Texto de Regina Gouveia de homenagem a Rómulo de Carvalho:
O dia 24 de Novembro é o Dia Nacional da Cultura Científica, em homenagem a Rómulo de Carvalho. Tal como o homem deixou uma pegada na Lua, também Rómulo de Carvalho deixou, indelével, uma pegada cultural multidimensional na sociedade portuguesa.
Para além de excepcional professor de Física e Química e de divulgador da ciência foi poeta, historiador, construtor de equipamento didáctico que concebeu, fotógrafo, ensaísta, autor de ficção e teatro, formador. De entre esta multidimensionalidade destaca-se o poeta António Gedeão. Gedeão não teria existido sem Rómulo e este seria com certeza um outro se não existisse Gedeão.
"Rómulo de Carvalho aprendeu de Gedeão o gosto pelos objectos simples, pela história singelamente contada, pela experiência quotidiana. Quanto a Gedeão, penso nele como companheiro de carteira de Rómulo na aprendizagem interior do espírito da Física, cedo feita de ensinar os outros" (José Mariano Gago, in prefácio de “A Física no Dia a Dia”, de Rómulo de Carvalho).
Em 2006, centenário do seu nascimento, tive o privilégio de ser convidada para prestar o meu testemunho sobre Rómulo de Carvalho / António Gedeão (RC / AG) , em várias das homenagens que lhe foram prestadas. Já depois e com o mesmo fim, fui solicitada mais algumas vezes.
Algum tempo antes, já após o seu falecimento, tinha sido convidada pela Areal Editores para co-dinamizar uma série de actividades em sua homenagem. Achei estranho o convite mas a pessoa que me convidou justificou-o. Na Areal trabalha um engenheiro que foi seu aluno e, ao perceber que pretendíamos homenagear RC/AG referiu que “a Prof.ª Regina Gouveia o homenageava muitas vezes, ao começar uma aula com um poema de Gedeão que, de seguida explorava”.
Vou tentar fazer uma síntese daquilo que fui referindo nessas sessões.
O meu “contacto” com RC começou no 6º ano do Liceu através do Guia de Trabalhos Práticos de Química, que ainda conservo e de muito me serviu, quando docente. Nada mais sabia de RC.
Em Outubro de 1962 entrei para a Universidade e passado algum tempo vi, na montra de uma livraria, o livro História do Átomo cuja autor me era familiar. Adquiri-o de imediato tal como viria a adquirir mais tarde outros da mesma colecção Ciência para gente nova (o Prof. Carlos Fiolhais diz que era essencialmente "Ciência nova para a gente").
Nesse livro pode ler-se:
"A história do átomo é uma das mais belas vitórias dos homens. Quer-nos até parecer que em todo o desenrolar das actividades humanas nunca a Ciência e a Poesia estiveram ligadas tão intimamente como neste caso. A descoberta do átomo não é apenas bela pelo seu significado prático, por se prestar a melhorar profundamente a vida dos homens. É bela também como conquista do espírito, pelo extraordinário poder de imaginação que revela." (Rómulo de Carvalho)
Não creio que me tenha apercebido que em alguns dos livros da referida colecção (História dos Isótopos e História da Energia Nuclear) a capa era da autoria de António Gedeão, mas, se me apercebi, na altura esse nome não me dizia nada. Eu ainda não conhecia António Gedeão.
Foi por mero acaso que um dia, na Revista O Tempo e o Modo li o poema Impressão Digital:
Os meus olhos são uns olhos,
e é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos,
onde outros, com outros olhos,
nao vêem escolhos nenhuns(...)
in "Movimento Perpétuo", 1956 em "Poesias Completas"
Fiquei fascinada e, desde então até hoje, tenho vindo a adquirir a obra de António Gedeão. Em 1964 Jorge de Sena, no prefácio de Poesias Completas, referindo-se a António Gedeão diz:
"Ali estava um poeta novo e diferente…"
Eu acrescentaria: Um poeta novo e diferente fruto da cumplicidade entre RC e AG.
Já leccionava e já sabia quem era Gedeão, já assinava a Gazeta de Física (foi através de alguns artigos da autoria de RC, publicados na Gazeta que aprendi a trabalhar com os primeiros osciloscópios que chegaram às escolas, os dinossauros, como lhe chamávamos), quando numa das minhas habituais passagens pelas livrarias, deparei com o livro , em dois volumes, Física para o Povo. Talvez por acreditar que o saber é um dos principais caminhos de cidadania e liberdade RC tinha a preocupação de divulgar o conhecimento, particularmente a ciência, e a todos os públicos.
"Este livro é para si, meu amigo. Foi escrito a pensar em todas aquelas pessoas que gostariam de estudar e de aprender mas que não tiveram ocasião para isso…
Pus-me assim a pensar sobre várias coisas que o meu amigo poderá ter observado na sua vida diária e que talvez gostasse de saber explicar…
Não mostre este livro a nenhuma pessoa sabedora porque essa encontraria com certeza muitos motivos de censura nas minhas palavras. Acharia que aqui não estava bem explicado, que ali tinha usado palavras impróprias… E tinha razão. Mas não se preocupe com isso. Isto é só para o meu amigo…"(Rómulo de Carvalho, in Física para o povo)
Emociono-me sempre que leio este trecho. Leio no mesmo uma afabilidade e uma generosidade que nem sempre transpareciam no contacto pessoal. Tive o privilégio de conhecer pessoalmente RC, no meu Exame de Estado, pois fazia parte do júri. Dos 26 aos 29 anos, nos primeiros anos em que orientei estágio, estive algumas vezes com RC, que era um dos orientadores itinerantes. Achei–o sempre um pouco distante, mas talvez fosse eu que, por me sentir tão pequenina perante ele, vestia a carapaça da minha timidez.
E a propósito da sua vertente de formador é interessante ler o depoimento que se segue:
"…O objectivo prioritário (…) era sensibilizar-nos para os problemas da actividade ensino-aprendizagem, sem nos impor um “modelo” definitivo de professor. Toda a sua actuação tinha por fim incentivar-nos para a descoberta e desenvolvimento de potencialidades que nos permitissem criar o nosso modelo pessoal de professor, adaptável em cada momento à realidade aluno-escola…" (depoimentos de Alcina do Aido e Maria Gertrudes Bastos, in Pessoa C. (2001), Pedra Filosofal, Gazeta de Física
Haveria muito mais a dizer destas vertentes de RC bem como de todas as outras mas o texto já vai longo (embora curtíssimo face à dimensão de RC/AG).
Nas palavras prévias com que introduz O texto poético como documento social (Fundação Gulbenkian, 1995), RC refere:
"Pretende o autor, com a presente obra, erguer, aos olhos do leitor, a pessoa do poeta como um ser atento aos acontecimentos que o rodeiam, e envolvem, no ambiente social em que o poeta se movimenta…."
Esta preocupação com o ambiente social em cada momento está bem presente na sua poesia. Quem nunca leu o Poema para Galileu, que aqui deixo na voz de Mário Viegas? Quem nunca ouviu a Pedra Filosofal ou a Lágrima de Preta, na voz de Manuel Freire? E os poemas Dia de Natal, Máquina do Mundo, Calçada de Carriche, Poema da Morte na Estrada, Poema do Fecho Éclair, Poema do Homem Novo...?
Quase a terminar, cito RC num texto que começou a escrever para o filho, quando este tinha seis anos:
"Sabes o que são poetas? São os homens que fazem versos. Quando os versos são bonitos e soam bem aos ouvidos é muito agradável lê-los. Muitas pessoas aborrecidas ficam bem dispostas quando lêem versos. Por isso ser grande poeta é tão útil como ser grande médico ou ser grande engenheiro." Carvalho, R. In “As origens de Portugal. História contada a uma criança”
Termino de forma simples mas sentida:
"Eu queria agradecer-te Rómulo de Carvalho…
Eu queria agradecer-te António Gedeão…"
Regina Gouveia
7 comentários:
Talvez por me identificar tanto com as palavras aqui presentes, talvez por verificar que o ensino em Portugal, que neste momento valoriza apenas um único modelo (altamente duvidoso) de professor excelente, se está a distanciar tanto do respeito que este grande vulto português tinha pela atividade docente , talvez pela grandiosidade deste pensador que nos deixou um legado de infinito valor, me tenha emocionado ao ler estas linhas.
Obrigado a quem as escreveu.
Duas perguntas simples:
Será que hoje, Rómulo de Carvalho(/Gedeão) tinha lugar no nosso sistema de ensino?
Que diria ele do "sistema de avaliação"(?!...) de professores? E que classificação lhe atribuiriam?
À primeira pergunta façam o favor de (me) responder que sim. Por favor, repito.
À segunda e à terceira façam o favor de não (tentar) responder.
Sugiro a leitura de um post meu, com um poema de homenagem ao Poeta, ao Cientista, ao Professor e ao Pedagogo:
http://geopedrados.blogspot.com/2011/11/semana-da-ciencia-e-da-tecnologia-2011_25.html
O que são propostas
por sem precedentes
elevam os presentes
reflectir, das apostas.
"Comento" os três comentários.
Obrigada caro anónimo pelas suas palavras. Quanto a JBA obviamente respondo sim à primeira
À segunda, apesar do seu pedido, vou responder. Com a sua dignidade, o seu rigor, o anti burocratismo e acima de tudo o não servilismo,
muito provavelmente RC teria no máximo Muito Bom (ou talvez o máximo fosse apenas Bom...)
Quanto ao PL parabéns pelo seu poema que j´fui ler no seu blogue.
E agora dirijo-me ao poder político voltando a fazer um apelo que já fiz várias vezes.
Tornem a avaliação transparente sem secretismos e tudo melhorará, por certo.
E já agora pergunto: Se o secretismo é tão importante na avaliação, porque nunca tornaram secreta a avaliação dos alunos?
Regina Gouveia
Corrigenda: No comentário que fiz acima, logo no seu início, onde escrevi "Duas perguntas simples" devia, obviamente, ter escrito: "Três perguntas simples". O cansaço e a pressa levaram(-me) ao erro.
As minhas desculpas.
Caro Pedro Luna: fui ler o seu poema. Gostei.
Cara Regina,
parabéns pelo seu texto, com ele aprendi mais a respeito de RC/AG e com ele sonhei um pouco.
Que privilégio o seu ter conhecido este(s) senhor(es)!
Caro Pedro Luna: fui ler seu poema e gostei. O blog já foi para a minha lista dos favoritos:).
Um abraço!
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