Novo texto de Eugénio Lisboa:
No dia 29 de Setembro, na bela Livraria Buchholz, foi lançado, em língua portuguesa, em tradução de Amélia Muge, apoiada numa versão inglesa de Michales Loukovikas (que seguiu, de perto, todo o trabalho da cantora portuguesa), o livro O Ouro do Céu, dedicado ao poeta grego Ares Alexandrou. O livro inclui, a valorizà-lo, um CD, com a poesia de Alexandrou admiravelmente musicada por Michales.
Acompanhei, com todo o cuidado, o processo de tradução para português, a que se entregou, de alma e coração, Amélia Muge. E poucas vezes um poeta me “agrediu”, emocionalmente, com a força com que o fez o grande poeta grego.
Ares nasceu em Petrogrado (antes, S. Petersburgo e, depois, Leninegrado), em 1922, filho de pai grego e mãe russa. . De seu nome originário, Aristoteles Basileiades, mudou-se, com seus pais, para a Grécia, com apenas seis anos (1928). Residiram, inicialmente, em Tessalonica, e mudaram-se, pouco depois, para Atenas. Terminado o ensino secundário, fez, sem êxito, o exame de admissão à escola de engenharia, tendo, a seguir, sido admitido na universidade (Economia e Comércio). Em 1942, decidiu abandonar a universidade, dedicando-se ao ofício de tradutor. Ao mesmo tempo, juntou-se a um pequeno grupo de resistência aos nazis, que, por então, ocupavam a Grécia. Este pequeno grupo fazia parte integrante de um movimento de resistência da juventude comunista. Alexandrou, espírito fortemente independente, não conseguiu adaptar-se à rigidez da organização hierárquica do partido comunista e, em consequência disso, abandonou-o, poucos meses depois de nele ter entrado. Esta ruptura não impediu as autoridades britânicas, após a libertação da Grécia e da sua actuação no país, como governantes de facto, de o prenderem e mandarem para o campo de prisioneiros de El Tampa, onde permaneceu até Abril de 1945 (“Sou um traidor para Esparta para os hilotas espartano”, dirá num verso célebre de um poema também célebre: “A primeira pedra”).
A seguir, mesmo não tendo participado na subsequente guerra civil (1946 – 1949), foi preso por se ter recusado a repudiar as suas convicções políticas. De Julho de 1948 a Outubro de 1951, foi sucessivamente mandado para os campos de Moudros, Makronisos e Agios Efstratios. Em Novembro de 1952, foi submetido a Conselho de Guerra, por se ter recusado a ser recrutado para o serviço militar. A pena inicial foi de dez anos de prisão, cumprida nas prisões de Averof, Aighina e Gyaros. O painel de revisão viria a reduzir a pena para sete anos, tendo Ares sido posto em liberdade em 1958.
Depois de libertado, Alexandrou casou com Kaiti Drosou e, em 1967, para evitar serem presos pela Junta Militar no poder, foram viver para Paris. Ali morreria o poeta e romancista, em 1978, de um ataque de coração, tendo ainda visto, em 1975, a publicação do seu único romance (To Kiviótio, Atenas, 1975; em edição inglesa, de 1996: The Mission Box). Em 1978, publicaram-se os seus Poemas (1941 – 1974), em Atenas, e, em 1984, Dialexa (tradução, para grego, de uma miscelânea de poemas).
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Ares Alexandrou foi, essencialmente, um grande poeta, isto é, um homem apaixonado, antes de mais nada, pela linguagem: conhecendo-lhe os poderes, mas, também, os limites. Como todos os poetas, quero dizer, como todos os seres que trabalham, sobretudo, com palavras, embora trabalhem, igualmente, com ideias e com emoções – que as palavras tentam, algo incompetentemente, transmitir - , Alexandrou cedo deve ter-se apercebido de que vivia a manipular um instrumento de enorme delicadeza. Os poetas e os escritores, em geral, apercebem-se, cedo, de que as palavras fazem só o que podem e não podem tudo. Dizia o grande Joseph Conrad que “as palavras são grandes inimigas da realidade.” A afirmação talvez seja exagerada, mas a verdade é que há sempre algo do que observamos ou sentimos ou pensamos que fica além do poder que as palavras têm para o transmitir. Sente-se que elas são relativamente impotentes para darem toda a gama do inefável. No entanto, o poeta persiste na sua tentativa de realizar o impossível, de convir, até nós, toda a teia de emoções e ideias que o devoram. Era isto mesmo que T. S. Eliot pretendia sugerir-nos, ao dizer: “É estranho que as palavras sejam tão inadequadas / e, contudo, como o asmático lutando pelo fôlego / assim o amante deve lutar pelas palavras.” Portanto, entre o saber que as palavras são fracas, para o “grande desígnio” e a persistência, mesmo assim, no combate, servindo-se delas, vai o poeta movendo o seu rochedo de Sísifo. E o motor de arranque, para este combate sem garantias de vitória, é o próprio desespero, como observava Camus: “Se estiveres convencido do teu desespero, deves ou agir como se afinal tivesses esperança ou, então, suicidar-te.” (Carnets) A profundidade do desespero é, em alguns escritores, tão grande, que não têm remédio senão acreditarem no grande poder de agressão que as palavras possuem: “tu podes agredir as pessoas com as palavras”, dizia o romancista americano Scott Fitzgerald, que desceu ao fundo da angústia e da falta de esperança. Mas, mesmo quando a fé nas palavras é apenas relativa, o poeta ama a linguagem, como a sua única salvação e, por isso não consente em prostituir as palavras em causas duvidosas. É o uso da linguagem a sua principal fonte de felicidade, razão por que a preserva contra compromissos indecentes. Por isso, também, Alexandrou, fiel à poesia, logo, à linguagem, nos diz, no poema, significativamente intitulado “Palavras de ordem”:
O cérebro não é uma barba.
Não deixes os padres
os governantes
os controleiros
fazer-ta.
Poetas
de todos os países
desengajem-se."
O poema “Vê bem” dá-nos, com vigor, a “ars poetica” do escritor:
"Vê bem se tornas teus versos vertebrados
com as articulações encaixadas em palavras rudes, exactas.
Faz de modo que sejam extensões da realidade
tal como os dedos da mão a sua continuidade.
Só assim teus versos vão ser iguais à mão do doutor
reanimando à bofetada os que já desfaleceram
face aos seus rostos sem nada."
Ainda noutro poema – “O punhal” – o poeta dá-nos, com acuidade e precisão, o enorme esforço e paciência que são necessários para se encontrar as palavras mais adequadas, a linguagem mais eficaz.
Vimos o que foi a vida de “exilado” perpétuo de Ares Alexandrou, passando uma boa parte dela na prisão. Nunca bem aceite, nunca inserido: suspeito, à direita e à esquerda, aos conquistados e aos conquistadores, personalidade independente e íntegra que era.. Isso mesmo “diz”, num poema, em versos de fogo, que já citámos: “Sou um traidor para Esparta para os hilotas espartano.”
O exílio é talvez o tema fundador desta poesia. É um tema milenar, cantado, desde há muitos séculos, pelos poetas – se calhar, porque ser poeta é já uma forma de se viver exilado. Já o dramaturgo e poeta Eurípedes cantava essa ferida, em versos como estes: “Não há perda maior / do que a perda da terra natal.” No caso de Alexandrou, pode dizer-se que o exílio foi ainda mais devastador, porquanto não chegou nunca a ter um enraizamento original de que se arrancasse depois: ser um “outsider”, sem mesmo a melancolia de uma “perda” foi a sua condição permanente – um exílio, por assim dizer, de toda a normalidade da condição humana.
Vivendo, primeiro, uma guerra – mal saído da adolescência – depois, uma guerra civil e, sempre, uma obstinada perseguição, Alexandrou teve, como paisagens quotidianas, o exílio, o cerco e a morte ou a proximidade dela.
O poeta pergunta: “para que serve, afinal, todo este esforço?” À pergunta, escaldante, responde um poema, cujo título é a medalha dessa resposta: “Vais resistir” . Cito os últimos cinco versos:
" Aqui entre ruínas que foram semeadas com sal
queiras ou não vais continuar a andar
calculando a inclinação das superfícies
vais persistir serrando tu mesmo as rochas
queiras ou não o teu próprio lugar vais ter que achar. "
Isto é, mesmo que não acredites no resultado do esforço (Sísifo), mesmo que saibas ser o resultado de resistir uma acumulação de ruínas, mesmo assim, resiste e persiste. É esta a mensagem do poeta, herdeiro esbelto de Sísifo, com todo o panache que isso acarreta: dizer aos outros, aos menos fortes, que há outra vida, que não esta, de exílio, ruína e morte. “O poeta”, dizia Edith Sitwell, “fala a todos os homens dessa outra vida deles, que eles abafaram e esqueceram.” O poeta não a conheceu mas também não a esqueceu.
Poderíamos, pois, resumir a “sabedoria” deste grande poeta, nestas “palavras de ordem”:
- Se resistir não resolve, resiste.
- Se persistir não resulta, persiste.
- Se o mundo não faz sentido, faz de conta que faz.
Eugénio Lisboa
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