MEU ARTIGO NO ÚLTIMO JL (JORNAL DE LETRAS):
A exposição 360º Ciência Descoberta, que está na Fundação Gulbenkian, comissariada por
Henrique Leitão, é imperdível. Pela primeira vez o público pode ver uma grande
mostra, bem planeada e apresentada, sobre o período de ouro da ciência
portuguesa, a época dos Descobrimentos, que teve lugar nos séculos XV e XVI.
Não se trata de uma exposição sobre os Descobrimentos – outras houve como Encompassing the World, que esteve há
anos em Washington antes de vir para o Museu da Arte Antiga – mas sim sobre a
ciência dos Descobrimentos, que inclui tanto a ciência náutica que permitiu as
navegações em mar aberto, como as descobertas que, nos domínios da geografia,
da meteorologia e da história natural, acrescentaram saber ao saber anterior
sobre o mundo.
Num volume sobre a história do mundo,
Portugal aparece numa página, ou pelo menos nuns parágrafos, precisamente por
causa do seu papel na expansão marítima do Ocidente. Os portugueses estavam no
sítio certo na hora certa. E os navegadores lusos aventuraram-se sem vacilar,
nos vastos oceanos, primeiro o Atlântico e depois o Ìndico e o Pacífico. Alguns autores chamam justamente a esse período o da primeira globalização. Foram
os primeiros ocidentais a ver novos céus, novas terras, novas espécies e novas
gentes. Isso não se conseguiu fazer sem ciência e tecnologia e não se fez sem
se acrescentar ciência e tecnologia à que já se tinha. Ora, se o papel das
descobertas explorações portuguesas consta dos livros de história mundial, já o
mesmo não se pode dizer em relação à história da ciência do papel que os
portugueses desempenharam nesse período. Se se abrir um livro estrangeiro de
história da ciência, a ciência portuguesa não aparece ou quase não aparece. Uma
das razões foi o facto de a história da ciência se ter centrado talvez
excessivamente na Revolução Científica, que eclodiu convencionalmente em 1543,
o ano em que saíram os livros de Copérnico (A
Revolução dos orbes celestes) e de Vesálio (A Fábrica do corpo humano), quando a epopeia portuguesa já começava
a esmorecer. A tal ponto que algumas histórias da ciência começam só nessa
altura o seu relato. Depois desses grandes nomes seguem-se outros como Galileu,
Kepler, Newton e Harvey, numa narrativa pontuada pelas obras desses heróis da ciência.
Ora, como bem ilustra a exposição, a
Revolução Científica não só foi precedida pela expansão portuguesa como.não
teria sido possível sem esta. Os portugueses – e também os espanhóis –
protagonizaram uma Pré-Revolução Científica, sem nomes tão sonantes mas numa
acção decisiva para se adquirir uma nova visão do mundo, caracterizada pelo
empirismo. “Vi, claramante visto”,
escreveu Camões, ecoando Garcia da Orta, o seu amigo na Índia. O livro recente
de história da ciência mundial que começa muito antes da Revolução Científica Science: a four thousand years history,
da autoria da historiadora de ciência inglesa Patrick Fara, é um dos poucos que refere os portugueses dos
séculos XV e XVI. Fala da qualidade dos mapas lusitanos (dos “portulanos” do Mediterrâneo
passou-se para as cartas da costa de África e a seguir para a cartografia da
costa asiática), fala do rinoceronte que Duerer desenhou com base num esboço do
exótico animal que o rei D. Manuel I tentou oferecer ao Papa, e fala ainda das
plantas da América do Sul, que portugueses e espanhóis trouxeram para a Europa,
modificando o regime alimentar da cristandade. A exposição da Gulbenkian exibe
em destaque alguns livros raros, alguns únicos porque manuscritos, como o Ars nautica e o Liuro da fabrica das naus de Fernando Oliveira, ou o Esmeraldo de situ orbis, de Duarte
Pacheco Pereira. Mas, em consonância com Fara, mostra os mapas mais
sofisticados de há quinhentos anos, um rinoceronte embalsamado e várias das espécies
vegetais que cruzaram os oceanos em direcção à Europa. E mostra também as
tecnologias da construção naval (a caravela) e da navegação astronómica (o
astrolábio). Embora não elabore muito sobre a medicina e farmácia da época (há
sobre isso um livro recente: Germano de Sousa, História da Medicina Portuguesa durante a Expansão, Temas e Debates
/ Círculo de Leitores, 2013), tem patentes algumas obras médicas e vasos de
botica..
A exposição invoca os grandes cientistas
portugueses: Pedro Nunes, Garcia da Orta e D. João de Castro. O primeiro, sem nunca
ter entrado num barco, criou com base na matemática a ciência da navegação astronómica,
o segundo escreveu em português sobre as plantas da Índia, e o terceiro, na carreira
da Índia, realizou as primeiras medidas
de geomagnetismo global. De Nunes pode o visitante ver o “manuscrito de
Florença”, o único que chegou aos nossos dias, de Orta os Colóquio dos simples da Biblioteca a Nacional, e de D. João de
Castro um manuscrito conservado na Biblioteca de Évora. Para perceber melhor a
exposição, o leitor não pode deixar de levar para casa o excelente catálogo,
com um excelente preço, onde sencontram reproduções destas e doutras peças
expostas.
- Henrique Leitão (coordenador), 360º Ciência Descoberta, Lisboa:
Fundação Gulbenkian, 2013.
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