Pira preparada para o “grande
lume”, na praça, em Barrancos
Foi há cinquenta anos que conheci Barrancos. Estava-se em férias de Natal e era o meu primeiro ano como assistente na Faculdade. O Professor Carlos Teixeira, na altura, o director do departamento, mandara-me chamar. Tinha à sua frente, entre pilhas de livros e papéis, um grosso volume encadernado a couro, com letras douradas, onde se lia Système Silurique du Portugal, uma importante memória da autoria de um dos fundadores da geologia portuguesa, Nery Delgado, publicada no início do século XX.
– Neste trabalho, – apontou, depois de me retribuir o cumprimento – no capítulo referente a Barrancos, estão citadas várias jazidas de ftanitos com Monograptus [1]. Passe o Natal com a família e depois meta-se a caminho. Localize as que puder e faça umas boas colheitas. Temos cá exemplares do centro e do norte do país, mas do sul, só temos isto, – concluiu, passando-me para a mão um fragmento de rocha cinzenta, muito dura e compacta, exibindo os ditos fósseis.
– Vais para Barrancos? Já amanhã? – Admirou-se o Chico, o meu irmão mais velho, que viera do Brasil passar o Natal com a família. – Mas isso é lá no “cu do mundo”. Já lá estive durante uma tournée que fiz aqui no Alentejo com o Igrejas Caeiro. É gente boa. Falam uma espécie de espanhol que dá gosto ouvir.
– Tenho de ir. – Justifiquei resignado. Faltara-me a coragem para resistir ao capricho do catedrático e ali estava eu, forçado a deixar a família, agora reunida após anos de ausência de dois irmãos. O Chico e o Marecas.
Cheguei a Barrancos na última das três carreiras que tive de utilizar desde Évora. A aproximação à vila fazia-se por um percurso tortuoso, num terreno profundamente abarrancado, realidade paisagística de que lhe resultou o nome. Na praça, um ventinho gélido brincava com as cinzas deixadas pelo “grande lume” - a grande e tradicional fogueira da noite de Natal, feita no largo da Igreja - a lembrarem o que fora a alegria e o convívio em louvor do Menino Jesus.
Era noite quando bati à porta da pensão. Sopa e dois pratos faziam o jantar, servido quase de imediato numa sala grande, mal iluminada e fria, com porta para um corredor que levava à cozinha. Aqui, uma enorme chaminé com lume de chão e enchidos frescos ao fumeiro davam ao ambiente um conforto e um aroma a fazerem desta divisão da casa o lugar mais apetecido. Não longe do lume, uma camilha envolta numa saia até aos pés, servia de mesa tanto de comer como para cumprir os trabalhos escolares da única filha. Pai, mãe e filha, avô e avó viviam e conviviam o tempo todo ali, num bem-estar que contrastava com o desconforto da sala destinada aos hóspedes.
Depois de uma sopa rala e sem graça nem sabor, o primeiro prato, à falta de peixe, constou de ovos mexidos com linguiça, seguido de um bife sobre o frito, uma ementa cuidada a condizer com o hóspede vindo de Lisboa e, ainda por cima, da Universidade. Nesse serão já não saí. Recolhi ao quarto, lajeado com placas de xisto a ressumarem água. O tecto, bem alto, limitava-se a um forro de caniço imediatamente por baixo das telhas. Um desconforto que não melhorava do lado de dentro dos lençóis de linho, húmidos e frios, carregados de mantas que só com o peso disfarçavam a falta de agasalho. Lavatório no quarto e espelhinho na parede diziam-me que, na manhã seguinte, a toilette se faria ali. Uma higiene cumprida a medo com as pontas dos dedos a trazerem a água gélida aos olhos.
– Bom dia! Dormiu bem?! – Acolheu-me a avó, de roda do borralho, logo que me sentiu assomar. – Entre, entre. Venha para aqui, que está mais aconchegado. Já lhe preparo o cafezinho.
Pegou então num punhado de gravetos, chegou-os ao grande toro de azinho fumegante, a chiar baixinho, e começou a avivá-lo soprando por um longo canudo de ferro estrangulado na ponta. Às primeiras labaredas arrumou-lhe a cafeteira de barro queimada do uso.
– Este madeiro foi o da noite de Natal – disse – Era bem grande. Tive cá os outros filhos e os netos todos. Olhe aí para o presépio que eles fizeram. O avô trouxe-lhes o musgo e o barro e eles é que fizeram a bonecada toda.
Sentado à camilha, com as pernas passadas para dentro da grossa saia e com a braseira aos pés, tomei café de mistura, bem quente, a acompanhar torradas de pão caseiro, feitas ali, umas atrás das outras, no brasido do chão. Que delícia e que saudades! Até a margarina me sabia à melhor das manteigas. Encorajado por aquela abertura à intimidade da cozinha, desabafei:
– Está-se muito melhor aqui do que naquela sala, lá fora. E então, – acrescentei afoito – não seria também mais prático eu comer o mesmo que come a família?
– Vossemecê é que sabe. – Respondeu-me com naturalidade. – A gente acha que a casa de jantar é mais apropriada para os hóspedes. Ficam mais à vontade, e nós também. – Sorriu. – Só lá comemos nos dias da festa, menos na noite do menino, que é passada aqui ao pé do lenho. Hoje vou fazer chispe com repolho, mogango e feijão encarnado. Se gostar, logo à noite come com a gente. E ainda aí tenho esta carne frita que sobrou das migas do almoço. – Acrescentou, mostrando-me uma tigela de fogo quase rasa de banha encarnada, através da qual se percebia estarem ali mergulhados os pedaços de carne magra e entremeada. – É temperada com alho e massa de pimentão. Sabe o que é? Assim não se estraga. Logo aqueço-lhe um pouco e vai ver como é bom. Quer mais uma pinguinha de café? Coma mais estas torradinhas, agora que estão quentinhas.
Falando deste e de outros Natais, a avó fazia-me companhia. Falou da ceia, do galo que matara, dos ganhotes e borrachos, da fona dos netos entre a casa e o “grande lume”, da missa da meia-noite e do pessoal cantando e tocando zambomba.
Zambomba
Por fim, talvez para me pôr mais à vontade, entoou uma das cantilenas com que alegravam a festa: Anda burriquinho, vamos lá à lenha, pr’aquecer o menino, na Noite Buena.
Com esta entrada no seio da família foi-se o frio, até o da noite, pois ali ao pé do lume até sabia bem prolongar o serão recheado contos e de histórias vividas. Quando, por fim, recolhia ao quarto, levava comigo o calor das brasas e o da convivência, regalos que, aliados à fadiga de um dia inteiro a subir e a descer cabeços e vales, de imediato me viravam a página para o dia seguinte.
Como foi hábito nesses escassos dias por terras barranquenhas e porque, na ocasião, a noite caía muito cedo, frequentei, nos fins de tarde, antes do jantar, a Sociedade, a mais selecta das duas situadas no largo da igreja, em frente uma da outra. Foi o Mário Escoval que ali me introduziu, permitindo-me conviver com os mais notáveis da vila. Como eu a estudar em Évora, uma boa dúzia de anos atrás, esse meu amigo, era então um entre as forças vivas locais, a par de outros lavradores, do autarca, do comandante da guarda, do professor e do padre Agostinho.
- O que é que bebes? Cerveja? - Cerveja, não. Só no Verão e com muito calor. Mas se é preciso justificar o direito à cadeira, que seja um café em copo, bem quente e com um “cheirinho”. Sempre dá para aquecer as mãos e a alma.
Não era fácil explicar aos meus companheiros de ocasião qual era o meu trabalho, todo o dia no campo, com um saco, um martelo, uma bússola e um mapa do exército. Ainda por cima em terras raianas. Logo no primeiro dia, por duas ou mais vezes, tivera a sensação de estar a ser seguido, facto que relatei ao sargento da GNR, já o Mário havia feito as apresentações.
– Fui eu que ordenei a um dos meus homens para ver o que é que um estranho andava ali a tramar – respondeu em tom profissional o representante da autoridade.
– E o que é que ele viu? – Inquiri, interessado em dar continuidade à conserva.
– Viu-o apanhar pedras em tudo o que era sítio, mirá-las por todos os lados, guardar umas e deitar fora outras. Viu-o olhar para o mapa ou para a bússola, escrever umas coisas e pouco mais.
– É esse o nosso ofício. – Aproveitei para explicar. – Apanhamos pedras estudamo-las depois e, desse estudo, procuramos conhecer a história da Terra. Desta vez ando à procura de uns fósseis, ou seja, de restos de animais que provam que aqui foi mar há uns quatrocentos milhões de anos.
– Diga-me cá, - salientou o professor. – E como é que aqui foi mar e hoje é tudo terra em seco? E como é que se sabe que foi, assim, há tanto tempo?
- Bom, tudo isso tem a sua explicação, mas leva tempo.
– Foi o Dilúvio, – meteu-se na conversa o Padre Agostinho, até aí calado, mas particularmente atento.
– Bem, retorqui-lhe - escolhendo as palavras. – Essa é uma história que nos põe num outro campo que nada tem a ver com o nosso trabalho. Uma história que dava pano para mangas. – Rematei, sorrindo-lhe.
– Venha para cá no Verão, por altura das festas, – atalhou o eclesiástico – vai ver que gosta. Temos fiesta com toiros de morte.
– Estamo-nos nas tintas para as leis de Lisboa, mas respeitamos a nossa tradição. – Interrompeu um dos presentes.
– Depois fica aí uns dias connosco para falarmos destas coisas. – Retomou o padre.
– Tertúlia já nós temos. O Zé Adrião diz que tem lá no monte um peixe petrificado, metido no xisto. O Mário já foi ver e diz que parece mesmo um peixe, assim, grande – e abriu os braços, ao jeito dos pescadores desportivos quando falam das suas proezas. - Temos de ir vê-lo.
Só ao terceiro dia da minha estada em Barrancos localizei a tão desejada camada com fósseis de Monograptus. Após duas jornadas de insucesso, ocorreu-me pedir ajuda a um pastor com quem já me havia cruzado. Depois de umas palavras de circunstância e de umas festas ao cão, que logo me reconheceu e se aproximou a abanar vigorosamente a cauda, tirei do saco a dita amostra de ftanito bem embrulhada em jornal.
– Vossemecê já viu por aqui pedra como esta, com estes risquinhos? – Perguntei, passando-lhe para a mão o exemplar que trouxera de Lisboa.
Restos fósseis de Monograptus
– Já vi, sim senhor. – Respondeu, satisfeito, com o ar de quem sabia do que estava a falar. – Uns são direitos, outros enroladinhos. Têm assim um denteado como a folha da serra de rodear.
– É isso mesmo. E onde é que os posso encontrar? – Prossegui, animado pela resposta.
– Há aí vários sítios com esta pedra. - Disse, olhando-a atentamente – É muito diferente do resto. É mais dura e não abre nem deixa meter a folha da navalha, como o xisto. Umas são mais claras e outras mais escuras, como esta. Que eu me lembre, assim de repente, aparece ali para o Calvário. Também as há nas Boticas, em Noudar e ao pé da capela de São Ginés – nomes que foi pronunciado, pausadamente, à medida que os ia tirando da memória dos muitos sítios daquele que era o seu mundo.
– Mas há mais. Olhe, ali atrás daquele cerro. Está a ver? – E apontou com o cajado. – Na Cerca das Almas, também se apanha obra desta. Há um caminho que passa no alto, – continuou – na direcção de quem vai para a vila. Em lá chegando, vê logo um barranco fundo à sua mão direita. É aí, na descida, que há pedra igual a esta, cheínha destes riscos. Abri o mapa e orientei-o. Lá estava a Cerca das Almas, a uns três quilómetros dali. Marquei o local que me pareceu corresponder à descrição do pastor, dei-lhe os bons dias, fiz mais umas festas ao rafeiro e pus-me a caminho. Era meio-dia quando cheguei ao ponto assinalado, dominado por enorme expectativa e pelo receio de mais uma tentativa falhada. Mas não. A camada fossilífera estava finalmente ali, a meus pés. A cada golpe de martelo a rocha abria-se-me nas mãos, repleta dos tão procurados Monograptus. Sentei-me a comer o farnel que sempre levava por almoço e passei o resto da tarde a partir ftanito e a enrolar em jornais todos os fragmentos que contivessem os ditos fósseis, posto o que regressei à vila, ajoujado ao peso da preciosa carga.
No fim dessa tarde foi a festa. Festejava-se a despedida, mas também o achado pelo qual já todos ansiavam e que, naturalmente, todos desejavam observar de perto. Desembrulharam-se as amostras e cada um viu o que quis e comentou ou perguntou o que lhe apeteceu.
– Vai já amanhã embora? Na carreira das sete e meia? – Perguntou-me por fim um dos presentes que, de seguida, gritou para o empregado, ao fundo da sala – Juzé Manué, bei acá i trázi maih uma jarra di binhú i uma pihca de catalão assadu.
Missão cumprida, podia regressar. E ainda faltavam dois dias para o Ano Bom. Na bagagem trouxe comigo um talego de chita cheio de lembranças dos meus amigos barranquenhos, uma preciosidade que entreguei à minha mãe.
– Isto faz um jeitão – comentou ela, no seu estilo de experiente e hábil gestora da economia familiar. – Mas que bem que cheiram os enchidos! E este pão, que coisa linda! E estes queijos e estas azeitonas! Louvado seja o Menino! E isto, o que é? – Perguntou-me ao tirar de dentro do saco um papel muito bem dobradinho.
– É uma receita de um prato que comi lá na pensão e de que gostei bastante. A avó ditou e a neta escreveu em cuidada caligrafia. Não traz nome, chame-lhe “feijoada barranquenha”.
«Coze-se o feijão encarnado e reserva-se. Faz-se depois um refogado farto com azeite, cebola, alho, louro e colorau e mete-se aí o chispe, a que se pode acrescentar toucinho entremeado, faceira e orelha, e deixa-se saltear o suficiente para tomar gosto. Junta-se então a água de cozer o feijão e os enchidos (chouriço, farinheira, etc.). Estando as carnes cozidas, junta-se-lhe o repolho, previamente escaldado e, quase no fim, o feijão já cozido e o mogango, tendo o cuidado de não o deixar desfazer».
Recuperado de “COM POEJOS E OUTRAS ERVAS”. Âncora Editora, 2004. Lisboa.
NOTA: [1] Género de invertebrado marinho de dimensões milimétricas, vivendo em colónias, característico do período Silúrico há cerca de 410 a 435 milhões de anos.
Imagens retiradas de: Primeira, segunda, terceira.
Galopim de Carvalho
5 comentários:
Boa tarde
Se agradecem "o texto ao prof Galopim de Carvalho ", poderiam também, no mínimo, indicar donde "tiraram" a(s) fotografia(a)! Digo eu,não sei!
Bom Natal, desde Barrancos
Estimado Leitor
Muito obrigada pelo reparo, que é pertinente. Entraremos entrar em contacto com o Professor Galopim para superar essa lacuna.
Votos de um excelente Natal.
Maria Helena Damião
Meu caro Jacinto Saramago
Se houve “grande lume” este Natal, ele ainda deve dar sinas de vida na histórica praça de Barrancos, à hora que me dirijo a si para lhe pedir desculpa pelo facto de não ter indicado ser o senhor o autor das duas primeiras fotografias (muito boas, diga-se) com que ilustrei a crónica de ontem “O Grande Lume”. Retirei-as do Google e, confesso, não tive o cuidado de indagar a origem. Só depois do seu justo comentário, fui em busca dessa informação e encontrei-a no seu «estadodebarrancos.blgspot.com» que não conhecia e que, como um desde há muito amigo de Barrancos, comecei a visitar.
Aproveito para informar que a fotografia do fóssil de Monograptus foi retirada de «thefossilforum».
Reiterando o meu pedido de desculpa, creia-me um amigo.
Galopim de Carvalho
Caro Prof. Galopim:
O senhor transporta-nos para os anos vividos de 50 e 60 no Alentejo profundo com uma mestria inigualável.
O seu texto, para além do realismo das situações descritas, transmite-nos ainda sons, cores e sabores.
Muito obrigado pelos belíssimos textos que aqui nos deixa de vez em quando.
Desejo-lhe um bom resto de festividades e um 2013 o melhor possível.
Votos extensivos aos restantes frequentadores do De Rerum Natura (autores e comentadores).
Homenagem ao professor Galopim de Carvalho.
Versalete
Oh' mia terra,
terra das barrancas ao cume,
terna via, terra guia,
acolhida, nem: resume.
D'este pêlo de poeira
quis ponteiro de eira,
oiro pequeño, pequenino,
vossa terra de menino
a quão serena e, gentil,
doce terra a humildade!
Germina o trigo, forja o pão,
sabedoria a par saudade.
Que o lume d'esta terra,
a terra d'àquele menino;
por nume, pó lume o pendor,
resplandeça no fulgor,
tua manhã, terra!
A tessitura de sabor,
hoje?! Doutor. Este menino
da lousa terra do amor.
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