terça-feira, 21 de maio de 2013

AÇORDAS E MIGAS

Texto que nos foi gentilmente enviado pelo Professor do Galopim da Carvalho.

«Terra de grandes barrigas
onde só há gente gorda. 
Às sopas chamam açorda,
à açorda chamam-lhe migas.» 


Foi com estas coplas que, na revista «Palhas e Moínhas», o poeta alentejano João Vasconcelos e Sá, nos começos do século passado, cantou a diferença entre os usos destas palavras no Alentejo e fora dele; hoje mais conhecidas graças à bela interpretação do seu neto, o fadista António Pinto Basto. Estreada em Évora, em 1939, esta representação musical, em dois actos, tem por tema a mais extensa província de Portugal, as suas gentes e o seu modo de estar e viver naquela época. Entre os muitos participantes, todos recrutados entre a população da cidade, figurou o meu irmão Francisco José que, logo aí, revelou as suas excepcionais qualidades como intérprete da canção.

No seu livro, “Para uma História da Alimentação no Alentejo” (1997), o saudoso Alfredo Saramago revelou-nos que, durante o período de ocupação romana, se comia no Alentejo uma sopa feita de ervas aromáticas, alho, azeite, pão e água bem quente. Esta confecção atravessou as culturas dos povos invasores que se seguiram, tendo sido os árabes que a fixaram e lhe deram a importância que teve entre eles e ainda tem entre nós. A ath thurda (açorda) é, pois uma herança antiga, valorizada pela presença muçulmana neste Garb al Andaluz, entre os séculos VII a XIII.

As açordas do pobre não têm acompanhamento. São as açordas de mão no bolso (como já escrevi noutro local) comidas pelos mais carenciados que, não tendo conduto, só precisam da mão que leva a colher à boca. São as açordas peladas, não fazem mal nem bem, é só pão e água... caem nas calças e não põem nódoas, escreveu Falcato Alves, em “Os Comeres dos Ganhões” (1994).

Mas há também, para quem pode, açordas bem temperadas, feitas com a água de cozer bacalhau, pescada ou amêijoas, e com outros produtos de grande valor nutritivo e requintado paladar, com destaque para os ditos condutos e, ainda, o ovo cozido ou escalfado, as azeitonas e, até, nalgumas famílias, os figos frescos. Açordas são quase sempre as de alho e coentros ou de poejos.

À falta destas ervas há quem as faça com pimento verde esmigalhado no almofariz (no geral, de madeira), ou graal, como nós dizemos. Mas há outras, como as de tomate e muitas mais, a ponto de o termo ser considerado sinónimo de “sopas de pão”.

Para nós, alentejanos, o termo migas designa um alimento à base de pão migado, embebido num caldo e a seguir esmigalhado e amassado. Esta confecção é aquilo que, em Lisboa e noutras regiões do país, se chama açorda. As ”açordas de marisco”, as boas e as menos boas, que se servem de Norte a Sul do país, são, na realidade, migas, pois correspondem melhor à etimologia e ao significado da palavra.

Temos ainda as migas de batata, também elas esmigalhadas e amassadas. Assinale-se aqui, porque nunca é demais saber, que migas e mica, o mineral, radicam no mesmo étimo latino, mica, que significa migalha.

As migas da minha mãe, trazidas de casa da mãe dela, eram quase sempre feitas no pingo do toucinho ou da carne de porco com mais gordura e no dos enchidos.

Ao contrário do ditado que reza «migas de pão, duas voltas e já estão», as nossas velhas migas as que ainda hoje se fazem no Alentejo são enroladas na sertã, continuamente, até tostarem levemente e ganharem uma casquinha estaladiça. Prato tradicional e frequente na mesa de ricos e pobres, com a diferença de que as migas de uns tinham mais carne magra e linguiça, e as de outros, mais toucinho e farinheira.

Galopim de Carvalho

2 comentários:

Cláudia da Silva Tomazi disse...

É certo que nem dispensa-se a boa maneira a mesa. Alimento que retrata sua gente, sua origem, é enriquecido para além do sabor.

O professor Galopim de Carvalho traduz a competente cozinha alentejana, com receitas que acolhem de modo único e complexo. Um Portugal das entranhas, alicerce do tempo e das estações... Um país amado e reconhecido pela genialidade da identidade!

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Gostaria de completar a importância que vez, houve de relação as pequeninas ações.

Tem por favorável o modo em utilizar de comparação. Educar através de metáforas, pois ganhara força ao tempo e a tradição. Ao exemplo, diz-se aqui no Brasil, que um pai sustenta dez filhos, e no seguir da prole, os filhos a dezena, deixaria o pai a via.

Livrando-nos deste modelo ao tempo presente, que outros na circunstância da família, adequam-se ao ditame moderno.
O sustento tirado da terra era rudimentar; recurso escasso, isolamento, falta de informação, etc. Porém, da simplicidade a mesa, bondade era partilhada! E generosidade, elaborava-se ao sustento, organizara igualdade. Ora, quando já nem correto seria aplicar o dito acima de pais e filhos ou, quando deixamos este aspecto reservado a memória, poupamos o inconveniente a quê justiça?!
Eis, na pertença: princípio e verdade a causa. E, que justiça, reconhecera a natureza humana, quando humano os dois lados: princípio e verdade?! Então, margem significa de quando a justiça é feita em justificar regras de convivência.
Tão somente a natureza reconhece na harmonia sua prece mantenedora do sustento. Eis, a natureza é fértil. A frente humana per reconhecida, reconhecia-se na igualdade.

Nestes dias, mesa é pequena família. A fertilidade provincial estendendo-se a marca da generosa colheita. A satisfação da receita promove ao meio; um pai a par de filhos conquistara seu melhor sustento, educando.

UM CRIME OITOCENTISTA

  Artigo meu num recente JL: Um dos crimes mais famosos do século XIX português foi o envenenamento de três crianças, com origem na ingestã...