Prefácio de Carlos Fiolhais ao livro "A Avaliação dos Alunos" recentemente publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, na série "Questões-Chave de Educação" (realizou-se uma conferência com o mesmo título):
“Avaliação” é uma palavra que
está na ordem do dia em todos os sectores na sociedade moderna. Também o está
na educação: a começar na avaliação individual dos alunos até à avaliação do
sistema educativo como um todo, passando pela avaliação dos professores e pela
avaliação das escolas. Todos estes tipos de avaliação estão relacionados: não
se pode, por exemplo, pensar na avaliação de um sistema educativo nacional sem
uma adequada avaliação das escolas, dos professores e dos alunos; não se pode
ter uma avaliação de escolas sem uma avaliação dos professores e dos alunos; e
é difícil conceber a avaliação dos professores se não se atender, entre outros
factores, à avaliação que fazem dos seus alunos.
Em Portugal, todos estes
tipos de avaliação têm sido alvo de grandes controvérsias: a avaliação do
sistema educativo tem sido feita não só informalmente pela opinião pública
como, de um ponto de vista mais formal e com base em indicadores quantitativos,
por comparações internacionais como as que são feitas pela União Europeia e
pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE); a
avaliação das escolas é feita, ou deveria ser feita, para lá dos cidadãos que a
elas confiam os seus filhos (os rankings baseados nos exames nacionais do final dos ensino básico e secundário representaram uma
abertura de um sistema que antes persistia em manter-se opaco), pelos serviços
do Ministério da Educação; a avaliação dos professores deu azo entre nós a um
gigantesco protesto, que levou mais de cem mil professores a manifestarem-se na
rua contra um esquema desmesuradamente burocrático que o ministério queria
impor (essa acção levou a um recuo para uma versão “simplificada”, que está a
dar os primeiros passos); e a avaliação dos alunos, proporcionada nos últimos
tempos por exames nacionais padronizados no 9.º, 11.º e 12.º anos, organizados
pelo Gabinete de Avaliação Educacional (GAVE) do Ministério da Educação, ganhou
uma atenção e mediatização crescentes, não só pelo papel que a avaliação no
final do secundário desempenha no acesso ao ensino superior, mas também porque
essas provas dão à sociedade uma medida global do desempenho do sistema de
ensino não superior e, portanto, utilidade da escola.
Este
volume, que contém o essencial das intervenções de uma “Conferência sobre
Questões-chave” na Educação da Fundação Francisco Manuel dos Santos, centra-se
na avaliação dos alunos. Esta é a avaliação mais antiga de todas as que se
realizam na educação – nunca houve uma progressão na escola sem uma avaliação,
de uma forma ou de outra, das aprendizagens realizadas – e é também aquela que
tem o maior número de destinatários – todos os alunos, de uma forma ou de
outra, são sujeitos a avaliação ao longo do seu percurso escolar. A avaliação
impõe aos alunos patamares de exigência, objectivos a alcançar, ambições a ter.
Distinguem-se
vários tipos de avaliação, mas sumariamente podem dividir-se as avaliações,
além da que serve de diagnóstico, na que é formativa, que acompanha o trabalho
escolar do aluno, e na que é sumativa, que se destina a fornecer uma
classificação final, que, no caso do secundário, poderá servir para ingressar
num nível superior de ensino. As duas são necessárias e as duas
complementam-se. Em Portugal, depois do 25 de Abril de 1974, houve uma
depreciação da avaliação sumativa, pretensamente em favor da avaliação
formativa. De facto, o que aconteceu foi uma diminuição da avaliação no seu conjunto
e, portanto, da exigência, dos objectivos e da ambição. A palavra “exames” foi
durante alguns anos um termo tabu. Seriam traumáticos para os alunos.
Prejudicariam a “verdadeira” aprendizagem. Não teriam grande significado nem
importância. Assim, foi possível em Portugal entrar no ensino superior, em que
para cada disciplina havia um exame (para muitos especialistas, um exagero que
não se encontra em todos os sistemas de ensino superior), sem que antes se
tivesse passado por um exame digno desse nome. Mas os exames nacionais, reapareceram
no básico e secundário, revelando a sua utilidade não só para a progressão dos
alunos como também como instrumento normalizador e responsabilizador do sistema
educativo. Começaram por ser exames no final dos estudos secundários
relacionados com a salutar massificação do ensino e a necessidade de introdução
de numerus
clausus no
ensino superior. Mas surgiram também, mais recentemente, exames nacionais no
final da escolaridade básica em disciplinas consideradas essenciais (usa-se a
palavra “estruturantes”) como o Português e a Matemática. Tanto no ensino secundário
como no básico a classificação final do aluno resulta de uma média entre a
avaliação sumativa e a avaliação formativa, com clara predominância desta
última. Nas referidas disciplinas, instituíram-se também “provas de aferição”
no 4.º e no 6.º anos de escolaridade, sendo a diferença destas em relação aos
exames o facto de que com elas se pretendia fazer um diagnóstico de
aprendizagens realizadas e, portanto, medir, tanto quanto possível, o
desempenho das escolas e do sistema, em vez de dar classificações que tivessem
consequências no percurso educativo dos alunos. Pode dizer-se
que a introdução de exames foi, entre nós, socialmente bem recebida, ficando a
ideia geral de que o sistema educativo se tornava com eles mais exigente, mais
transparente e mais ligado à comunidade.
É
decerto de louvar a aposta governamental na organização de uma avaliação dos
alunos, uma avaliação correcta, justa e, por isso, credível. Mas, se houve esse
cuidado, os resultados não foram, em geral, bons. Os resultados, em particular
nas ditas disciplinas “estruturantes”, não foram os desejáveis, com médias
negativas em alguns anos. Nem se pode dizer que as provas tenham sido sempre
bem preparadas e que sejam comparáveis de uns anos para os outros (algumas
oscilações, para baixo e para cima, devem ter essa explicação simples). Provavelmente
para evitar que os resultados fossem ainda piores, foi nítida a preocupação de
incluir nos enunciados das provas questões que, em alguns casos, eram
gritantemente simples (como numa prova intermédia de Física e Química do 9.º
ano, uma prova preparatória para o exame nacional, em que se indicavam os nomes
de todos os planetas e se pedia simplesmente ao aluno que os contasse, de um
até oito). Por vezes, ocorreram mesmo erros científicos, algo intolerável numa
prova, que não foram prontamente reconhecidos (ficou famosa uma prova de
Geometria Descritiva do 12.º ano, em que se pedia para desenhar uma certa
tangente a uma certa circunferência numa situação em que tal era
geometricamente impossível).
Mas,
mesmo com todos esses percalços, os exames ficaram instituídos. Nunca
desapareceram, porém, as críticas de alguns sectores sobre o papel redutor dos exames.
De facto, avaliar é sempre um acto redutor de uma realidade complexa, mas, tal
como, na ciência, medir consiste em reduzir a realidade a números e nada se
pode avançar sem isso (é melhor uma medida menos boa do que medida nenhuma!),
também na educação será difícil dizer algo substantivo a respeito do sucesso ou
insucesso sem recolher medidas minimamente bem-feitas. Associado aos exames, há
quem critique um ensino “orientado para os exames”, mas o certo é que os bons
professores orientam não para os exames mas para os saberes e para as
capacidades e as provas, se forem bem-feitas, isto é, feitas por bons
professores, não poderão deixar de medir esses saberes e essas capacidades. Os
exames, com todas as deficiências que lhes possam ser apontadas, têm servido
para confrontar os alunos consigo próprios. Têm servido para que os professores
se apercebessem melhor das dificuldades nas aprendizagens realizadas pelos
seus alunos e, em conformidade, pudessem ensinar mais e melhor. Serviram para
as escolas se aperfeiçoarem, fornecendo-lhes indicadores preciosos (é evidente
que os resultados dos exames têm de ser lidos conjuntamente com outros indicadores,
como os socioeconómicos). E foram úteis a toda a sociedade, pais e outros
encarregados de educação assim como aos contribuintes em geral, para ela
adquirir uma noção mais fiel acerca do sistema educativo que mantém.
À
semelhança do que acontece na maioria dos países da União Europeia e da OCDE,
os exames vieram para ficar em Portugal. O nosso país tornou-se, também neste
aspecto, “normal”. É agora natural que os exames sejam não apenas melhorados,
como multiplicados, designadamente ampliando o número de disciplinas em que
existem exames no ensino básico e transformando as provas de aferição em provas
com resultados que contam, ainda que de início, numa percentagem modesta. Nesta
linha, já foram anunciados exames no 4.º e 6.º anos. Tal permitirá a todos os
intervenientes – alunos, professores, administração escolar a vários níveis e
cidadãos em geral – interiorizar ainda mais uma cultura de avaliação e,
portanto, de responsabilização. Há quem veja nos exames o fantasma das
reprovações e da discriminação social, mas esse é um problema que a escola
pública tem de enfrentar
decididamente com novas estratégias e novos meios, como mais e melhor ajuda aos
alunos com maiores dificuldades cognitivas e a diversificação das vias
escolares. Se a escola oferece uma preparação para a vida, não será deixando
cair barreiras que se preparará melhor para a vida, toda ela repleta de
barreiras. O essencial é que a todos seja concedida igualdade de oportunidades.
Modernamente,
as ciências cognitivas vieram revelar um factor vantajoso associado à
realização de provas. Os conhecimentos ficarão mais consolidados se eles forem
chamados, isto é, a inquirição dos alunos sobre aquilo que sabem torna-os mais
sábios e a solicitação sobre aquilo de que são capazes torna-os mais capazes. Esta
dimensão, que a escola deve usar melhor não apenas em provas finais mas na sala
de aula ao longo do tempo lectivo, trouxe, sem dúvida, uma importância
acrescida à avaliação no domínio pedagógico em que ela era, por vezes, alvo de
críticas mais contundentes.
O
norte-americano Jeffrey Karpicke, investigador principal do Laboratório de
Cognição e Aprendizagem da Universidade Purdue, nos Estados Unidos, expõe-nos
aqui a sua investigação educativa relativa à recuperação do conhecimento que está
presente na memória dos alunos. Os dados que traz são científicos, na medida em
que resultam de experiências, devidamente controladas, feitas com indivíduos
que estão a aprender um certo assunto. As ciências da educação, porque são ciências,
ganham com a experimentação científica cuidadosa e evoluem com as conclusões
que se podem extrair da informação empírica acumulada.
Para
reflectir sobre a realidade nacional, foram convidados Hélder de Sousa,
professor do ensino secundário que tem sido director do GAVE (embora
compreensivelmente não se exprima aqui como porta-voz oficial, mas sim como
estudioso da matéria e bom conhecedor da avaliação educativa em Portugal), que
nos traçará um panorama da avaliação recente no nosso país, essencialmente
centrado nos exames, e de Leandro Almeida, professor de Psicologia da
Universidade do Minho, onde dirige o Instituto de Educação, que enfatiza que
vários tipos de avaliação servem diferentes propósitos, aponta características
das boas provas e refere os aspectos psicológicos que não deixam de estar
associados à prestação de provas.
A avaliação está e continuará
a estar na ordem do dia. Sobre ela, alunos, professores, directores de escolas,
especialistas da educação, decisores governamentais e pais terão a sua própria
opinião, que, apesar de algum consenso recente sobre as vantagens dos exames,
está longe de ser unânime. O prefaciador, ao falar de um assunto que levanta
polémica, quis, além de apresentar os trabalhos dos especialistas, juntar a
sua opinião, com base na sua experiência docente e de intervenção pedagógica, a
um debate público cujo prosseguimento se deseja. A educação é um problema de
todos. A Fundação Francisco Manuel dos Santos, empenhada como está no melhor
conhecimento da realidade nacional, em particular nessa área decisiva para o
futuro colectivo que é a da educação, quer que todos possam ter e emitir a sua
opinião, mas uma opinião sustentada pela melhor informação.
Carlos Fiolhais
Carlos Fiolhais
2 comentários:
Pelos exames, a bem do ensino, dos alunos e da sociedade, claro.
Mas atenção, no que respeita aos exames de biologia e geologia, desde 2004 ou 2005, muito há a criticar e, sobretudo, a corrigir. Na concepção, na estrutura, na linguagem, no tipo de questões, na natureza dos critérios e até... na dimensão (15-16 páginas!, o que, só em gasto de papel, dá que pensar...).
Penso que a equipa que elabora esses exames, perante os resultados que os alunos têm obtido, e a opinião, embora tímida, dos professores, devia tomar a iniciativa de se afastar. Isto apesar da opinião da Associação Portuguesa de Professores de Biologia e Geologia, que eu suponho que não vai de encontro ao que os professores geralmente expressam.
Outra iniciativa que podia contribuir para diminuir os gastos com a educação seria a eliminação da "formação" que tem sido dada aos professores "classificadores". Com conhecimento de causa, e conhecedor da opinião de muitos outros colegas, igualmente "classificadores", afirmo que tem sido frustrante e inútil.
Bem sei que dizer isto ou estar calado adianta o mesmo.
Mas fica dito.
E testemunhado.
Já agora, só outra coisa: é impressionante que em escolas intervencionadas recentemente, onde se gastaram milhões de euros, tenhamos agora salas mais pequenas, repletas com 28 alunos, onde fazer testes, mesmo em versões, e tentar que os alunos não leiam as respostas dos colegas do lado (ou do lado oposto a esse) é quase impossível. E lá se vai a seriedade do processo, que parece não interessar a ninguém...
O De Rerum Natura, consegue priorizar temas. E, abordá-los é discutir diariamente em face ao mundo, cuja posição séria compõe a prioridade, a consciência. De gestão educativa é necessário, acerto. A exemplo do prefácio o professor Carlos Fiolhais, em aprimorada experiência dignifica o sentido do saber, com sólido empenho por transmitir e nem só, pois transmitir e apontar, é especial questão.
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