Não foi preciso navegar muito na internet para confirmar essa aceitação e outras ligações deste programa do canal público de televisão a diversas instâncias do sistema educativo. Então:
1. Existe um projecto recente que se designa Passatempo Desafio Verde nas Escolas;
2. Direcções Regionais de Educação, acolhem-no nas suas páginas;
3. O mesmo acontece com o Portal das Escolas (onde consta o logótipo da Comunidade Europeia, do Ministério da Educação e do QREN - Quadro de Referência Estratégico Nacional);
4. Escolas integram também a referência a esse Passatempo na sua página.
Todas estas instâncias podem ter presença no Facebook e num blogue.
Detenhamo-nos no "desafio feito às escolas do primeiro e segundo ciclos do Ensino Básico" (não esquecendo que o objecto de atenção são crianças de seis a onze anos), em cujo anúncio se podem perceber várias coisas inquietantes:
- o desafio é feito aos alunos, não se fazendo qualquer referência aos professores. A mensagem do professores-perfeitamente-dispensáveis é reforçada junto dos pequenos aprendizes;
- o desafio consiste, por exemplo, em "aplicar lâmpadas economizadoras em toda a escola", "criar uma horta de produtos biológicos para a cantinar". Como se percebe, não são propriamente iniciativas que crianças tão pequenas (nem maiores que fossem) possam levar a cabo sozinhas em contexto escolar (nem noutro que fosse), porém, dá-se-lhes essa ilusão;
- como também se lhes dá a ilusão de que "tudo depende da sua imaginação", ou seja, que mudar alguma coisa na escola depende apenas e só de como "pedalam" nessa imaginação, sem que existam, claro está, quaisquer constrangimentos externos. É a conhecida lógica do a-criança-quer-a-criança-pode;
- a concretização do desafio implica necessariamente que as crianças façam filmagem dos vários passos do projecto "desde a discussão de ideias até à sua implementação", dando-se-lhes a ideia, ética e legalmente errada, de que podem registar em suporte digital tudo e mais alguma coisa. Elas não saberão, mas os adultos que redigiram o anúncio em questão têm obrigação de saber quais são, nos termos da Constituição da República Portuguesa (art.º 35.º) e da Lei da Protecção de Dados Pessoais, as restrições ao registo em vídeo de imagens de pessoas, sobretudo quando se trata de menores de idade. Também têm obrigação de saber que existem restrições apertadas na recolha de dados em contexto escolar, legitimada pelo Despacho n.º 15 847/2007, de 23 de Julho (Diário da República, 2.ª série, n.º 140), que não dispensa um pedido formal ao próprio Ministério da Educação.
Mas há mais: a própria expressão “passatempo”, tendo sentido em contextos informais, mas perde o sentido em contexto escolar, que é um contexto de aprendizagens formais, de trabalho. Não se devem levar as crianças a confundir as actividades que têm lugar nestes dois tipos de contextos.
Além desta confusão, caso as crianças, sensibilizadas pelo apelo ao “passatempo” assistam ao programa de televisão a que me referi, que se afirma como "ecologista sem ser extremista", provavelmente aprendem que:
- qualquer um pode ser (eco)criminoso;
- descobrir (eco)criminosos está ao nosso alcance, decorrendo daí o dever de denunciá-los, desmascará-los e mostrá-los;
- a justiça "em praça pública", dispensando o tribunal, permite a declaração inquívoca de culpabilidade, devendo "os réus" resignar-se ao silêncio e acatar admoestações;
1. Existe um projecto recente que se designa Passatempo Desafio Verde nas Escolas;
2. Direcções Regionais de Educação, acolhem-no nas suas páginas;
3. O mesmo acontece com o Portal das Escolas (onde consta o logótipo da Comunidade Europeia, do Ministério da Educação e do QREN - Quadro de Referência Estratégico Nacional);
4. Escolas integram também a referência a esse Passatempo na sua página.
Todas estas instâncias podem ter presença no Facebook e num blogue.
Detenhamo-nos no "desafio feito às escolas do primeiro e segundo ciclos do Ensino Básico" (não esquecendo que o objecto de atenção são crianças de seis a onze anos), em cujo anúncio se podem perceber várias coisas inquietantes:
- o desafio é feito aos alunos, não se fazendo qualquer referência aos professores. A mensagem do professores-perfeitamente-dispensáveis é reforçada junto dos pequenos aprendizes;
- o desafio consiste, por exemplo, em "aplicar lâmpadas economizadoras em toda a escola", "criar uma horta de produtos biológicos para a cantinar". Como se percebe, não são propriamente iniciativas que crianças tão pequenas (nem maiores que fossem) possam levar a cabo sozinhas em contexto escolar (nem noutro que fosse), porém, dá-se-lhes essa ilusão;
- como também se lhes dá a ilusão de que "tudo depende da sua imaginação", ou seja, que mudar alguma coisa na escola depende apenas e só de como "pedalam" nessa imaginação, sem que existam, claro está, quaisquer constrangimentos externos. É a conhecida lógica do a-criança-quer-a-criança-pode;
- a concretização do desafio implica necessariamente que as crianças façam filmagem dos vários passos do projecto "desde a discussão de ideias até à sua implementação", dando-se-lhes a ideia, ética e legalmente errada, de que podem registar em suporte digital tudo e mais alguma coisa. Elas não saberão, mas os adultos que redigiram o anúncio em questão têm obrigação de saber quais são, nos termos da Constituição da República Portuguesa (art.º 35.º) e da Lei da Protecção de Dados Pessoais, as restrições ao registo em vídeo de imagens de pessoas, sobretudo quando se trata de menores de idade. Também têm obrigação de saber que existem restrições apertadas na recolha de dados em contexto escolar, legitimada pelo Despacho n.º 15 847/2007, de 23 de Julho (Diário da República, 2.ª série, n.º 140), que não dispensa um pedido formal ao próprio Ministério da Educação.
Mas há mais: a própria expressão “passatempo”, tendo sentido em contextos informais, mas perde o sentido em contexto escolar, que é um contexto de aprendizagens formais, de trabalho. Não se devem levar as crianças a confundir as actividades que têm lugar nestes dois tipos de contextos.
Além desta confusão, caso as crianças, sensibilizadas pelo apelo ao “passatempo” assistam ao programa de televisão a que me referi, que se afirma como "ecologista sem ser extremista", provavelmente aprendem que:
- qualquer um pode ser (eco)criminoso;
- descobrir (eco)criminosos está ao nosso alcance, decorrendo daí o dever de denunciá-los, desmascará-los e mostrá-los;
- a justiça "em praça pública", dispensando o tribunal, permite a declaração inquívoca de culpabilidade, devendo "os réus" resignar-se ao silêncio e acatar admoestações;
- se podem tratar pessoas de modo inquisitorial e insolente, mesmo as mais velhas.
De tudo o que li fiquei (mais uma vez) com a forte impressão de que nas sociedades contemporâneas tudo se mistura e confunde. O sistema educativo e as escolas em concreto, na ânsia de serem modernas, de não se fecharem sobre si, de não se situarem à margem da realidade dos alunos, de responderem a solicitações externas, trazem para o campo do ensino e da aprendizagem formal as mais diversas propostas. Não discriminando, não seleccionando, tudo deixam passar, tudo aceitam e, mais do que isso, aplaudem, acriticamente...
Neste passo devemos perguntar, como faria Hannah Arendt ou como faz Fernando Savater: o que aprendem sobre ecologia as crianças se postas a trabalhar sózinhas ou umas com as outras? E que valores "ocultos" reforçaram?
Estranhos tempos em que tanto se afirma a reflexão e em que tanto ela falha, precisamente nos locais - neste caso, sistema educativo e escola - onde devia estar sempre presente.
De tudo o que li fiquei (mais uma vez) com a forte impressão de que nas sociedades contemporâneas tudo se mistura e confunde. O sistema educativo e as escolas em concreto, na ânsia de serem modernas, de não se fecharem sobre si, de não se situarem à margem da realidade dos alunos, de responderem a solicitações externas, trazem para o campo do ensino e da aprendizagem formal as mais diversas propostas. Não discriminando, não seleccionando, tudo deixam passar, tudo aceitam e, mais do que isso, aplaudem, acriticamente...
Neste passo devemos perguntar, como faria Hannah Arendt ou como faz Fernando Savater: o que aprendem sobre ecologia as crianças se postas a trabalhar sózinhas ou umas com as outras? E que valores "ocultos" reforçaram?
Estranhos tempos em que tanto se afirma a reflexão e em que tanto ela falha, precisamente nos locais - neste caso, sistema educativo e escola - onde devia estar sempre presente.
2 comentários:
É necessário consciência ecológica nas práticas do dia a dia, e a educação nesse sentido deve ser feita desde cedo e também na escola. Mas, os fins não justificam os meios e de boas intenções está o inferno cheio... a imbecilidade acontece porque a conjuntura actual é feita de milhares de pequenas imbecilidades que, todas juntas, já não permitem que a racionalidade tome decisões.
HR
Absolutamente ! Mas se a Helena Damião fizer questão em aprofundar ainda mais o nonsense que se vive no campo da EA nas escolas, veja, por exemplo, o que se passa em relação aos chamados “equipamentos de EA”. Qualquer “safari –parque” com zebras e crocodilos numa herdade alentejana, qualquer jardim zoológico que reproduza em cativeiro animais selvagens, é considerado equipamento de EA e tem nas visitas das escolas uma das suas principais fontes de receita. O Zoomarine, no Algarve, onde catatuas andam de bicicleta e leões marinhos fazem outros números de circo, é parceiro institucional da Quercus e da U Católica na celebrada iniciativa em parceria com as escolas que se chama “olimpíadas do ambiente”. A leitura dos questionários das OA devia ser case-study de nonsense pedagógico e ambiental.
A Helena Damião termina, e bem, estranhando que isto se passe no sistema educativo e nas escolas. De acordo. Mas como em ambos os casos estamos a falar de professores, não valerá a pena estranhar também o que se andará a passar nas universidades que os formam ?
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