quinta-feira, 23 de maio de 2013

Jardim das Tormentas

(Em continuação: aqui)

"Tinha Deus aposentado Adão e Eva no Jardim das Delícias, onde viviam como os mais desabusados regalões. O homem era esbelto e sólido, embora nunca houvesse exercitado os tendões da marcha, nem  apurado os bíceps a colher o antílope no laço; ela um lambisco de primeira, esgalgada e especiosa, a quem os cabelos vestiam de oiro à maravilha, sem pensar na folha de parra para a nudez, num cinábrio para a boca, que de seu sinal era rubicunda.

Não sabiam de onde eram, nem como estavam ali, nem tão pouco se importavam de saber, acharam-se dentro do horto uma boa manhã, e todas as demais manhãs, na plenitude de um gozo inapreciável, porque nunca espinho, sol mais destemperado ou hora amarga lhes ensinara que aquilo era o sumo bem. Se alguma coisa soubessem desejar, o seu Senhor provê-los-ia instantânea e abundantemente como o mais solícito mordomo; mas nem desejos nem cobiças, nem necessidades picavam os seus corações inocentes; não admiravam, porque tudo era admirável; jublilos, ternuras, esperanças não sentiam que Deus gerara a vida, mas ainda não concebera a morte. No ceú, sempre azul, o sol trazia o dia, levava o dia, sem que sombras ou raios mais vivos ferissem as suas pupilas bem-aventuradas. Eram uns felizes felizardos, usufrutuários dum regalo tão sem balizas que não o sabiam avaliar, mas em que criam de boa fé porque assim lhes fora dito. De beatitude tão absorta, apenas um aviso de Deus os distraía, se a isso se chama distrair, numa punção doce, mais leve que a sombra dum reflexo de cuidado."

O extracto é do Jardim das Tormentas, um extraordinário livro de contos de Aquilino Ribeiro, publicado em 1913. Completa um século, mas as palavras são frescas como se tivessem acabado de chegar da tipografia pela primeira vez.

Carlos Malheiro Dias escreveu a pedido de Aquilino, num tom intimista e comovente, uma Carta-Prefácio que lhe é dirigida:

"(...) Porque, entre tantos que na sua estima convivem, me escolheu a mim, esquecido novelista romântico, para que as minhas palavras coubessem no mesmo livro perto das suas? Porque havemos nós dois de nos dar as mãos no átrio deste volume? Por que acidentados, sinuosos caminhos andou a nossa simpatia atrás de mim para encontrar-me neste isolamento agreste em que vivo? Que houve, que há, que haverá de comum entre os nossos destinos, aparentemente contraditórios, para que assim tenhamos de aparecer juntos, numa aliança inverosímil, perante os que o afagam e me injuriam, diante dos que o louvam e me agride, em face dos que o exaltam e me deprimem?  (...)

Dir-se-ia, a um primeiro e superficial exame, que as nossas existências, por seguirem trajectórias diversíssimas, nunca se encontrariam. E, contudo, eis-nos aqui, fraternalmente juntos - e esta fraternidade não é a de Abel e Caim. Porquê? Nenhum de nós fez às suas opiniões o mínimo sacrifício em benefício desta camaradagem. Eu me conservo fiel ás convicções em que se educou o meu espírito, e nelas venero um património familiar. O sr. Aquilino Ribeiro não necessita que eu venha servir de fiador à constância inquebrantável da sua fé de revolucionário (...)."

Maria Helena Damião

1 comentário:

joão viegas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.

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