segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Memórias das minhas aulas de História


Rui Baptista recorda o seu professor de História no Liceu Passos Manuel, José Hermano Saraiva:

“Recordar é viver duas vezes”(provérbio)

Em vésperas de cumprir 90 anos de idade com invejável lucidez, em entrevista ao seu sobrinho José António Saraiva, director do semanário Sol, José Hermano Saraiva à pergunta “que memória tem das aulas de História que dava no Liceu Passos Manuel?” respondeu:

“Foi um período muito interessante, de tentativa de contar uma História diferente.(…) Era um curso em que eles é que faziam a História, eles é que descobriam os acontecimentos.(…) Levavam objectos no bolso (…) Cada aluno levava um caderno e depois todos os colegas classificavam”. (Sol, revista Tabu, n.º 161, 9/ 10/2009, p.41).

Tive na minha vida liceal dois professores de História. Um deles dissertava sobre a duvidosa heterossexualidade de uns tantos monarcas de Portugal e a má fama moral de algumas das rainhas. Quando o aluno tinha a desdita de ser chamado mandava-o ler umas tantas páginas do “Compêndio de História” de António Mattoso (que ia passando de irmão para irmão e até de pais para filhos), avaliando-o desta forma: “Leste bem, tens positiva; leste mal, tens negativa”.

Um outro, o Prof. José Hermano Saraiva, que foi vítima, numa “Carta ao Director” (Público, 26/07/2005), de um ataque político e profissional soez. Por imperativo de justiça, respondi com um artigo de desafronta de que ora cito excertos que confirmam as suas recordações de uma docência liceal que os ventos da mudança passaram a adjectivar de secundária: “Num momento pouco agradável de uma vida vítima de torpeza, seja-me concedida a oportunidade de dizer que tive a honra de ser aluno do Prof. José Hermano Saraiva, no Liceu Passos Manuel. E dele me recordo a dar as aulas da disciplina de História com o mesmo entusiasmo e aplauso que desperta, ainda hoje, na legião de pessoas que o escutam e vêem os seus programas televisivos por se tratar de um pedagogo que em nada se assemelha aos ‘pedabobos’ a quem os ventos da revolução de Abril trouxeram uma mudança radical nas suas convicções políticas (?), e que pululam por esse Portugal fora arrastando-o para os últimos lugares em estudos comparativos sobre Educação relativamente a outros países europeus. E que bem ele utilizava a metodologia de fazer para aprender: aquando da matéria referente aos Descobrimentos, passava como trabalho de casa a feitura de mapas a eles referentes bem como a construção, em madeira de balsa talhadas a canivete e as velas de pano com a Cruz de Cristo pintadas, das caravelas de antanho, sendo atribuídas classificações desses trabalhos que contavam para a nota final de período” (Diário de Coimbra, 4/8/2005).

Abre aquela entrevista com uma pergunta sobre a relação do entrevistado com o respectivo pai. Não fugindo à resposta (apenas adiando-a) deixa-se enlear por recordações da infância: “A presença que domina completamente a minha infância, e mesmo juventude, não é o meu pai, é o António [António José Saraiva], meu irmão e teu pai. A minha ligação com o António era uma coisa quase visceral” (id.,ibid., p. 37).

Com o intuito facilmente identificável de colocar, por motivos políticos, em causa essa fraternal e “visceral” amizade, recorre o autor da carta atrás citada ao nome do Prof. José António Saraiva, segundo ele, “um dos portugueses mais perseguidos por questões políticas durante o regime do Estado Novo”. Assim sucedeu, na verdade! Mas vejamos o que escreveu Maria Ana Sequeiro de Medeiros, na respectiva biografia, sobre algumas das perseguições de que foi vítima: “Expulso do ensino superior em 1943, na sequência de um processo disciplinar motivado por um desentendimento com Vitorino Nemésio, António José Saraiva ingressou no ensino liceal” (“António José Saraiva e Óscar Lopes. Correspondência”, Gradiva, 2005).

Ou seja, a deturpação, que, por vezes, é feita dos motivos desta expulsão da docência universitária, logo é aproveitada por uma certa esquerda a seu bel-prazer e em benefício das suas conveniências ao referenciar, apenas, parte da vida de uma personagem notável do mundo cultural português. E a outra? Quando, por exemplo, ele denuncia os crimes cometidos na ex-União Soviética ou se manifesta abertamente contra a “exemplaridade” da descolonização?

Terminei o artigo transcrito parcialmente atrás da forma seguinte: “Por último, esta é uma sentida e singela homenagem (que muito peca por tardia!) de um antigo aluno que lamenta que a condição de octogenário do seu antigo Mestre, que dedicou grande parte da vida ao estudo da divulgação científica e popular da historiografia – não só pelo achado de documentos novos, mas também pelo surto de ideias fecundas, como preconizou e defendeu António Sérgio -, lhe não permita a destreza física para dar uma boas bengaladas nos costados de quem bem as merece por ter posto em causa o notável estatuto profissional e humano do historiador José Hermano Saraiva”.

Preso que me sinto às recordações da juventude, hoje, num sistema educativo ensombrado pelo facilitismo, melhor me encontro preparado para compreender o alcance do pensamento do filósofo francês Roger Garaudy: “Mas é tão belo o mundo da cultura; à falta de futuro, deu-me um passado”.

3 comentários:

Anónimo disse...

Já agora não deve omitir-se a intervenção de J. H. Saraiva na crise académica de 1969 como Ministro da Educação. E é merecida uma referência às suas inclinações pró fascistas.

Anónimo disse...

Caro Anónimo:
De facto não lhe repugnou fazer parte de um governo que mantinha a pide. Facto muito notável que não se pode ignorar. Diz muito sobre a estatura moral.

Rui Baptista disse...

Anónimo (22:24): As inclinações políticas pelo Estado Novo de J.H.Saraiva estão bem definidas na entrevista do Sol. Como, outrossim, a sua intervenção ministerial na crise académica de 69.Corajosamente não renega nem esconde esse passado.

A referência de respeitosa amizade que lhe faço refere-se às suas qualidades docentes na disciplina de História, tão maltratada (ou mesmo abandonada) nos actuais currículos escolares.

Contrariamente, uma figura destacada da antiga situação,já falecida, quando confrontada com o facto de ter desempenhado elevados cargos no tempo da "outra senhora",respondia que o fazia para minar as estruturas fascistas. Continuando a aceitar tachos, como continuou, depois de 25 de Abril a sua intenção seria minar as estruturas democráticas?

Anónimo (23:54):

É indiscutível que a PIDE não deve ser defendida por ninguém, como aliás não deve igualmente ser defendida a KGB ou qualquer outra polícia política.Aliás quantos portuguesses ou soviéticos tiveram a coragem de se lhes oporem?

A democracia dá-nos a garantia que os "bufos" (perdoe-se-me o plebeísmo) pertencem a um passado que se não deseja revisitado. Julgo estarmos ambos de acordo nesse aspecto.

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