Nota
de abertura do livro de Gabriel Mithá Ribeiro, com o título em cima, que acabou de sair na Gradiva:
O colonialismo nunca existiu, o racismo deixou de existir, a violência colectiva é fabricada — três frases que sumariam o conteúdo do livro. Primeiro, porque o legado da história remete para um vasto conjunto de
processos de colonização, pelo que a rotulagem selectiva de alguns deles de colonialismo não é mais do que uma
das fórmulas de instrumentalização política de um fenómeno milenar. Segundo,
porque o contexto histórico
que sustentou as tipificações do racismo elaboradas no século XIX e sobretudo
no XX — cujos expoentes foram, no hemisfério norte, o nazismo e, no hemisfério
sul, o apartheid, sem minimizar os enquadramentos conferidos pela colonização europeia
(séculos XV-XX) e pela guerra fria (1945-1991) [1] — pouco ou nada tem a ver
com as realidades do século XXI. Não sendo os fenómenos sociais e históricos
imutáveis ou eternos, a sua natureza pode ir-se transformando de tal modo que o
arrastar no tempo de tipificações relativamente rígidas torna-as anacrónicas. E terceiro, porque tem sido verificável, no
passado ou no presente, que a violência colectiva é orientada e condicionada
por referentes ideológicos, mesmo quando estes assumem aparências insuspeitas,
como as científicas.
Desenvolver
a fundamentação argumentativa dos postulados referidos constitui o leitmotiv do livro.
Após
a formação de base em história, na segunda metade dos anos noventa enveredei
por pós-graduações na área dos estudos africanos, domínio onde, em simultâneo,
se cruzam de modo saliente, por um lado, os sintomas da ortodoxia dominante no pensamento
académico e, por outro lado, os efeitos ambíguos das tendências das últimas
décadas de aproximação entre diferentes disciplinas (sociologia, história, antropologia,
psicologia social, economia, relações internacionais, ciência política, entre
outras), práticas designadas por interdisciplinaridade, multidisciplinaridade ou
transdisciplinaridade.
Como
outros domínios, os estudos africanos constituem uma área interdisciplinar onde
a produção de saberes se organiza em torno de fenómenos sociais que, séculos
atrás de séculos, gerações após gerações, mais têm preocupado as sociedades e
aqueles que se esforçam por compreendê-las. Reporto-me, por exemplo, aos
estudos de fenómenos conotados com a escassez, produção e distribuição de
recursos ou de rendimentos; a discriminação social e violência colectiva
(racial, étnica, de género, de orientação sexual, de opção religiosa); fenómenos
associados a outro tipo de relações de dominação no interior e entre as
sociedades (tipificadas na colonização) ou sobre transições políticas (independências,
revoluções, golpes de Estado).
Os
estudos sobre as sociedades das periferias do sistema internacional (recorro à terminologia
por comodidade discursiva), como as africanas, têm a vantagem de permitir captar
a mesma categoria de fenómenos que afectam em graus diversos a generalidade das
sociedades, com destaque para as sociedades do centro como as ocidentais (repito
a comodidade discursiva), mas fenómenos que tendem a assumir, nas sociedades
periféricas, características bem mais salientes do que nos centros. Se a opção pelas
periferias permite a utilização na aparência mais facilitada dos instrumentos
de análise proporcionados pelas ciências sociais e humanidades, ao mesmo tempo
aumenta o potencial de distorções interpretativas introduzidas ou alimentadas
pelos discursos académicos.
Trata-se de enviesamentos analíticos que condicionam negativamente a qualidade
dos conhecimentos produzidos, mas que também podem assumir a particularidade de
influenciar no mesmo sentido as dinâmicas das próprias realidades, sobretudo
em contextos onde os tecidos sociais são mais fragilizados, nas periferias dos
sistemas.
Por
essas razões, os estudos sobre as sociedades e os seus fenómenos, numa primeira
fase pensados enquanto periféricos, com o tempo acabam por se revelar centrais
para a renovação do pensamento académico e do pensamento de senso comum. Se muitas
outras razões não existissem (e existem) esta bastaria para tornar
indivisíveis, nos dias que correm, as sociedades ditas periféricas das
sociedades ditas centrais, posto que se verifica um permanente contínuo que
crescentemente liga tais extremos. Partindo do prisma de quem vive nos centros,
tanto quanto partindo do prisma de quem vive nas periferias, nos estudos das
sociedades contemporâneas é verosímil considerar que quanto mais olhamos para o
distante no espaço, mais cresce o potencial de captação do que é fundamental
nas realidades que nos são quotidianas ou familiares.
Contudo,
este livro não é necessariamente sobre questões europeias ou sobre questões
africanas, nem preocupado de preferência com o presente ou sobretudo com o
passado. O livro ambiciona ser mais do que a soma das partes. A sua essência é
reflectir sobre os bloqueios que impedem que o pensamento sobre as sociedades,
em particular o pensamento académico que cada vez mais modela o pensamento de
senso comum nas sociedades escolarizadas, entre de pleno direito no século XXI,
isto é, no século pós-colonial, no século pós-apartheid,
no século pós-guerra fria. É a melhor forma
de reajustarmos as representações do mundo enquanto casa-comum, hoje mais
salientes do que alguma vez no passado. No nosso século, as reinvenções dos
significados sobre o que une e separa a espécie humana passam, portanto, pela
reinvenção da construção do saber sobre as sociedades, o que remete as ciências
sociais e humanidades para um lugar central nesse processo, lugar que, por
culpa própria, o trabalho académico em parte tem alienado.
Tratando-se
de uma abordagem eminentemente epistemológica sobre o sentido da construção do
saber empírico, opto por algum pragmatismo. Significa fazer assentar a
argumentação que apresentarei em temas concretos, temas com facilidade
referenciados pelo
senso comum, bem como em dados empíricos qualitativos que permitam compensar a
natureza abstracta das reflexões. Na sequência do texto, o primeiro capítulo
abordará os bloqueios associados às interpretações sobre a dominação colonial
europeia em África, em particular a fase final que antecedeu as descolonizações.
O
segundo capítulo reequacionará os significados interpretativos atribuídos aos
fenómenos raciais num mundo em que as sociedades homogéneas tendem a fazer
parte apenas do passado, constituindo a efervescência de fundamentalismos
sintomas da relevância das transformações em curso. O terceiro e último capítulo
sustentar-se-á na apreciação crítica de uma publicação que reúne um conjunto de
pesquisas empíricas (Pureza; Roque; e Cardoso, 2012) para reflectir sobre as
limitações detectáveis nos estudos dos fenómenos da violência e da
criminalidade.
Uma
vez que cada um dos três capítulos foi elaborado enquanto peça autónoma (com
introdução, desenvolvimento e conclusões), não considerei útil acrescentar um
último capítulo específico com conclusões gerais. A intenção é produzir um
texto o mais sucinto e sistematizado possível que torne acessíveis ao grande
público matérias essencialmente teóricas e metodológicas, as do domínio da
epistemologia, por hábito marginalizadas dada a sua suposta natureza abstracta,
complexa ou árida. Todavia, trata-se de matérias que remetem para o coração do
conhecimento, isto é, está em causa a dimensão decisiva na compreensão e
interpretação eficaz do mundo que nos rodeia e do qual somos parte, quer quando
vestimos a pele de académicos, quer quando vestimos a pele de pessoas comuns
que se relacionam com os outros e com o mundo, quer ainda quando assumimos,
mais não seja para nós mesmos, o papel de pensadores ou de teóricos intuitivos
sobre a realidade quotidiana, atitude intrínseca à condição humana.
Gabriel Mithá Ribeiro
Gabriel Mithá Ribeiro
NOTA:
[1] Balizada,
a montante, pelo final da Segunda Guerra Mundial (1945) e a consequente
separação da Alemanha em RFA e RDA (formalmente criadas em 1949) e, a jusante,
pelo derrube do Muro de Berlim (1989, construção iniciada em 1961),
reunificação da Alemanha (1990) e dissolução da URSS (1991).
5 comentários:
claro que não a CUF não obrigava a vender a mancarra a baixo preço pra pagar imposto de cubata
nem 1961 foi resultado da escravatura legal na apanha de algodão e descaroçoamento manual
o colonialismo nunca existiu nem nós somos uma colónia mental grega
intelectualmente pró fundo meu
me dá mitá queu dou o dobro..
Isto é comentário que se publique? Estraga logo a importância deste post e do debate que o livro devia suscitar.
O colonialismo continua. Basta ver França no Mali. EUA no Iraque, Afeganistão, Filipinas, Coreia do Sul, Japão, Alemanha. GB e sua comonweahlth, etc., etc.
O colonialismo existiu e existirá!!Não se pode mudar a História!!
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