domingo, 5 de maio de 2013

As pessoas comuns aborrecem-me...

"É um pouco embaraçoso admitir que o pensamento de
pessoas comuns me aborrece. Além disso, poderá ser 
enganoso usar os dados recolhidos junto dessa população..."

Daniel Berliner, 1990.

Há inúmeras palavras do vocabulário educativo (académico e tutelar) que são verdadeiros tabus: sacralizadas que foram, a sua interrogação, ainda que ao de leve, é interdita. Quem se atrever a tal, deve contar com reacções imediatas, quase sempre afastadas, digamos, da argumentação racional.

Por isso, esse exercício científico fundamental que é o questionar o que se tem por mais certo junto de "crentes" que, além disso, se creem mentes abertas é frequentemente em vão. Nada de novo, tudo isto foi debatido ao pormenor por Diane Ravitch, no seu já clássico livro The language police.

Centrado-me apenas no ensino e na formação de professores, que é uma das principais áreas do meu trabalho, a palavras "reflexão" estará à cabeça. Sim, a "reflexão"; pois, a "reflexão"; evidentemente, a "reflexão"...

"Agarradas" à "reflexão" surgem, inapelavelmente, nos discursos que se apresentam como pedagógicos, várias expressões, também elas endeusadas: "práticas profissionais", "prática reflexiva", "acção reflexiva", "teorias práticas", "vivência prática", "contexto de vida", "construção artesanal de saberes", "saberes autênticos", "comunidades de prática", "desempenho reflexivo", "formação reflexiva", ... são apenas algumas delas.

Estas expressões, podem assumir diferentes sentidos, mas há um sentido que o seu conjunto faz prevalecer desde há pelo menos três décadas: todos (mesmo todos) os futuros profissionais ou os já profissionais reflectindo (individual ou colaborativamente, autonomamente ou com pequenas "incentivos" do formador, que, antes, se deve designar por "coach") sobre o que fazem, sobre a sua acção prática, conseguem apurar "o verdadeiro saber profissional".

E isto, afirmam os teóricos e investigadores desta linha conceptual, sem necessidade de apelar a qualquer suporte derivado da teoria e da investigação; melhor, desprezando qualquer apelo à teoria e à investigação (percebe-se aqui um paradoxo, que foi sinalizado por Maria Teresa Estrela, professora de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa).

Mesmo correndo o risco certo de sermos politicamente incorrectos, façamos aqui um pequeno exercício epistemológico em torno do sentido de "reflexão" vigente.

Exercício que se justifica pelo facto de, além da imprecisão do termo, abertamente reconhecida por quem o utiliza como objecto principal de estudo (por exemplo, Alarcão, 1996), a sua imposição como intocável não pode, de maneira alguma, ser acolhida com indiferença.

É, pois, preciso questioná-lo em diversas frentes, nomeadamente no facto de, no seu quadro de referência, se eleger qualquer profissional (independentemente da sua competência) como investigador e teorizador da própria acção, sendo que a verdade que apura (por via da reflexão pessoal, subjectiva, intimista, desprovida de conhecimento externo) será "a sua verdade", mas, ainda assim, "a verdade". Mais, a verdade que, por ter emergido de práticas únicas, e mesmo restrita a um determinado contexto, tem de ser aceite como "a verdade absoluta".

Daniel Berliner (na imagem ao lado), psicólogo educacional, professor emérito do Colégio de Educação da Universidade do Arizonaque defende, numa linha funcionalista, a importância de se estudar o pensamento e a acção dos professores (como forma de melhorar o ensino e, em sequência, a aprendizagem), vê com bons olhos o uso de amostras muito restritas, incluindo o "estudo de casos", para concretizar tal propósito. Mas, adverte, para ser válido, qualquer estudo que incida na reflexão tem de obedecer a duas condições, que, lamentavelmente, não têm sido asseguradas.

Uma condição é que os professores a quem os investigadores têm de dar atenção, não são quaisquer uns, são aqueles cujas práticas, crenças e decisões podem ajudar a evoluir o conhecimento sobre o ensino e a formação de professores. São os "bons profissionais", os "profissionais de excelência". Para ilustrar esta ideia dá o exemplo, dos (poucos) dotes de cozinheira da sua mãe:
"Tenho de pensar na minha mãe se alguém investigasse os seus pensamentos e decisões na tarefa de cozinhar. Ela despendia imenso tempo na cozinha e sobre a cozinha, comprava conscienciosamente com as vizinhas receitas culinárias, vigiava cuidadosamente as panelas a ferver a temperaturas baixas e altas e servia vastas porções de comida a uma família sempre esfomeada, considerando sempre as preferências individuais. Como ela sabia expressar-se bem, poderia descrever, em detalhe e com eloquência, cada aspecto do processo de cozinhar. No entanto, nós tínhamos um problema com a minha mãe: era uma péssima cozinheira! Maltratava diáriamente os vegetais e arruinava semanalmente os frangos e os hambúrgueres. Um testemunho dos seus pensamentos levar-nos-ia ao engano!"
Em sequência, a outra condição é assegurar o carácter científico desse tipo de investigação, pois muito do que se apresenta sob a capa de "estudos reflexivos", apesar de se afirmar como científico, é tudo o que se queira menos... científico. E dá um exemplo...
"Ocorre-me a investigação de Elbaz (1981) por ser muito citado em pesquisas sobre o pensamento docente. Não precisamos de nos preocupar excessivamente por incidir sobre um único sujeito, pois era uma investigação intimista e longa sobre um tema de reflexão profunda. Algumas das informações obtidas não têm um valor sério já que, no meu entender, são mais produto de efeitos literários do que de um trabalho científico: é o caso dos 75 elementos do pensamento docente que apresenta (resultado do cruzamento de cinco áreas de conteúdos do saber prático com cinco orientações para atingir o saber prático e três formas estruturais de saber prático). Aquilo que me assusta mais neste tipo de trabalho é a falta de segurança: aquele único professor, que foi estudado extensivamente e se despede da docência no fim da investigação, era tudo menos um professor comum? Devem os seus pensamentos ser usados para iniciar dúzias de estudos confirmatórios? Num contexto mais geral poderíamos perguntar: face aos nossos reduzidos recursos, é uma despesa sensata realizar estudos sobre o pensamento de pessoas comuns? Tais estudos podem muito facilmente enganar-nos. 
Neste momento, perguntará o leitor, como me perguntam com frequência: "Mas, não acha necessária a reflexão que os professores fazem das suas práticas?". Sim, claro, é importante que os professores, reflitam, pensem, analisem, observem... o que fazem, desde que reúnam certas condições... Delas falarei em próximo texto.

Referências bibliográficas:
-  Alarcão, I. (1996). Reflexão crítica sobre o pensamento de D. Schön e os programas de formação de professores. I. Alarcão. Formação reflexiva de professores: estratégias de supervisão. Porto: Porto Editora, pp. 9-39
- Berliner, D. (1990). The place of process-product research in developing the agenda for research on teacher thinking. Educational Psychologist, 24 (4), pp. 325-344.
- Estrela, M. T. (1999). Da (im)possibilidade actual de definir critérios de qualidade da formação de professores. Psicologia, Educação e Cultura, vol III, n.º 1, pp. 9-30.
- Ravitch, D. (2003). The language police: How pressure grups restrict what studentes learn. New York: Knopf.

Outros textos publicados neste sobre a questão em causa: aqui

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