segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A IRA DE DEUS


coincidências, ao contrário do que diz um título de um livro. Quase ao mesmo tempo surgiram nas livrarias portuguesas dois livros com um título muito parecido, apesar de versarem assuntos muito diferentes sob formas muitas diferentes. Um é o ensaio histórico “A Ira de Deus”, do historiador inglês Edward Paice, subintitulado esclarecedoramente “O grande terramoto de Lisboa de 1755” (Casa das Letras). O outro é o romance “Fúria Divina”, do jornalista e escritor José Rodrigues dos Santos (Gradiva), que versa a possibilidade de uma arma atómica cair em mãos de extremistas árabes.

Analisemos o primeiro. O título é bem justificado pois o terramoto que assolou no Lisboa fez há poucos dias 254 anos foi na época interpretado como uma manifestação de uma zanga de Deus com os homens. Os homens teriam pecado muito para que os tectos das igrejas caíssem sobre os fiéis quando eles celebravam o Dia-de-Todos-os-Santos. O acontecimento abalou não apenas os edifícios da capital portuguesa, mas também os maiores espíritos da época: Voltaire, Rousseau, Kant e Goethe – todos eles grandes nomes do Iluminismo europeu – não ficaram indiferentes ao extraordinário desastre de Lisboa, tendo sobre ele tecido lucubrações filosófico-morais ou mesmo científicas. É bem conhecida sobretudo a polémica entre Voltaire, o autor do “Poema sobre o desastre de Lisboa” (publicado no próprio ano do terramoto) e do “Cândido ou o Optimismo” (saído só três anos depois), e Jean-Jacques Rousseau, que assumiu as posições optimistas de Gottfried Leibniz e Alexander Pope sobre a “vida no melhor dos mundos” que o filósofo francês tinha atacado. Voltaire não punha em causa a existência de Deus, mas punha em causa a bondade de Deus, pois “nem tudo estava ordenado de forma a favorecer a nossa felicidade presente”. Ao que Rousseau retorquiu dizendo se Deus “não tinha feito melhor era porque Ele não podia fazer melhor” e que a culpa do mal era, em larga medida, do homem, pois “a maior parte dos nossos males físicos é ainda o nosso próprio trabalho”. Um sumário desta tão interessante discussão sobre a teodiceia é apresentada por Edward Paice no Cap. 18, “Jejum e Filosofia”.

Mas antes o autor conta-nos o terramoto, depois de ter entrado no livro apresentando a entrada de um barco no rio Tejo em Lisboa (Cap. 1, “Quem nunca viu Lisboa não viu coisa boa”), e de ter apresentado o rei que reinou em Lisboa na primeira metade do século XVIII, D. João V, para uns o Magnânimo e para outros o Freirático (Cap. 2, “Na corte do rei D. João”). A impressão que Paice transmite sobre o século XVIII português é a mesma que os viajantes ou residentes estrangeiros deixaram, até porque o autor se baseou em larga medida nas fontes britânicas (e irlandesas), nomeadamente as dos comerciantes dessa nacionalidade que aqui se encontravam na época, dada a existência de alguma protecção ao seu comércio em troca da protecção oferecida nos mares pela Royal Navy. Portugal era, para os estrangeiros que nos demandavam e que aqui se estabeleciam, um sítio algo distante e exótico. Apesar da riqueza que D. João V tão exuberantemente ostentava (em grande parte proveniente do Brasil) era, sob vários pontos de vista incluindo o cultural, um país atrasado relativamente aos países da Europa Central e do Norte. Segundo viajante Arthur Costigan, citado por Pairce, era como se “Igreja e estado concordassem ambos em manter a nação naquele estado de escravatura, ignorância e pobreza do qual dependia a sua própria conservação e segurança.”

Dada a familiaridade da língua, é natural que o autor descreva o terramoto (começa a fazê-lo no Cap. 5, “O Dia-de-Todos-os-Santos”) do ponto de vista britânico. Mas podia talvez ter ido mais longe... A narrativa, bem urdida, acompanha de uma forma quase cinematográfica o que aconteceu aos principais cronistas britânicos do desastre de Lisboa. Pode ser um relato fiel, mas é decerto uma visão parcial. Ao fim e ao cabo, os diplomatas e comerciantes que aparecem em discurso directo estavam relativamente bem instalados na capital surpreeendida pelo sismo e não pode deixar de ser uma visão particular aquela que eles nos deixaram. O autor diz, em sua defesa, que os portugueses quase não deixaram documentos relevantes sobre o terramoto, numa crítica ao nosso subdesenvolvimento da época. Cita mesmo uma fonte portuguesa recente segundo a qual, com muito poucas excepções, os relatos portugueses da catástrofe são “uma série de documentos sem valor”.

O historiador procura fazer uma descrição científica do terramoto a partir das fontes históricas, designadamente as suas características físicas (o tsunami, as réplicas, os registos fora de Portugal, mesmo muito longe), a extensão dos prejuízos, incluindo o número (que tem sido muito discutido) de vítimas mortais. No Cap. 9,Teletsunami, encontra-se esta descrição quantitativa assaz impressionante: “A força do tsunami era tão grande quando alcançou a foz do Tejo que pedregulhos com cerca de 25 toneladas foram arremessados mais de 27 metros terra dentro. Num dado local, uma rocha de 200 toneladas foi deslocada.” De facto, foi a partir do terramoto de Lisboa que se iniciaram os estudos científicos de geofísica, pelo que já alguém disse, com alguma ironia, que a maior contribuição portuguesa para a ciência mundial tinha sido dado de “forma involuntária”... A mim acontece-me amiúde, quando sou apresentado a cientistas estrangeiros, que eles refiram o grande terramoto de Lisboa quando digo a nacionalidade. Foi um abalo que deixou enormes marcas não só na filosofia e na teologia como na ciência e na tecnologia.

Falar do terramoto e não falar do marquês de Pombal seria impossível. De modo que Pairce dá-nos um retrato do marquês, como o homem inteligente que ganha o poder com a sua acção na catástrofe, em contraste com um rei medroso, que passou a viver depois do sismo numa tenda na zona da Ajuda. No Cap. 19, “Execuções”, relata, como não podia deixar de ser, o assassinato dos Távoras às ordens do Marquês, que impressionou muitos espíritos europeus pelos requintes de barbarismo. Pela minha parte, confesso que é sempre com desconforto que passo pelo sítio, em Belém, onde esteve instalado o cadafalso. Conforme afirmou um jornalista inglês da época, o país passou a ficar “nas mãos de aço de um anjo destruidor, espalhando vingança por todo o país”.

Em resumo, um livro bem escrito sobre um acontecimento que fez e continua a fazer correr muita tinta. O historiador documentou-se bem e escreve bem, procurando captar a atenção do leitor: por exemplo, refere que no dia do terramoto estava prevista a representação, na novíssima Ópera do Tejo, de “A Destruição de Tróia”. Este livro, embora demasiado centrado sobre os relatos britânicos, é um contributo valioso para a divulgação histórica de um facto da história mundial. Soma-se a outros, alguns bem recentes, relacionados com a passagem dos 250 anos do desastre, como “The Last Day. Wrath, Ruin and Reason in the great Lisboin Earthquake of 1755”, do jornalista Nicholas Shrady (Penguin Books, 2008), que eu saiba ainda não traduzido entre nós mas que, como o aqui recenseado, o merecia ser.

Legenda da figura:
Gravura alemã do séc. XVIII da Augsburgische Sammlung, no Museu da Cidade, em Lisboa: “Autêntica representação do cruel terramoto que atingiu a real capital e cidade da residência real de Lisboa em Portugal, quase totalmente devastada e transformada num monte de pedras”.

1 comentário:

Carlos Medina Ribeiro disse...

«O Pequeno Livro do Grande Terramoto», de Rui Tavares, é extremamente interessante.

«A Minha Fuga das Prisões de Veneza», de Casanova, onde o aventureiro conta que o terramoto foi sentido na prisão onde estava, e com tal força que ele teve esperanças de fugir no seguimento de um desabamento.
Ele acabou por fugir, mas mais tarde, em circunstâncias rocambolescas.

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