profunda que tem a ver com o modo de pensar social do ocidente: o esboroar das fronteiras entre público e privado, que levaram milénios a construir.
Cordialmente,
MHD

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