sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Matemática, empirismo e Gödel

O principal obstáculo para a compreensão da natureza da matemática é o preconceito empirista de que todo o conhecimento genuíno é empírico. Muitos cientistas pensam erradamente que é o contacto com a experiência que caracteriza a atitude científica. Isto é evidentemente falso, pois sem matemática não há ciência empírica, a matemática não é empírica e continuaria a ser perfeitamente científica mesmo que não tivesse qualquer contacto com a experiência (como, de facto, grande parte da matemática não tem).
Na verdade, teríamos muito a ganhar em deitar fora ideias filosóficas mal amanhadas, como é o caso do empirismo, sobretudo quando quem as defende nem sequer conhece a bibliografia filosófica onde estes temas são cuidadosamente estudados. A ironia é que não a conhece porque, sendo a filosofia como a matemática (nenhuma das duas é uma disciplina empírica), os cientistas sentem que a filosofia é lixo intelectual, mais ou menos como a astrologia. O que é curioso nisto é que a maior parte das pseudociências são estudos empíricos — acontece apenas que são mal feitos, e é por isso que são pseudocientíficos, e não por não serem empíricos. Em contrapartida, nem a numerologia nem a matemática são disciplinas empíricas, mas uma é científica e a outra não. Não mais de um minuto de reflexão honesta mostra que a demarcação entre a ciência e a pseudociência não pode ser o simplismo que é comum pensar (simplismo que é, não o devemos esquecer, uma doutrina filosófica — ainda por cima demonstravelmente errada — sobre a natureza da ciência) e a que o David Marçal já deu voz neste blog (vale a pena dizer que, no julgamento referido, o filósofo consultado pelo tribunal foi Michael Ruse, que mais tarde percebeu que a sua perspectiva do que é ciência é insustentável, como mostrou logo de seguida o filósofo Larry Laudan).

O empirismo fica com um problema grave para responder: a matemática. É óbvio que a matemática nos dá conhecimento substancial da realidade. Claro que não nos dá sozinha esse conhecimento: precisamos da observação empírica para saber qual é a natureza do espaço, por exemplo. Mas a observação empírica também não nos dá sozinha um conhecimento substancial da realidade: sem a matemática, tudo o que podemos fazer é descrever de maneira superficial o que observamos, nunca se conseguindo formular leis científicas nem se conseguindo explicar adequadamente os fenómenos observados.

É um caso de discriminação. Durante séculos, era como se só os homens fossem responsáveis pela humanidade; as mulheres eram apenas um acessório decorativo. Gostaria que um dia acabasse o preconceito epistémico de que só o conhecimento empírico é genuíno, uma vez que sem o conhecimento matemático o conhecimento empírico é superficial e desinteressante (pré-científico, para chamar os bois pelos nomes). Mas por que razão há este preconceito? Porque não compreendemos muito bem como sabemos matemática; não compreendemos muito bem como, pelo raciocínio apenas, descobrimos todas aquelas coisas maravilhosas da matemática e da lógica.

Em contraste, parece-nos que compreendemos muito bem como descobrimos que a água é H2O: pela experiência, pela observação. Assim, parece-nos que o conhecimento matemático tem de algum modo de ser eliminado ou reduzido a outra coisa, para poder ser explicado adequadamente. Eu penso que isto é uma ilusão: na verdade, se pensarmos bem, não compreendemos realmente como pode uma onda de luz que afecta a nossa retina, que por sua vez produz correntes eléctricas no nosso cérebro, dar origem a uma representação correcta de uma árvore, para não falar de uma teoria biológica complexa sobre a árvore.

Em qualquer caso, a ideia era que a matemática tinha de ser domesticada, digamos, para se harmonizar com a visão empirista das coisas. E é aqui que surge o logicismo: a tentativa de mostrar que os fundamentos da matemática são, no fundo a lógica.

Curiosamente, esta não era a principal motivação de filósofos como Bertrand Russell e Gottlob Frege, assim como de matemáticos como Peano. A principal preocupação era tornar toda a matemática rigorosa, como a geometria o era. Mas quando fazemos um trabalho de rigor deste género temos de nos perguntar duas coisas. Primeiro, quais são as verdades matemáticas fundamentais, a partir das quais podemos provar as outras. Segundo, que princípios nos permitem provar as segundas com base nas primeiras. Ora, ao tentar tornar rigorosa a matemática, partimos de verdades lógicas simples e de princípios que nos permitem tirar daí conclusões. Assim, apesar de a motivação principal ser o rigor, acaba-se por dar razão ao empirista que considera que a matemática é apenas lógica disfarçada.

A ideia de que a lógica seria o fundamento da aritmética faz sentido, e hoje sabemos melhor até que ponto uma parte importante das verdades aritméticas são verdades lógicas (podemos provar só com princípios lógicos, por exemplo, que dois mais dois é quatro). Para as pessoas comuns, contudo, a ideia de tornar a matemática rigorosa recorrendo à lógica parece o mundo de pernas para o ar — pois estão habituadas a pensar que a lógica é coisa de filósofos e por isso é mais ou menos como a homeopatia, ao passo que a matemática é coisa de gente séria, mais que não seja porque sem ela acaba-se a física, a química, a biologia e tudo o que chamamos “ciência”. A verdade, contudo, é que a matemática era tudo menos rigorosa nos finais do séc. XIX e que se tornou rigorosa porque passou a usar recursos lógicos, o que por sua vez conduziu a importantes desenvolvimentos da própria lógica. Lógica e matemática fecundaram-se assim mutuamente.

O projecto de reduzir a matemática à lógica era o projecto de mostrar que, afinal de contas, não há verdades matemáticas no sentido primitivo do termo: todas as verdades matemáticas são afinal verdades lógicas. Isto parece que nos deixa mais ou menos na mesma. Contudo, se pensarmos que a ideia de verdades matemáticas era uma espinha na garganta da epistemologia empirista (as únicas verdades genuínas e sérias são empíricas, as que não o são não passam de “treta” — um novo conceito filosófico recentemente introduzido nos debates pseudocientíficos nacionais), a ideia de mostrar que a matemática afinal é lógica parece uma beleza — se ao mesmo tempo tivermos uma ideia empirista qualquer sobre a epistemologia da lógica. E isso era precisamente o que os empiristas pensavam que tinham.

Os empiristas do séc. XX, mais sofisticados do que os dos séc. XVIII, pensavam que podiam afirmar que todo o conhecimento substancial da realidade é realmente empírico. A lógica não fornece, do seu ponto de vista, qualquer conhecimento substancial da realidade, porque é apenas a gramática do pensamento, as regras sintácticas e semânticas da nossa linguagem, nada mais. Por isso, parece que sabemos sem recorrer à experiência que se está a chover, está a chover (esta é uma verdade lógica), mas na verdade isto não é conhecimento genuíno de coisa alguma, porque é apenas a expressão da gramática da nossa língua: exprime a nossa determinação contingente (poderíamos ter outra lógica, tal como temos várias línguas) para usar a expressão “se, então” de uma dada maneira em vez de outra.

Neste contexto empirista, se conseguirmos mostrar que a matemática afinal é lógica disfarçada, acaba-se a espinha na garganta do empirista: a matemática realmente não nos dá conhecimento substancial da realidade, porque é apenas lógica e esta é só convenções linguísticas e nada mais. O empirismo ganhou finalmente a batalha, contra todas as aparências em contrário. E é aqui que entra Gödel.

Como muitos outros filósofos (incluindo dois dos fundadores da lógica e matemática modernas, Russell e Frege), Gödel não era empirista. Quando se diz que uma pessoa não é empirista, os crentes religiosos na Ciência (com maiúscula, como Deus, a Pátria, o Estado e o Futebol, perdão, a Família) ficam logo amuados, porque para eles toda a gente que não seja empirista é sacrílego, não é sério e é pseudocientífico e místico. Porquê? Porque parece logo que essa pessoa acredita numa parvoíce: que nos sentamos na cadeira, e como não somos empiristas, temos a veleidade de descobrir apenas pelo pensamento como é a atmosfera de Marte. Como isto é obviamente idiota, os empiristas são idiotas.

Isto é mais ou menos como pensar que uma pessoa que rejeita que todas as mulheres são louras é idiota porque defende que nenhuma mulher é loura. Como é óbvio que há mulheres louras, este gajo está em delírio. Acontece que quem está em delírio são tolos que não sabem como se nega correctamente uma afirmação simples quantificada. A negação correcta de “todas as mulheres são louras” não é obviamente que nenhuma mulher é loura, mas antes que algumas não são louras. Do mesmo modo, negar o empirismo é negar que todo o conhecimento substancial é empírico, o que significa defender que nem todo o conhecimento substancial é empírico — e não a tolice de que nenhum conhecimento substancial é empírico.

Como muitos intelectuais, Gödel não tinha um sentido muito bom da natureza humana. E o futuro mostrou-o de modo particularmente nítido. O que Gödel fez foi mostrar que há verdades matemáticas que não são lógicas. E que verdades são essas, são profundas, rebuscadas, estranhas? Não. São meras verdades aritméticas óbvias. O que mostra o famoso teorema de Gödel de 1931 é que, dado um sistema de lógica suficientemente forte para conter a aritmética, se o sistema for consistente, haverá verdades matemáticas que o sistema devia incluir, mas que nunca vai incluir. Dado que se trata de verdades que podemos conhecer de maneira muito simples, e dado que não são verdades lógicas, segue-se que a espinha na garganta volta a atacar: o empirista não tem maneira de descalçar a bota e dizer que o conhecimento matemático é meramente lógico e que este é completamente vácuo, pelo que todo o conhecimento é empírico.

Para surpresa de Gödel — eu avisei que ele desconhecia a natureza humana — ninguém na audiência percebeu o alcance do resultado por ele apresentado. E na audiência estavam alguns dos mais importantes lógicos e filósofos empiristas daquele tempo, como Carnap. Pior ainda: passou já um século desde a publicação do seu resultado, e os empiristas continuam a falar como se nada fosse. Gödel tinha a ingenuidade de pensar que as pessoas mudam de ideias com argumentos, razões, provas cabais — mas raras pessoas fazem tal coisa.

A história de Gödel é a história da miséria cognitiva humana. Devido ao seu rigor e atitude extremamente cuidadosa, Gödel não gostava de afirmar o que não podia provar. Por isso, trabalhou durante muito tempo no que pensava que era uma contribuição fundamental para a história da filosofia: a refutação definitiva do empirismo. A história mostrou-lhe o quão errado ele estava. Hoje, o teorema de Gödel é mencionado por pessoas que não sabem coisa alguma de lógica como se ele tivesse mostrado os limites da racionalidade. Não tem coisa alguma a ver com isso. O que ele mostrou é que temos uma coisa que a todos parece óbvia menos aos empiristas: temos conhecimento não-empírico substancial da realidade, pelo que o conhecimento e a racionalidade humana não se limitam à experiência empírica e à manipulação cega de símbolos (que é o modo como os empiristas concebem a lógica).

39 comentários:

Anónimo disse...

"Pseudociências são estudos empíricos — acontece apenas que são mal feitos"

??????

Eu diria mais tabu ou há ciência com várias cores, meus senhores falem sério, há uma agenda transhumanista e algumas "pseudo" ciência precisam de ficar de fora:
http://www.youtube.com/watch?v=4RQ5zRh2fF4&feature=plcp&list=PL719C8455666C75BD

Unknown disse...

Também me parece que a visão puramente empirista da ciência é bastante redutora (e absurda). Mais, acho-a tão pouco razoável, que me faz pensar que seja apenas um lapso involuntário do David Marçal na destrinça (que para ele é fundamental) entre ciência e pseudo-ciência.

Unknown disse...

Que Einstein me perdoe!!!: "A Lógica sem o Empirismo é manca; o Empirismo sem a Lógica é cega."
Tudo é uma questão de EQUILÍBRIO!!!
Minha Humilde opinião. Gostei do Texto.

Anónimo disse...

Galois

Há 2 perigos essenciais numa definição (há bastantes mais, mas vou usar estes neste comentário). Uma definição pode ser demasiado restrita (Ex: «Animais são os homens e os peixes.»; esta definição absurda é restrita demais por haver animais que não são homens nem peixes); Uma definição pode ser demasiado lata (Ex: «Os quadrados são os polígonos com 4 lados iguais.»; esta definição inclui também os losangos que são objectos indesejados).

Quando se define, à partida, devemos tentar ter uma ideia bastante clara sobre o que se pretende definir. Vamos partir do princípio que a maioria de nós considera ciências tanto a biologia como a matemática. Este comentário é um pouco paralelo para aqueles que não consideram a matemática uma ciência. É claro que esses têm o problema da definição de ciência muito facilitado, mas penso que não estão a definir o que a maioria dos cientistas considera ciência.

Quando Marçal tentou caracterizar a ciência usou claramente um critério simultaneamente restrito e lato. Murcho apontou, e bem, que segundo a sua tese, objectos considerados ciência ficariam de fora e outros não considerados ciência ficariam dentro. Na minha opinião, Murcho tem muita razão nessa objecção.

Definir ciência é algo bicudo. Em temáticas bicudas como esta gosto de partir de definições mais latas (tendo a vantagem de conseguir um consenso à partida) e, depois, ir fechando a definição à medida que a compreensão avança. Sendo assim, acho que haverá consenso em algo do tipo «Nas ciências utilizam-se métodos que tentam, com honestidade intelectual, procurar resultados não baseados em opiniões subjectivas. Em grande número de casos isso não se conseguiu, não se está a conseguir, não se conseguirá; mas os métodos deverão garantir sempre a tentativa honesta.». Tenho que concordar que esta caracterização corre o risco de ser demasiado lata, correndo o risto de abertura a objectos não usualmente considerados ciência. No entanto, a filosofia embora baseada na razão, e por excelência, seja honesta intelectualmente, tem um problema para ser considerada uma ciência, mesmo à luz do que escrevi. Quanto a mim, o problema está no objecto de ataque da filosofia (que é basicamente tudo, desde que feito racionalmente). Se a filosofia admite tratar através da razão de perguntas como «O que é o amor?», «O que é a arte?», é claro que está mais ou menos condenada a não conseguir fugir a matérias de opinião (mesmo usando lógica nos seus argumentos). Daí haver correntes filosóficas e material filosófico não sequencial (como há na matemática, por exemplo). Não se pode dizer que o filósofo A venha depois do filósofo B. Os objectos tratados pela filosofia não permitem que esta seja considerada ciência à luz da caracterização que escrevi. Eu prefiro tratar «O que é o amor?» com a poesia (e com a prática quotidiana!). Mas acho importantíssimo e natural que se possam tratar de todos os assuntos com a razão, incluindo estes. É por isso que a filosofia tem de ocupar um lugar autónomo na cultura humana. Esta última parte foi falada com pouco fundamento. Cá estará o autor do post para contradizer alguma coisa incorrecta.

Quanto à distinção entre ciências, não vejo outra forma de o fazer a não ser olhar para os métodos de cada uma. Para se «procurar resultados não baseados em opiniões relativas e subjectivas» as ciências utilizam inúmeros métodos. Exemplifico com três: método demonstrativo puro utilizado na matemática (e em filosofia também, mesmo que não a queiramos considerar ciência), método estatístico (aquele que mais é utilizado de forma pouco honesta, não tenho dúvidas que a maioria das teses académicas que andam para aí são pseudociência da boa; mas quando bem aplicado é um método muito válido), método experimental laboratorial. (continua)

Anónimo disse...

(continuação)

Todos estes três métodos ambicionam a fundamentação dos resultados em algo consideravelmente mais forte do que a simples opinião. O mais robusto, na medida em ser à prova de bala, é a demonstração matemática que, como bem diz Murcho, não precisa de empirismo para nada (é por isso que é comum chamar-se a matemática de ciência exacta). Mas os outros métodos são válidos, produzem progresso, e, em imensos casos, são a única solução. Mesmo na matemática há variados tipos de experimentação (o método demonstrativo não é o único método utilizado na investigação matemática). Com o advento da informática temos autênticos laboratórios em casa. Eu próprio (e quase todos os que fazem investigação matemática, portugueses e estrangeiros) programo coisas para poder testar com base na força bruta algumas conjecturas. Estes programas incidem sobre objectos matemáticos abstractos muito longe das cenouras do quintal. Mas para mim, é claro que todos os métodos deste tipo dão corpo à essência do método científico e são o que permitem fazer distinções entre ciências particulares (embora haja, evidentemente, zonas cinzentas por todo o lado). Sendo assim, se bem percebo esta discussão, Murcho defende que a ciência é muito mais vasta do que aquela que é baseada directamente na realidade pura e dura. Eu concordo com isso.

Desidério Murcho disse...

Na verdade, há três perigos, pois também há definições más que são simultaneamente demasiado restritas (excluem o que deviam incluir) e demasiado latas (incluem o que deviam excluir). As definições que os cientistas dão de ciência são geralmente demasiado latas (incluem coisas como a agricultura empírica, que não é científica) e demasiado restritas (não incluem ciências como a matemática e a lógica).

Mas quero discordar de um pequeno aspecto do que você afirma, apesar de concordar com quase tudo o resto: a ideia de que o que queremos em ciência é afastar-nos da opinião. Isto é falso. As teorias científicas são apenas opiniões. Não são factos, como o facto de estar a chover. São apenas opiniões. O problema é que as pessoas tendem a pensar que só há um tipo de opiniões: opiniões à bruta, à toa, sem qualquer estudo, fundamento, rigor. E por isso tendem a dizer que a ciência não é uma questão de opinião. Mas o que querem dizer é que não é uma questão de opinião à bruta (como as que vemos nos comentadores deste blog, e por vezes nos próprios autores do blog, como eu mesmo e outros). Mas a ciência não pode ser outra coisa a não ser opiniões, porque tudo o que fazemos em ciência é construir teorias, o mais rigorosas que conseguimos, e as teorias são apenas opiniões; apenas são opiniões muito mais sofisticadas e cuidadosas do que as opiniões dos políticos, por exemplo, que decidem tudo à maluca, sem qualquer estudo aturado seja do que for.

Nunca devemos confundir factos com a nossa representação dos factos. Quando as pessoas usam expressões como “realidade objectiva”, estão mergulhadas em confusão porque toda a realidade é objectiva. O que pode não ser objectivo são as nossas representações da realidade, isto é, dos factos. E as nossas representações são apenas as nossas opiniões. A diferença entre o estudo sério das coisas e a opinião à bruta é que no primeiro caso partimos do pressuposto plausível de que somos falíveis e por isso tentamos limitar os nossos erros; na opinião à bruta, pelo contrário, o pressuposto idiota é que as nossas opiniões, por crermos muito firmemente nelas, são verdadeiras por serem nossas, e podemos prescindir da humildade de estudar cuidadosamente as coisas e de tentar limitar os nossos erros.

Desidério Murcho disse...

Só mais uma coisa: pensar que a filosofia não pode ser ciência porque não pode ir além das opiniões é, pois, uma ilusão. A filosofia é muito mais científica do que coisas como a psicologia social, por exemplo, no sentido em que as teorias filosóficas são muitíssimo mais sofisticadas, estão muito melhor fundamentadas e têm muito maior poder explicativo. Contudo, o preconceito de que para ser ciência tem de ser empírico faz as pessoas afirmar que uma é científica e a outra não. Isto é pura confusão.

Anónimo disse...

Galois

Penso que neste caso estamos a dizer mais ou menos o mesmo. Quase de certeza que o problema está na forma como me expressei (e no uso alargado da palavra «opinião»).

«A diferença entre o estudo sério das coisas e a opinião à bruta é que no primeiro caso partimos do pressuposto plausível de que somos falíveis e por isso tentamos limitar os nossos erros; na opinião à bruta, pelo contrário, o pressuposto idiota é que as nossas opiniões, por crermos muito firmemente nelas, são verdadeiras por serem nossas, e podemos prescindir da humildade de estudar cuidadosamente as coisas e de tentar limitar os nossos erros. »

Não podia estar mais de acordo consigo. Quando digo que a ciência aspira, com honestidade intelectual, a basear os seus resultados em algo mais do que a opinião, o que quero dizer é exactamente que a ciência deve partir do pressuposto plausível de que somos falíveis e por isso tentar limitar os nossos erros. É neste sentido que o digo. Além disso, depois acrescento que a intenção é tudo e, em grande número de casos, não o conseguimos, não estamos a conseguir nem conseguiremos. O que quero dizer é precisamente que em elevado número de casos não conseguimos superar a nossa falibilidade (o que vai ao encontro do que diz ao dizer que não se deve confundir factos com a nossa representação dos factos). Estou totalmente de acordo consigo neste ponto. O que digo é que a ciência deve ter a aspiração honesta de superar na medida do possível a nossa falibilidade e é essa a ideia fundamental para a caracterizar. Estamos a dizer o mesmo tipo de coisa.

«ideia de que o que queremos em ciência é afastar-nos da opinião. Isto é falso. As teorias científicas são apenas opiniões.»

Sim, de acordo. Apenas quero colocar a tónica na aspiração. Escolhi a palavra «opinião» e isso causou um natural ruído, uma vez que colide com a ideia certeira de não confusão entre factos e representação de factos. Proponho trocar no meu texto a frase inicial por

«Nas ciências utilizam-se métodos que tentam, com honestidade intelectual, procurar resultados que sejam o mais imunes que seja possível às nossas falibilidades humanas. Em grande número de casos isso não se conseguiu, não se está a conseguir, não se conseguirá; mas os métodos deverão garantir sempre a tentativa honesta.».

Dessa forma, consegue-se um melhor isolamento da ideia que queria partilhar.

Desidério Murcho disse...

De acordo! Isso era o que eu queria dizer, quando noutro post falei da importância da virtude intelectual, ideia com a qual o David Marçal aproveitou logo para gozar. E porquê? Porque do ponto de vista cientificista a Ciência (endeusada) nada tem a ver com pessoas: é como se houvesse um método mágico automático que basta seguir para se fazer ciência. Isto é um simplismo tolo. Os métodos não caem do céu (ou melhor, para a maior parte dos cientistas parvos até cai: fazem o que os seus superiores lhes mandam fazer, sem que saibam por que tem de ser daquele modo). Os métodos somos nós que inventamos, para limitar ao máximo a nossa falibilidade. Mas precisamente porque somos falíveis, os métodos que inventamos também são falíveis. E por isso temos de estar sempre atentos aos nossos próprios métodos, prontos a repensá-los e corrigi-los. E para fazer isso não temos outro guia do que a nossa própria virtude intelectual, que o David Marçal considera irrelevante e até algo arcaica. E é: para um cientista religioso, que tudo o que faz é seguir receitas feitas por outros, a virtude intelectual não é precisa para coisa alguma. Mas isto é apenas porque este tipo de cientista não é um cientista fundamental: é apenas um aplicador cego. O meu computador também não precisa de virtude intelectual.

Anónimo disse...

Galois

Neste ponto, confesso que sou meio ignorante.

Sei que a filosofia é incrivelmente sofisticada e baseada, em muitos casos, num argumentário que, por estranho que possa parecer a alguns, está bem próximo do que conheço na matemática (fora as disciplinas escolares, tenho formação zero no que diz respeito à filosofia, mas li autonomamente uns 30-40 livros com atenção e é realmente essa a sensação que tenho).

Tenho então a seguinte ideia no espírito: dada a vastidão e natureza dos objectos estudados pela filosofia (existência de Deus, o que é a arte?, o que é a ética?, o que é o ser?; em suma todo o género de questões) e dada a forma como os estuda, é impossível evitar o aparecimento de correntes várias e de um corpo de conhecimentos não sequencial (coisa que não acontece nas ditas ciências onde as coisas são tendencialmente sequenciais).

Imagine-se a questão «o que é a arte?». Se fossemos estudar isto como um matemático faz, o que se fazia primeiro era estabelecer consensualmente as definições básicas, axiomas, relações entre objectos, em suma, definir-se-ia primeiro um universo «Arte», para servir de base de partida. Em seguida, atacar-se-ia a questão, surgiriam teoremas, propriedades, estruturas, etc. O matemático ficaria contente com o que conseguisse provar para o universo «Arte». Se as definições iniciais lhe parecessem interessantes e lógicas, isto já lhe pareceria bom conhecimento (e seria de facto bom conhecimento sobre o «Arte»). Isto, E MUITO BEM, repugnaria qualquer artista que se preze (que até teria sensação de vómito ao ver a sua arte assim tratada). Além disso, provavelmente isto não seria o que se estava a pensar ao colocar a questão «o que é a arte?». E é por isso que a arte não é um bom objecto para alvo da matemática. A matemática revela-se muito útil para inúmeras outras coisas, nomeadamente no auxílio a outras ciências.

Tanto quanto sei, a filosofia, E MUITO BEM, não atacaria o assunto assim. Atacaria realmente o tutano da arte SEM DEFINIÇÃO DE PONTO DE PARTIDA. Tentaria, racionalmente, entender o sentimento artístico, o porquê de chamarmos arte a uma coisa e não a outra, o papel da arte, etc. Neste caso, o filósofo não aceitaria, E BEM, um universo inicial «Arte» sem o debater até ao osso. Este debater até ao osso este tipo de questões primordiais não aparece nas ciências. As ciências em geral trabalham com pontos de partida mais ou menos bem definidos. Esta inexistência de ponto de partida conceptual mostra a característica de tratar racionalmente assuntos «cada vez mais atrás» que a filosofia tem. A filosofia, ao contrário da matemática (e de outras ciências), não cria o atalho do ponto de partida. Com todas as vantagens e desvantagens que essa atitude vem trazer.

Passei a ideia que tenho? Será uma tontice?

Anónimo disse...

Mae-Wan Ho: We need to change | EU 2013 Off-Stage
http://www.youtube.com/watch?v=xc9besuRfkk

José Batista disse...

Interessantíssimo.

Permitam-me uma "interferência" mais ou menos "inocente". Algures li que, para a sensibilidade humana, "não há factos, há apenas interpretação de factos".
Não sei por que cargas de água dei comigo a pensar que li isto no "livro do desassossego". Reli-o e não encontrei tal frase.
Mas estou convicto de que a não inventei...

Queiram desculpar.

joão viegas disse...

Ola,

Muito rapidamente, acho que estamos aqui a misturar duas questões diferentes. Uma é a da definição do perimetro da "ciência" enquanto empresa de conhecimento rigoroso da realidade, outra é a do proprio objecto da ciência.

Compreendo perfeitamente que seja dificil definir de forma satisfatoria o rigor caracteristico da "ciência". Como é obvio, é ingénuo acreditar que esse rigor exista dentro da realidade objectiva e que brota directamente dela para dentro do nosso cérébro, nem me parece alias ser esta a posição daqueles que o D. qualifica de "empiristas". Eles não defendem que a racionalidade jaz no meio da realidade bruta e que é so preciso apanha-la do chão. Aceitam, muito pelo contrario, que existe uma interacção entre a realidade ideal (que esta nas nossas cabeças) e a realidade exterior. Mas defendem que o "rigor" da ciência se afere, em ultima analise, por uma aplicação metodica da critica racional às nossas observações acerca da realidade exterior, que nos permita uma compreensão mais fina da realidade objectiva. Nas margens, isto é complicado porque, por exemplo na matematica, não sabemos se estamos a observar as nossas representações mentais como se se tratasse de realidades objectivas (como alguns matematicos defendem), ou se ja estamos a fazer outra coisa. Seja...

Ja a discussão sobre o objecto é completamente diferente. A ciência tem como finalidade alcançar o melhor conhecimento objectivo da realidade, o mais fino, o mais completo, o mais rigoroso, etc.

A filosofia, tradicionalmente, nunca se definiu dessa forma. Preocupa-se com conhecimento, mas esta preocupação não esgota o seu objecto, longe disso, uma vez que ela procura o "viver bem" e que entra necessariamente no campo dos valores (ou da filosofia moral), de uma forma que não é redutivel à preocupação de atingir os conhecimentos mais exactos do ponto de vista objectivo.

Logo, se aceitarmos a definição tradicional da filosofia, deveremos concluir que a questão "eu sou mais/menos ciência do que a fisica ou a biologia" (questão um pouco adolescente, se me permitem), é desprovida de sentido.

E' verdade que uma interessante corrente de filosofia, às vezes caracterizada como "filosofia analitica", tem a pretensão a fazer da filosofia uma empresa igual à das outras ciências, adoptando o modelo das ciências exactas. Mas, tanto quanto consigo ver, esta corrente esbarra muito cedo com limitações obvias, nomeadamente no dominio da reflexão ética (mas não so).

Pessoalmente, não tenho nenhuma dificuldade para reconhecer à filosofia, em muitos dos seus ramos, um rigor e um método que se assemelha ao da ciência (as relações entre as duas coisas são obvias, na medida em que a filosofia é, primariamente, "amor do saber"). Mas se definirmos a filosofia como mais uma ciência, ou mais um ramo da ciência, teremos de abandonar o essencial do seu objecto...

Boas

Anónimo disse...

Galois

Concordo consigo que estamos a falar de duas questões diferentes. Mas não penso que as tenhamos misturado.

Tal como DM, não vejo que a questão da experiência empírica seja determinante na caracterização de ciência. Outra questão que levantei, para a qual não consigo ter uma visão especialmente fundamentada (uma vez que não experiencio a filosofia como faço com outras coisas do meu trabalho), diz respeito à natureza da filosofia. A questão das naturezas da filosofia e da matemática fazem todo o sentido quando se discute a natureza da ciência. A da matemática pelo carácter extremo que tem e a da filosofia por, embora baseada na razão, sofisticação e rigor, não ser considerada ciência. Tal como o estudo de outros planetas pode trazer melhor conhecimento sobre o nosso, o entendimento sobre a particularidade da filosofia que a distingue das ciências pode trazer melhor conhecimento sobre as próprias ciências.

Na minha opinião, não é nos instrumentos lógicos e racionais que a filosofia se distingue vincadamente. É precisamente a natureza do objecto que faz com que a filosofia tenha características que as comuns ciências não têm.

Mas, tal como vc, penso que a filosofia, embora honesta e sofisticada (em alguns bons casos, como tudo), se distingue da ideia comum de ciência. E isso deve-se mais ao seu objecto do que as métodos internos.

Era essa a discussão que queria propor. Mas não quis misturar com outras temáticas. Usa a boa palavra «perímetro»; em última análise, penso que o que torna a filosofia particular vem exactamente do seu perímetro alargadíssimo.

joão viegas disse...

Caro Galois,

Sempre esclarecedores e estimulantes os seus comentarios. Concordo em grande parte com o que v. diz. Mais, acho que o que nos separa tem, de facto, muito a ver com a questão de saber até que ponto as questões "do perimetro" e "do objecto" são distintas (ou não).

Vejo no seu comentario uma pequena tendência para confundir as duas questões, o que atribuo ao seu espirito cientifico. Com efeito, v. da por adquirido que estamos a falar de disciplinas cuja unica finalidade é procurar alcançar um conhecimento rigoroso da realidade. Logo, v. parte do principio de que as diferenças entre umas e outras são mera questão de perimetro, entendendo por isso a area particular que cada uma delas procura conhecer.

Mas não é disso que falo quando menciono a questão do "objecto" da ciência e do “objecto” da filosofia. Para mim, definir o objecto leva também a questionar os objectivos, a propria finalidade que determinada disciplina se propõe alcançar.

E’ questionavel que a filosofia procure apenas um conhecimento rigoroso da realidade exterior. Quanto a mim, a filosofia é, também, uma especulação sobre os fins, sobre o bem e o mal, sobre o viver bem, etc., ou seja sobre realidades que não são, ou não são apenas, exteriores e objectivas.

Mas, como é obvio, a distinção que faço é suspeita. Duplamente suspeita :

- Por um lado, é duvidoso que exista uma “ciência” pura que se restrinja à procura do conhecimento objectivo. E’ mesmo duvidoso que uma representação da realidade completamente desincarnada e despida de qualquer projecção de intenções ou de valorações “subjectivas”, tenha ainda uma autêntica consistência.

- Por outro lado, também não é assim tão liquido como digo, que a filosofia procure outras coisas para além do conhecimento objectivo. Pessoalmente, acredito que é o caso e que, ao restringir a filosofia a uma ciência (ou a uma reflexão sobre a ciência), cometemos um erro que deriva, provavelmente, da hegemonia do essencialismo na nossa tradição filosofica. Mas devo conceder que muitos filosofos se comportam, na pratica, como se esse fosse de facto o objectivo ultimo da filosofia. No entanto, mesmo entre estes ultimos, aqueles que foram mais longe foram quase sempre levados a constatar que esta perspectiva era ilusoria. Podia citar aqui uma lista infinita de “grandes” filosofos, mas vou limitar-me a citar três (ou quatro), que julgo poderem reunir consenso entre os leitores deste blogue : Espinosa (ou alias Leibniz), Kant, Wittgenstein...

Boas

Anónimo disse...

Galois

Obrigado pelo esclarecimento. Agora penso que percebo melhor onde quer chegar.

O que diz é que os meus comentários incidem apenas sobre a natureza do objecto, mantendo mais ou menos a par o tipo de rigor na filosofia e nas ciências comuns (e tem razão).

O que diz nos seus comentários é que a diferença entre filosofia e ciência não deve ficar isolada apenas na natureza do objecto de cada uma, mas também nas finalidades e modus operandis que, no caso da filosofia, podem abranger contornos especulativos, convívio com subjectividade, etc.

Ok, deixe-me pensar sobre isso (confesso que não tinha opinião formada sobre esse detalhe (sempre baseei a diferença quase exclusivamente no tipo de questão; a natureza do objecto)). Se conseguir, certamente que comentarei mais tarde.

Desidério Murcho disse...

A ideia, José, é que não podemos sair das nossas representações dos factos para os comparar com os próprios factos. Tudo o que podemos fazer é comparar representações diferentes de factos entre si, para diminuir a possibilidade de estarmos errados.

As pessoas apressadas concluem então que não há factos. Mas isto é tolo. É como pensar que como não podemos ter experiência directa do Big Bang, este não ocorreu.

Desidério Murcho disse...

Em filosofia damos muita importância às definições. Acontece apenas que quando definimos conceitos científicos, estes nunca são simples: baseiam-se sempre noutros conceitos mais simples, que os cientistas não definem porque não precisam disso. Por exemplo, você em matemática define muito bem número primo. Mas como define número? Em filosofia damo-nos ao trabalho de discutir essas definições muito difíceis; difíceis precisamente porque são conceitos tão simples que não parecem constituídos por outros conceitos ainda mais simples a que possamos deitar mão. No caso da arte, temos uma discussão contemporânea muito importante sobre o tema e temos tido avanços muito importantes nesta área. Mas nunca temos o género de resultados que temos em matemática ou em física. O que temos são especulações mais razoáveis, mais explicativas, mais provavelmente verdadeiras do que outras, mas nunca com a segurança que nos dá uma demonstração matemática ou uma confirmação em química ou física. Filosofia é especulação, mas quando é filosofia de qualidade, é especulação feita com rigor e não à maluca. E, como é óbvio, há muita filosofia de má qualidade (isto é algo que eu preferia que matemáticos e cientistas aceitassem como natural: que é ciência e matemática de péssima qualidade, em vez de pressuporem falsamente que tudo o que é ciência é nobre e bom e bonito).

Portanto, penso que você não só não disse uma tontice, como acertou em cheio: a filosofia é uma disciplina fundamental precisamente no sentido em que não volta as costas aos problemas mais difíceis.

Desidério Murcho disse...

Concordo em grande parte, sim. O que distingue a filosofia das ciências não é a atitude, que é científica (pela simples razão de que nenhuma atitude cognitivamente robusta pode não ser científica). O que a distingue é o facto de ter como objecto problemas que não podem ser atacados proveitosamente usando os métodos da matemática nem os das ciências empíricas. Não há maneira empírica nem matemática de atacar proveitosamente os problemas filosóficos. O que me parece muito obscurantista da parte de muitos cientistas que conheço é a ideia de que se não há uma maneira científica de estudar um problema, o melhor é esquecê-lo. Isto é um disparate de uma cegueira incrível, pois pressupõe que antes de nos interessarmos por um problema já sabemos qual é o melhor método para o atacar. Pelo contrário, a ordem natural das coisas é que nos interessamos por um problema e só depois, e em função da sua natureza, é que concebemos métodos para o atacar. Se começarmos por rejeitar problemas que não somos capazes de atacar cientificamente, ficaremos parados cientificamente porque nunca descobriremos novos problemas. Não há maneira de saber se um problema pode ser atacado cientificamente excepto tentando atacá-lo. E muitas vezes é no decurso desse trabalho que descobrimos que um problema previamente filosófico se transforma num problema científico porque, depois de feito o trabalho filosófico bem feito, vemos no problema aspectos que o tornam susceptíveis de tratamento científico (isto está hoje a acontecer em algumas áreas da ética e no problema do livre-arbítrio, por exemplo). Sem a filosofia, a ciência é cega. Sem a ciência, ficamos todos cegos.

José Batista disse...

Sim, é como diz, caro Desidério. Aí não há dúvidas, No entanto, o que tenho ideia de ter lido, se calhar nalgum sítio nada rigoroso, e não consigo saber onde, é que "facto" aparecia definido como acontecimento susceptível de ser testemunhado por diferentes pessoas, mas no sentido de algo associado a acontecimentos reais ou não, sempre dependentes de "interpretações/elaborações/construções/reconfigurações" da razão humana.
Numa tal acepção é como se os factos estivessem para cá da realidade e deixassem de existir se não houvesse uma "razão" ou "racionalidade" humana capaz de os ter em conta ou de lhes dar, ou tentar dar, alguma representação ou significado.
É claro que uma tal noção de facto (diferente de acontecimento...) é, no mínimo, questionável.
Mas as coisas não deixam de ser perturbadoras, basta pensar que os toiros não marram contra o vermelho, como supomos, porque simplesmente não vêem vermelho, tal como Dalton não via o vermelhão das meias que terá oferecido à própria mãe, sem que por isso deixasse de ter a sua noção das cores - a noção de um daltónico.
Dito isto, a realidade "real" acaba sempre por ser algo exterior à noção que fazemos dela, donde, a ciência procurar, em grande medida, constituir-se como uma metodologia conducente a fazer coincidir/compatibilizar a nossa noção/compreensão da realidade com essa realidade. E é por isso que eu, ignorante da filosofia, a vejo como domínio fundamental, primeiro e mais amplo, indispensável ao avanço e enquadramento da ciência.
Por outras palavras: se não sei quem sou, nem o que significo, nem o que valho, o que é ou significa ou vale a ciência que "faço"?

Se as calinadas foram muitas, faça o favor de ignorar.
Agora que eu gosto destes diálogos, lá isso gosto.
Gosto muito. E fico grato.

Desidério Murcho disse...

Só quero dar mais um esclarecimento, pois não sei se ficou claro. Os métodos que usamos em filosofia não são estabelecidos devido à natureza da filosofia. Os métodos que usamos são estabelecidos devido à natureza dos problemas que estudamos.

É uma rematada tolice estudar X da maneira Y porque a nossa disciplina usa os métodos Y. O que devemos fazer é estudar X da melhor maneira possível, o que significa que devemos fazer depender os métodos da natureza do que estamos estudando. Inverter as coisas é um disparate. Claro que grande parte dos académicos, seja de que área for, são algo tontos e portanto limitam-se a fazer o que foram treinados para fazer, sem se perguntar se estão usado os métodos adequados para o seu objecto de estudo. Mas nunca devemos confundir o pior que se faz nas universidades com o que realmente se deveria fazer. O escolasticismo, que é a grande praga académica do séc. XXI, e que resulta de um profissionalismo forçado e acelerado da universidade, tem precisamente como uma das marcas a fixidez metodológica, e quando isso acontece temos cegueira intelectual. O investigador consciencioso está sempre a perguntar-se se não poderá melhorar o seu estudo mudando os seus métodos, e está sempre preocupado em encontrar os melhores métodos que for capaz de imaginar e pôr em prática para enfrentar os problemas que o fascinam (o que pressupõe que há problemas que o fascinam, em vez de a obrigatoriedade de publicar porque sim). Esta é uma das razões pela qual dizer que a ciência se caracteriza por ser uma investigação naturalista é uma ideia particularmente nefasta (escreverei talvez sobre isso noutro post). A ciência caracteriza-se pro estudar o melhor possível a natureza da realidade espácio-temporal, e se amanhã descobrirmos que a melhor maneira de o fazer é ficar de joelhos e rezar, então é isso que estamos epistemicamente obrigados a fazer. Acontece é que esse método nunca foi particularmente profícuo.

Anónimo disse...

Galois

Não só as questões da natureza dos objectos e métodos utilizados, mas também a própria natureza dos resultados parece ter importância para identificar as particularidades da filosofia que a distinguem das ciências.

Como diz JV, a filosofia por vezes utliza métodos diferentes dos utilizados nas ciências (de naturezas especulativa, subjectiva, etc.). Partirei de um exemplo para passar uma ideia em que pensei. É comum, tratar-se de problemas éticos e morais a partir de questões bicudas. Eis uma, «Um avião com 100 pessoas vai a cair e o piloto só aceita salvar toda a gente se se matar um bébé inocente que se encontra no avião. Ou se mata o bebé e só ele morre ou morrem todas as pessoas. O que fazer?». É claro que esta não é uma questão tipicamente tratada nas ciências. Por exemplo, a matemática não tinha absolutamente nenhuma forma de tratar este problema. No entanto, a filosofia pode atacar a questão e, a meu ver, o argumentário com que trata a questão é simultanemente o método e o resultado (coisa que não acontece nas ciências em que tendencialmente método e resultado estão separados). Pensando melhor, também aqui tendo a concordar com DM, quando diz que os métodos são determinados pelo objecto (não é o método Y que é especificado pela natureza da filosofia, mas sim o método Y para atacar X que lhe é característico). Concordo com JV que a filosofia trata «especulação sobre os fins, sobre o bem e o mal, sobre o viver bem, etc.» mas, métodos especulativos, argumentários sofisticados como fins em si mesmos, subjectividade sofisticada, são, em última análise, consequência de não fugir a questões incrivelmente bicudas e primordiais a que a ciência, pela sua natureza, costuma fugir (a ciência ganha em fugir, a filosofia ganha em não fugir). Sendo assim, até que me convençam melhor, continuo a achar que a questão principal da diferença está no objecto.

Voltando à temática do bébé: analisem-se os possíveis resultados «Sim, mate-se o bébé por isto e aquilo...» ou «Não se pode matar o bébé, caso contrário, blá blá...». Também a natureza dos resultados, quanto a mim, pode ser muito diferente na filosofia. Os resultados da ciência têm consequências típicas: podem permitir previsões, podem ser susceptíveis de ser demonstrados logicamente, podem servir de peça vital para outros argumentos, podem ser alvo de análise estatística, etc. O que quero dizer é que, dada a forma como foram alcançados, os próprios resultados científicos têm certas características que alguns resultados filosóficos mais especulativos podem não ter. Como diz DM, as especulações podem ser incrivelmente sofisticadas. No caso «mate-se o bébé...» versus «não se mate» a argumentação pode ser mais ou menos sofisticada, mais ou menos fundamentada, pode haver encadeamento, e, na minha opinião, é um caso em que a riqueza da própria argumentação é o resultado que conseguimos obter (que não pode ser alvo de estatística, demonstração, utilidade para previsão, etc). Em suma, duas ideias: 1) A natureza dos métodos utilizados na filosofia, em última análise, vem da natureza das questões tratadas; 2) Vejo ser possível encontrar as particularidades que fazem da filosofia algo naturalmente diferente das ciências não só no par objecto tratado-métodos utilizados, mas até no triplo objecto tratado-métodos utilizados-resultados obtidos. Mas tal como acontece em relação aos métodos, também a natureza dos resultados é consequência do objecto tratado. Portanto, se quisermos ser puristas, em última análise é o objecto que é determinante para a diferença, mas talvez seja melhor considerarmos estas particularidades da filosofia como um todo não procurando a sua separabilidade.

Desidério Murcho disse...

Obrigado pela achega. Talvez valha a pena fazer mais um esclarecimento. O género de experiência mental que menciona (do avião) tem um papel igual ao das experiências mentais de Einstein para testar ideias sobre tempo, luz e velocidade. Neste aspecto, não há qualquer diferença entre filosofia e ciência. As experiências mentais visam testar os princípios que usamos em várias outras situações e que nestas outras parecem muito adequados porque não são situações-limite. O objectivo das experiências mentais é ver, raciocinando apenas, se nas situações-limite tais princípios funcionam adequadamente.

E de onde vêm esses princípios? Das teorias filosóficas, neste caso sobre a moralidade. Uma teoria que estabeleça as consequências, o dever ou a virtude como os aspectos centrais da moralidade terão respostas diferentes ao caso da experiência mental. O que fazemos então é ver se essas respostas são plausíveis. Mas plausíveis relativamente ao quê? Ao resto dos nossos princípios informais, vagos, sobre a moralidade. O que estamos a testar é os limites e aplicação de teorias morais. Portanto, tal como acontece na ciência. Se virmos que as teorias que temos dão respostas muito implausíveis, ou tentamos reformar as teorias, mudando-as onde for possível, ou tentamos encontrar teorias mais promissoras. Isto é muito difícil de ser feito.

A diferença relativamente à ciência vem agora: no caso da ciência empírica (como na matemática), depois das especulações e experiências mentais vem o teste empírico (ou a demonstração matemática). Nas ciências empíricas procuramos então extrair consequências empíricas da teoria que construímos com base na experiência mental; essas consequências têm de ter a seguinte característica: é improvável que a coisa X acontecesse caso a teoria fosse falsa, e muito provável que, caso X aconteça, a teoria seja verdadeira. Nomeadamente, porque a teoria anterior (newtoniana, por exemplo) prevê claramente Y, em vez de X, naquela circunstância. Quando temos então uma previsão dessas e acontece X, damos a teoria como provada. Tudo isto é falível, devido à subdeterminação da teoria pelos dados: há outras explicações logicamente possíveis, e às vezes até prováveis, da razão pela qual X em vez de Y aconteceu, e que são compatíveis com a falsidade da nova teoria e a verdade da antiga. A decisão de abandonar ou não uma teoria e adoptar a outra é em grande parte vaga, e uma aposta informal dos cientistas. Não há outra maneira de proceder. Isto não faz da ciência uma coisa relativa e subjectiva, mas apenas uma aposta epistémica falível, como todas as nossas apostas, mas menos falível porque feita com muitíssimo mais cuidado.

Espero que isto tenha sido esclarecedor. O ponto central é então este: as teorias das ciências empíricas têm consequências testáveis empiricamente. As teorias filosóficas raramente o têm (por vezes têm, mas por motivos éticos não as podemos testar, pois implicaria fazer experiências sociais e políticas que envolvem pessoas). As teorias matemáticas têm consequências empíricas, mas estas são irrelevantes porque não servem para provar teoremas (ainda que se recorra cada vez mais na matemática à força bruta do teste empírico, em máquinas, para ver até onde certos resultados se verificam — e, claro, sabemos muito bem que há proposições matemáticas muito promissoras que nunca poderão ser demonstradas matematicamente, sendo o caso de Gödel um exemplo dos menos interessantes, mas dos que teve mais impacto devido a outros aspectos).

Anónimo disse...

Galois

Foi esclarecedor e concordo com o que diz.
Foi bom o exemplo das experiências mentais de Einstein que arruma e melhora algumas coisas que disse.

Além disso, também me parece fundamental a parte «As teorias filosóficas raramente o têm (por vezes têm, mas por motivos éticos não as podemos testar, pois implicaria fazer experiências sociais e políticas que envolvem pessoas).» que vinca bastante bem a diferença ciência/filosofia que eu queria discutir, nomeadamente no que diz respeito à natureza dos resultados.

Obrigado.

Miguel disse...

Desidério, creio que o problema que levanta é interessante e é evidente que a matemática é em parte conhecimento não empírico. Mas convém fazer uma distinção: não existe uma correspondência biunívoca entre os objectos da matemática e os objectos do mundo real. Nem sequer existe uma correspondência entre as regras da lógica e o funcionamento do mundo real. Um exemplo. Em mecânica clássica, proposições (em física, as proposições correspondem a propriedades de um sistema) podem ser representados por subconjuntos e a lógica clássica é neste caso apropriada. Na mecânica quantica, ao contrário, as proposições correspondem a sub-espaços de um espaço vectorial ou, mais geralmente, de um espaço de Hilbert. Sub-espaços de um espaço vectorial têm propriedades muito diferentes de subconjuntos de um conjunto. As estranhas e anti-intuitivas propriedades do "entanglement" podem ser interpretadas como resultando da inadequação da lógica clássica baseada na teoria dos conjuntos para descrever sistemas microscópicos; e pela necessidade de adoptar uma lógica baseada no comportamento de entidades abstractas num espaço vectorial/Hilbert. Mas este conhecimento só pode ser obtido através de experiências empíricas. Nem a nossa imaginação, nem o nosso conhecimento "a priori" foram capazes de entrever tal coisa. E isso não é difícil de compreender à luz da evolução biológica. Todas as nossas estruturas e potencialidades cognitivas se devem presumivelmente a um longo processo evolutivo. As propriedades do mundo microscópico não jogaram um papel directo na nossa evolução cognitiva, por isso continuam a ser-nos essencialmente estranhas e anti-intuitivas -- mesmo ao fim de 80 anos e várias gerações familiarizadas com as idiossincrasias do mundo microscópio.

Outro exemplo. A imagem do espaço e do tempo de Newton e Kant, juntamente com a estrutura matemática que usavam para o descrever, sabemos hoje que não corresponde à realidade, nem são categorias que o cérebro humano tem de adoptar para racionalizar o mundo. E sabemo-lo uma vez mais através de resultados experimentais.

O contraste entre o modo como aprendemos a falar e aprendemos matemática também é esclarecedor e sugestivo da origem histórica das nossas capacidades cognitivas. A pobreza do estímulo notada por Chomsky e o modo quasi-automático como aprendemos um idioma contrasta com o labor contínuo para aprender as estruturas matemáticas -- afinal de contas, os nossos antepassados caçadores recolectores tiveram um forte pressão evolutiva para desenvolver a linguagem e certos modos de pensamento conceptual que favoreciam a sobrevivência no seu habitat, e não é de admirar que certas estruturas/capacidades cognitivas se tenham tornado fixas nos circuitos neuronais.

Assim, é bastante plausível interpretar as capacidades cognitivas humanas como resultado efectivo de "experiências empíricas" levadas a cabo ao longo da história evolutiva. E, assim, originalmente todo o conhecimento, ou melhor as capacidades cognitivas que o tornam possível, tem uma origem empírica. É claro que uma vez na posse de uma boa teoria física é possível deduzir teoricamente várias propriedades de um sistema sem ser necessário realizar experiências para verificar cada passo intermédio, ou a natureza ontológica de cada objecto intermédio da dedução. Porém, não é possível avaliar a validade de uma ou várias teorias sem recorrer à experiência.

É uma vã ilusão, à luz da história da física que tem variados exemplos de como as proposições/propriedades (e até a lógica) que julgávamos mais fundamentais se revelaram inadequadas, pensar que é possível avaliar a validade/adequação das proposições sobre o mundo real apenas usando o pensamento puro, e sem recorrer à experiência.

joão viegas disse...

Ola,

Penso que não me fiz entender em relação à diferença de objecto entre ciência e filosofia. Vamos ver se me explico melhor...

Diz Galois : "Os resultados da ciência têm consequências típicas: podem permitir previsões, podem ser susceptíveis de ser demonstrados logicamente, podem servir de peça vital para outros argumentos, podem ser alvo de análise estatística, etc. O que quero dizer é que, dada a forma como foram alcançados, os próprios resultados científicos têm certas características que alguns resultados filosóficos mais especulativos podem não ter."

Concordo com isto, e noto que isto pressupõe, precisamente, que o rigor, ou a exactidão, ou a fidelidade (ainda que aproximativos) das nossas representações (cientificas) acerca da realidade podem ser testados em relação a esta mesma realidade, de forma objectiva. Para a ciência, é possivel decidir, com uma confortavel margem de certeza, até que ponto um conjunto de representações mentais acerca da realidade, se aproxima (ou se afasta) daquilo que verificamos de facto, objectivamente, nessa mesma realidade.

Ora bem :

1. O pressuposto que acabei de mencionar assenta numa distinção entre "realidade objectiva" e "percepção subjectiva" que é, ela propria, altamente discutivel (e discutida, tanto por filosofos, como alias por cientistas). De forma que ha alguma ingenuidade nessa posição. Mas seja...

2. A filosofia, quando especula sobre juizos morais, não o faz de maneira a poder submeter-se ao teste descrito acima. A sociologia, ou a psicologia, tentam talvez fazer isso. Mas não é o caso da filosofia ou, pelo menos, de uma grande parte da filosofia. Para esta parte da filosofia (chamemos-lhe filosofia moral “não analitica”), o unico “teste” que poderia fazer sentido seria eminentemente subjectivo : tratar-se-ia de saber até que ponto aderimos, subjectivamente, a juizos de valor que nos confortam, e que nos orientam, na nossa procura de uma vida boa. A filosofia não busca (ou não busca apenas) compreender aquilo que, objectivamente, é considerado como "bom" pelos seres racionais e se impõe a eles como tal, mas procura também atingir, para cada pessoa em particular, usando a razão e o conhecimento como auxiliares, a maior felicidade possivel, não tanto atravês de um assentimento intelectual (por exemplo numa tese de doutoramento) do que atravês decisões existenciais, opções de vida etc.

[continua]

joão viegas disse...

[Continuação]

3. Uma das consequências mais importantes (e “decisivas”) do exposto no ponto 2 acima, é que a filosofia moral não procura sempre o assentimento, nem exclui necessariamente a contradição. Quando leio o Gorgias de Platão, vejo duas teorias morais irreconciliaveis e não tenho que demonstrar que uma esta certa e a outra errada. Leio-as porque ambas exprimem juizos morais organizados de forma coerente e bela e porque, precisamente por isso, trazem uma parte de verdade (ou de beleza) que me vai ajudar a posicionar-me no mundo. Nem a teoria de Callicles, nem a de Socrates, são submetidas ao teste da realidade objectiva. Não porque o que elas dizem não tenha nada a ver com uma realidade objectiva, mas porque o que elas dizem é, num caso como no outro, esclarecedor para mim, ou para qualquer leitor, porventura com ideias opostas às minhas, sobre a relação entre a razão e a realidade... Ha filosofia moral em Leibniz (muito boa) e ha também filosofia moral (tão boa como a primeira) em Schopenhauer quando ele procura refutar Leibniz... Ainda que conseguissemos provar que a esmagadora maioria dos cidadãos de uma sociedade politica aderem às teorias éticas de Hitler, haveria filosofia moral valida no preso que julga que a filosofia moral dos seus algozes é injustificavel...

4. Depreende-se do exposto que estou completamente em desacordo com o Desidério quando ele afirma “O que estamos a testar é os limites e aplicação de teorias morais. Portanto, tal como acontece na ciência. Se virmos que as teorias que temos dão respostas muito implausíveis, ou tentamos reformar as teorias, mudando-as onde for possível, ou tentamos encontrar teorias mais promissoras”. Não é isso que fazemos, ou pelo menos não é isso que se faz na filosofia moral tradicional. Ou pelo menos não é so isto, e uma filosofia moral que quisesse limira-se a isto (como é o caso de algumas correntes analiticas) seria muito rapidamente confrontada com a sua completa improcedência, para não dizer inocuidade...

PS : Eu sei que isto não é liquido para os filosofos analiticos, nem talvez para muitos professores de filosofia que consideram que a sua profissão é uma forma de vida, quando na realidade é muitas vezes apenas, como salienta o Desidério, uma forma de ganhar a vida, o que é muito diferente. Penso que um cientista percebera com certeza o que eu quero dizer : afinal de contas, o vencimento no fim do mês nunca constituiui “prova” da solidez cientifica daquilo que foi realizado pelo cientista funcionario durante o mês em causa !

Boas

Desidério Murcho disse...

Obrigado, Miguel. Mas há duas confusões principais no que afirma.

Em primeiro lugar, não precisamos de saber se o espaço físico é euclidiano ou não para saber geometria euclidiana. E, pior, não podemos saber geometria euclidiana empiricamente. A confusão que você faz é entre saber duas proposições distintas. Uma é a expressa pela frase “Se o espaço for euclidiano, aplicam-se os axiomas de Euclides”. Isto nós só podemos saber a priori. Outra coisa completamente diferente é a proposição expressa pela frase “O espaço é euclidiano”. Isto só podemos saber empiricamente.

Isto aplica-se aos exemplos que você deu. Nenhum ser humano pode saber a priori se a lógica clássica se aplica ou não no mundo subatómico. A única maneira de o saber é empiricamente. Mas saber se a lógica clássica, ou outra qualquer (há um número imenso de lógicas alternativas à clássica), implica uma dada proposição ou não é algo que nenhum ser humano pode saber empiricamente; só o podemos saber a priori.

Outra confusão que você faz é quanto ao conhecimento a priori ou conceptual. O conhecimento a priori não é conhecimento inato, e não tem nada a ver com anterioridade temporal (como o termo latino erradamente faz crer). E não é algo místico ou que seja incompatível com a evolução. O conhecimento a priori ou conceptual é apenas o seguinte: depois de termos adquirido os instrumentos cognitivos comuns, incluindo os linguísticos (coisa que é certamente fruto da evolução), precisamos de fazer observações empíricas para saber, por exemplo, qual é a composição química da água. Não podemos sentar-nos na cadeira e descobrir isso pensando apenas. Mas, nessa mesma circunstância, os matemáticos sentam-se na cadeira, ou os lógicos, e estabelecem teoremas. Este é o contraste que conta, e não o facto de as capacidades cognitivas dos matemáticos e dos lógicos terem uma origem biológica. Claro que têm, mas isso é irrelevante.

Imagine-se alguém defender que os biólogos estão todos enganados, porque não pode haver fenómenos biológicos. Quando perguntamos porquê, a pessoa diz-nos: porque tudo no mundo é composto por quarks e por isso todos os fenómenos são quânticos, logo não há fenómenos biológicos. A resposta correcta é que nada na concepção de fenómeno biológico o impede de ser algo que é constituído por quarks. Do mesmo modo, nada na concepção de conhecimento conceptual ou a priori impede as faculdades que o permitem de terem evoluído naturalmente. Na verdade, certamente que isso aconteceu. Só que isso é irrelevante.

Espero ter sido claro e informativo, se não o fui é só apitar!

Desidério Murcho disse...

É isso exactamente que se faz na teoria moral tradicional, e nada mais tradicional há do que as teorias morais de Aristóteles, Mill e Kant. Só para dar um exemplo, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant discute o caso da mentira, que retoma mais tarde num texto célebre (será moralmente correcto mentir para salvar uma vida, por exemplo). A filosofia moral está repleta de discussão de casos difíceis, e de experiências mentais, precisamente porque fazemos o que eu referi. O que eu não disse é que SÓ fazemos isso em filosofia moral.

joão viegas disse...

Ola,

Quando Kant afirma que a regra moral é valida apenas quando possa ser transformada em maxima universal, ele não esta à procura de uma teoria que lhe permita dar conta da realidade objectiva. Ainda que se verficasse que as pessoas agem tendencialmente, na realidade, movidas por interesses incompativeis com a lei moral, Kant não deixaria de afirmar que a lei moral deve ser conforme o que ele afirma. Quando ele diz que a liberdade é uma realidade completamente incompreensivel, também não esta a testar os limites de teorias morais...

O caso de Aristoteles é um pouco mais complicado, mas quando ele estuda as virtudes das diversas constituições politicas, também não esta "a testar os limites e aplicação de teorias morais". Alias, quando ele estuda constituições que se afastam da perfeição (no seu conceito), isso não o leva a mudar as suas teorias, mas antes a afirmar que essas constituições são criticaveis e que não são um exemplo a seguir. Quando mostra como funciona a amizade, também não esta a testar os limites das suas teorias morais, etc.

Que o material a partir do qual eles elaboram seja a realidade social, perfeitamente de acordo (sobretudo no caso de Aristoteles). Mas que eles se bastam com uma descrição rigorosa daquilo que podem observar da realidade objectiva, eis o que me parece muito longe de ser pacifico.

Conheces a anedota do homem que viaja num balão, que perde o rumo e que avista um matematico em terra, não conheces ?

Boas

Anónimo disse...

Galois

Só para perceber melhor, por que é que

«Quando leio o Gorgias de Platão, vejo duas teorias morais irreconciliaveis e não tenho que demonstrar que uma esta certa e a outra errada. Leio-as porque ambas exprimem juizos morais organizados de forma coerente e bela e porque, precisamente por isso, trazem uma parte de verdade (ou de beleza) que me vai ajudar a posicionar-me no mundo.»

leva forçosamente ao desacordo com

«O que estamos a testar é os limites e aplicação de teorias morais. Portanto, tal como acontece na ciência. Se virmos que as teorias que temos dão respostas muito implausíveis, ou tentamos reformar as teorias, mudando-as onde for possível, ou tentamos encontrar teorias mais promissoras.» ?

Pergunto isto por pensar que, em relação a certas teorias morais, pode ser caminho totalmente inadequado querer demonstrar que uma particular teoria moral está certa e a outra errada (é ingénuo e a questão não se coloca nestes termos). Sendo assim, a primeira transcrição faz sentido para mim. Mas não me parece que seja totalmente oposta à observação feita por DM sobre as experiências mentais como forma de testar teorias morais, afinar limites, etc.

Tentando melhorar o que quero dizer. Não é pelo facto de uma teoria não se poder enquadrar num esquema binário certo/errado como bem espelha a primeira transcrição que não se pode pensar em afinar a mesma teoria, colocar a mesma à prova de experiências limite, etc. Ou seja, não percebi ainda muito bem o porquê das duas transcrições gerarem desacordo.

Anónimo disse...

Galois

Coloquei o meu antes de ler este.

Mas confesso que já não tenho bagagem para comentar os casos particulares de que estão a falar.

Sendo assim, vou colocar-me na posição de leitor.

Muito obrigado pela discussão.

Miguel disse...

Obrigado pela resposta clara e pelos seus reparos. Na verdade, não sou vítima das confusões que me aponta, não me terei expressado de forma completa e suficientemente clara. Certamente que o conhecimento conceptual é distinto de um conhecimento inato, dos comportamentos instintivos com que se nasce e permitem os primeiros gestos de sobrevivência. Na matemática, a título de exemplo os teoremas podem ser deduzidos dos axiomas e a sua validade inferida a partir da utilização correcta das regras de inferência adoptadas. De acordo. É uma forma de conhecimento e não é empírico. So far, so good.

A questão torna-se interessante quando se procura interpretar isto no contexto mais geral do conhecimento humano, enquanto propriedade emergente de sistemas físicos e biológicos. Uma vez aceite o cenário evolutivo como explicação da génese das nossas capacidades cognitivas, ocorre-nos uma questão óbvia. Como é que podemos saber que as nossas capacidades cognitivas não nos induzem em erro? Pondo de parte parecer querer fazer recuar a filosofia mais de quatrocentos anos (até Descartes) com esta questão, o facto é que não me parece que desde então se tenha avançado grande coisa na frente filosófica (em qualquer frente) para responder de forma inequívoca a esta pergunta. Não me interprete mal. Sei que existiram milhentos trabalhos filosóficos, mas creio que é um pouco como na teoria das cordas, são escritos muitos papers, aprende-se muitas coisas interessantes pelo caminho, mas a pergunta inicial permanece por responder de forma convincente. A única resposta é a pragmática: quando colocamos perguntas à Natureza na forma experimental, vamos obtendo respostas que me parecem consistentes e nos ajudam a explorar um pouco mais e a enriquecer a nossa visão do mundo. Todas as tentativas filosóficas para fundamentar o nosso conhecimento falharam. Começando com Descartes, continuando por Kant, e por aí fora. Claro que não conheço senão uma pequeníssima fracção desses trabalhos (que não considero inúteis como espero ter deixado claro), mas sei que se uma resposta plausível sequer fosse encontrada, isso seria amplamente conhecido. Nesse caso, é evidente que iria procurar entende-la.

Acho que faz parte dos ensinamentos da história da física e da filosofia a constatação de que a capacidade de conceptualizar mundo possíveis não nos permite tirar conclusões sobre o carácter ontológico desses mundos. Não é possível avaliar a validade de proposições sobre o mundo real sem o recurso à experiência e/ou à observação. Estou a repetir-me, eu sei, mas é apenas para aplicar essa conclusão aos resultados que alcançamos no uso das nossas capacidades cognitivas. Não podemos saber com certeza se as nossas construções intelectuais nos permitem aceder à realidade tal como ela é; isto é, se ao nosso conhecimento, empírico ou não, é um candidato "bona fide" ao título de conhecimento sobre a realidade, e não mero reflexo de nós próprios, sabendo que o que pensamos conceptualmente e a priori é conhecimento apenas na medida em que somos capazes de o pensar. À imagem de Descartes que sabia existir porque, mesmo que estivesse a sonhar e estivesse completamente errado, podia pelo menos estar certo de que estava a pensar o que estava a pensar.

Miguel disse...

Uma correcção ao meu próprio texto. Acho que existiram alguns avanços significativos desde o século XVII na questão que levantei emulando Descartes. Foram, em primeiro lugar, a teoria da evolução e, em seguida, os abalos conceptuais da física. Não porque nos ofereçam uma resposta concreta à questão em si, mas porque permitem reformulá-la de um modo totalmente diferente, que de outro modo não estaria ao nosso alcance.

joão viegas disse...

Caro Galois,

Boa observação, que talvez nos leve a colocar a questão inicial de forma (ainda) mais pertinente.

Se existe uma forma de rigor (cientifico) que permite aferir a consistência de teorias ou proposições em função de outro critério do que o da sua concordância com a realidade objectiva observavel (concordância que leva a considerar as ditas teorias ou proposições como certas ou erradas), e se é tudo uma questão de medir a aptidão da teoria, ou da proposição em causa, para satisfazer objectivos variaveis (consoante a disciplina), suponho então que esses poderão ser, por exemplo, a beleza intrinseca da construção e a sua propensão para criar prazer estético, ou ainda o sucesso comercial dos livros que expõem a teoria, ou ainda a paz de espirito alcançada pelos adeptos da teoria em causa, etc.

A geografia sentimental do Aquilino Ribeiro poderia assim aspirar a um lugar de destaque no curso de ciências geograficas, ao lado das obras de Orlando Ribeiro (por acaso ela ja o tem !).

Muito bem.

Mas nesse o caso, cabe ainda resolver uma questão bicuda :

Se Exceptuarmos a infelicidade, existira uma realidade que NAO seja ciência ?

Boas

Desidério Murcho disse...

Obrigado pelos esclarecimentos, Miguel. Mas continua mergulhado em confusão. Duas, na verdade. A primeira é que está a insistir numa banalidade que resulta de caricaturas históricas escolares. A caricatura é que os filósofos querem saber coisas empíricas sobre a realidade física, mas sem se darem ao trabalho de fazer investigação experimental. Se isto fosse verdade, a filosofia seria toda uma tolice. Há tolice em filosofia, como há em tudo. Mas no seu melhor não é isso que os filósofos tentam fazer. O que eles tentam fazer é investigar o que não pode ser investigado empiricamente, nem matematicamente. O obscurantismo que detecto nos cientistas consiste em dizer que se não podemos saber cientificamente, não vale a pena tentar saber. Isto é incoerente precisamente porque é uma tese filosófica que não se pode provar cientificamente. É completamente irrelevante, excepto para o obscurantista, que não se tenha avançado na compreensão de um dado problema filosófico. Mas o pior é que isso é completamente falso. A filosofia avançou imenso desde Descartes. O que provoca confusão é estar à espera que o avanço em filosofia seja parecido ao da física. Não é. Mas por que haveria de ser? O progresso em física é muito diferente do que temos em lógica e matemática, pois passamos a vida a descobrir que são falsas teorias físicas que pensávamos que eram verdadeiras, coisa que nunca ou raramente acontece em matemática. Imagine-se quão tolo seria dizer que a física é de algum modo deficiente porque não tem o mesmo tipo de progresso que tem a matemática. A filosofia tem muito progresso, mas não é um progresso por acumulação de resultados. E a ironia é que a acumulação de resultados relevantes na física acabou há décadas. Tudo o que temos agora são especulações que nunca iremos saber se são verdadeiras, sobre o Big Bang e as cordas.

O segundo aspecto é este. Sem contrafactuais não é sequer possível formular adequadamente a diferença crucial entre uma lei da física e uma mera correlação. Acontece que sem mundos possíveis, que parecem o cúmulo da fantasia filosófica, não se entende o que é uma contrafactual.

O que nos conduz ao aspecto mais geral. O empirismo é um obstáculo ao progresso do conhecimento precisamente porque rejeita duas coisas cruciais. Primeiro, que sem conhecimento conceptual não há ciência. A ilusão é que se possa fazer ciência sem conhecimento conceptual. Isto é impossível. Segundo, que a única realidade que existe é a que podemos conhecer empiricamente. Isto leva a paroxismos tais que se é obrigado a dizer ou que a matemática não é sobre coisa nenhuma, ou que é empírica porque alguma dela tem aplicação empírica.

Peço desculpa por ser prolixo. Espero ter sido claro e esclarecedor.

Desidério Murcho disse...

Você está a confundir realidade objectiva com realidade empírica. Uma teoria moral que se pretenda objectiva, como é o caso de quase todas as teorias morais, incluindo a de Kant e Mill, não é por pretender ser uma descrição da realidade empírica. Tais descrições são psicológicas ou sociológicas e não filosóficas. A filosofia não é uma disciplina empírica. O preconceito empirista é precisamente que se uma teoria não descreve a realidade empírica, então não é objectiva. Isto é obviamente falso porque a matemática é muito mais objectiva do que a sociologia, por exemplo, e no entanto não é empírica e a sociologia é empírica. Este é precisamente o obstáculo epistemológico que vejo em cientistas e pessoas comuns. Isto é cognitivamente muito grave. É conceber a objectividade como um resultado mecânico da observação. A locus da objectividade é a justificação e não um qualquer automatismo causal que, por si mesmo, a faça emergir como que por magia. Quando se está mergulhado nesta confusão, parece um disparate que a filosofia moral de Kant seja objectiva.

joão viegas disse...

Julgo não haver confusão nenhuma.

Utilizo o termo “objectivo” por oposição a “subjectivo”, ou seja para designar uma realidade subsistente fora dos espiritos individuais, cujos contornos possam ser reconhecidos por todos da mesma maneira.

Kant (ou Aristoteles, ou qualquer moralista) tera certamente procurado elaborar uma teoria moral "objectiva" (no sentido de ser compreensivel por todos, ou de procurar convencer toda a gente), mas nunca propôs uma forma de medir com rigor a idoneidade das suas ideias morais com uma outra realidade "objectiva", por forma a podermos verificar a validade dessas ideias (ou a sua propensão para atingir o bem), a não ser, claro, que se entenda por outra "realidade" a realidade... dessas mesmas ideias, o que tornaria o proposito completamente circular.

Ou então, estas a dizer que qualquer afirmação, desde que formulada numa lingua correcta que permite que seja apreendida por outrem, é por isso mesmo, uma afirmação justificada de maneira "objectiva" (uma vez que tem uma realidade que existe para mais do que uma so pessoa)...

Então volto à questão que coloquei aqui em cima para o amigo Galois :

O que é que consideras que NAO seja ciência ?

Boas

joão viegas disse...

Ou antes : "Julgo não haver confusão alguma".

Boas

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