segunda-feira, 11 de julho de 2022

Agustina e Saramago

Imagem recolhida aqui

João Boavida

Podemos pensar que a teoria do fundo e da forma, numa obra literária, é um assunto meramente académico, e que corre fora das vistas do leitor comum; ou seja, o género de coisas que interessam sobretudo aos estudiosos. Porém, se nos perguntarem, depois de um livro lido, se ele nos agradou ou não, ao tentarmos encontrar as razões para a nossa resposta, teremos quase forçosamente de entrar em consideração com questões de conteúdo e de forma.

À primeira vista, o interesse de um livro tem a ver com o conteúdo, com o enredo e a sua capacidade de nos entusiasmar e prender. Há conteúdos ricos, palpitantes e intrigantes, que nos prendem até ao final, e há outros, tão pobres e desinteressantes que são um sacrifício levar o livro a bom termo. O valor do conteúdo na apreciação do livro é, pois, importante. 

Mas, acontece que um livro pode ter na origem um enredo com grandes possibilidades, uma história com condições para ter sucesso, mas é tão deficiente em termos de estrutura e de escrita, que a rica ideia se perde completamente. Pelo contrário, podemos encontrar um livro muitíssimo bem escrito mas sobre um conteúdo tão vazio que, no final, obtemos uma obra que nos deixa indiferentes, porque o autor demonstrou possibilidades literárias, mas não conseguiu o livro que poderia pelo conteúdo desinteressante.

O ideal é que tanto o conteúdo como a forma desempenhem a sua função, isto é, se articulem de tal modo que nenhum deles predomine sobre o outro. Na medida em que o conteúdo dá matéria à forma, e a forma materializa o conteúdo, quando bem se articulam quase não damos por eles e parecem-nos a mesma coisa. Mas não, são duas faces da mesma moeda.

É óbvio que este equilíbrio é um ideal raramente conseguido, pois quase sempre os escritores privilegiam um ou outro destes aspetos. E, curiosamente, em certos casos será até esse desequilíbrio a razão do seu sucesso. O que parece ir contra tudo o que disse anteriormente, mas talvez não. 

Comparem-se os exemplos da Agustina Bessa Luís e de José Saramago, dois escritores muito diferentes entre si, mas dos maiores e mais sonantes nomes da nossa literatura do século XX. Embora isto possa ser polémico, eu diria que o melhor da obra de Agustina está no conteúdo, e o melhor de Saramago reside na forma. 

Os livros de Agustina são obras onde a intuição, frequentemente fulgurante e certeira, se mistura com deduções, teorizações, memórias, explicações, enredos que se pegam e largam, através dos quais um espírito riquíssimo, irrequieto, por vezes caótico, mas sempre vivo e acutilante, se desenrola num processo inesgotável. Há nos seus livros um conteúdo prodigioso, que o seu espírito alimenta, e de que se alimenta, uma obra que, dir-se-ia, constrói o seu conteúdo sobre a turbulência intelectual e imaginativa que a atravessa. Sendo a forma pouco cuidada, porque, com tal prodigalidade de material, seria sempre difícil produzir uma forma bem conseguida, poderemos talvez dizer que o melhor da obra estará nesse excesso, porque, apesar de tudo, vai sendo controlado pela mão exímia desse prodígio criativo.

Com razão, Eugénio Lisboa diz que ela escrevia demais, pois não tinha tempo nem vontade de cuidar da forma. É sabido que mal acabava um livro começava logo outro, que não tinha paciência para reler o que escrevera, ou fazia-o apressadamente, e mesmo se o seu dactilógrafo (o marido) lhe chamava a atenção para certas discrepâncias, não queria saber porque a sua cabeça já estava ocupada com outras coisas; isto é, outros conteúdos, outros enredos, explicações e contradições. 

A obra de Agustina ganha assim um conteúdo particular pela turbulência que a atravessa. E de tal maneira que, algo contraditoriamente, podemos dizer que a sua forma corresponde ao conteúdo, porque, com tal prodigalidade de fundo, não se vê que forma pudesse melhor traduzi-lo que aquela. Mas, no final, lamentamos um tanto, porque, com tal talento, a sua obra podia ser melhor ainda. Mas, quem sabe se, ganhando na forma, não perderia no conteúdo?

Inversamente, o que admiramos mais em Saramago é a forma original e muito particular com que desenvolve os seus temas. Parte quase sempre de uma ideia forte, e mesmo arrojada, que condiciona todo o conteúdo, mas este, por sua vez, é submetido a uma forma que nunca se afasta de um certo número de regras e de um conjunto de processos muito particulares. 

Sintaticamente complexo, mas não necessariamente difícil, produz um contínuo lexical onde cada palavra é adequada à ideia e integrada numa torrente onde sonoridades arcaicas e um aparato quase oitocentista se misturam com algumas técnicas do Novo-Romance e doutras desenvolturas modernas. Mas controlando sempre os acontecimentos e os enredos, prendendo o leitor, coisa que os representantes dessa corrente não conseguiam. 

Saramago é um formalista que sabe aproveitar uma boa ideia inicial e que, com uma escrita corrida, não muito rápida, mas nem por isso entediante, nos prende pelo sabor das palavras e o fluir das frases na construção envolvente de um enredo. Onde não raro surge o fantasioso, o insólito e o sobrenatural, mas que o seu estilo se encarrega de tornar possível, humano e terreno. 

Em suma, aqui, poderemos dizer que o conteúdo é submetido à forma, é ajustável a ela e, inversamente, a forma parece ter sido escolhida para aquele conteúdo.

Mas, isso não foi o que também dissemos de Agustina? Talvez, mas pegando na questão pelo outro lado. No final, ressalta, nas obras de José Saramago, a forma e nas de Agustina Bessa Luís, o conteúdo. 
 
João Boavida

4 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

Para quem fizer uma abordagem teórica dos problemas da forma e do conteúdo nas obras literárias, nas expressões artísticas em geral e mesmo na perspectiva mais ampla da estética, de uma canção, de um corpo, de uma estátua, de uma coreografia, de uma fotografia, ou de uma pintura, ou para quem se propuser produzir uma dessas obras de arte, em que releva sobremaneira a intencionalidade estética, ainda que lhe sejam alheios os problemas teóricos, o trabalho a fazer e a forma de o fazer são muito diferentes. No fundo, é uma questão dos meios adequados para atingir fins. Se a forma e o conteúdo fossem indiferentes, não haveria arte. Do mesmo modo, se não pudéssemos distinguir entre duas coisas, não haveria racionalidade.
A questão “uma alteração de forma altera o conteúdo, ou vice-versa?” não preocupa o artista mais do que a questão “que forma devo dar ao conteúdo e vice-versa?”.
Por exemplo, alguém que não saiba cantar e que tenha talento e conhecimentos musicais pode fazer uma crítica de elevada qualidade sobre a prestação de um cantor. Por outro lado, este cantor, nem por ter grande talento para o canto, está, só por isso, em condições de fazer uma autocrítica relevante, ou uma crítica à crítica daquele.
Para a crítica, os problemas de forma e conteúdo são problemas diferentes daqueles problemas de forma e de conteúdo com que depara o autor, entendido este como o produtor, criador, de um efeito estético que é inseparável das suas habilidades.
Para a crítica, a dificuldade em explicitar, teoricamente, o que faz com que, num caso o valor da obra de arte esteja no talento do seu autor e não nos conteúdos dessa obra, é uma dificuldade que não faz parte das dificuldades do autor em produzir a obra.
Tratando-se de arte, que não tenham um propósito, ou uma intencionalidade discursiva, central e principal, de carácter científico, técnico, informativo, teórico, apologético, ideológico, doutrinário, publicitário, a distinção entre forma e conteúdo, em certos casos, não existe ou, se existe até certo ponto, essa distinção não releva nada para o caso. Se, por exemplo, alguém me vier dizer que um quadro do pintor X tem a forma que ele lhe quis dar e que é observável, mas que o conteúdo é o suporte material em que ele pintou, a que outro conteúdo poderá ainda alguém referir-se? E a forma será tão-só o modo como o suporte material está organizado e disposto? E se lhe pedir para me descrever, me falar dessa obra, que eu não conheço, porque nunca vi, que diferença me pode ser apresentada entre forma e conteúdo da mesma? Que forma e que conteúdo é que ela poderá ter para mim? Há uma forma e conteúdo que a obra de arte tem para quem a frui, observa, descodifica, digamos, directamente e outra, para quem, apenas pode imaginá-la com base em descrições? E que correspondência poderá haver entre essas formas e conteúdos?
Qual é o conteúdo da forma do verso “ai flores, ai flores”? E em que é que o conteúdo tem a ver com a forma?
Será possível alguém dar-me devida conta de um poema de tal modo que não precise de mo dizer? Até que ponto é possível prescindir do poema, da forma do poema, sem prescindirmos do poema? Será possível alguém prescindir de ouvir cantar uma canção e fazer uma crítica do cantor, sem conhecê-lo, ou mesmo que o conheça e conheça a canção?
Até que ponto é justificável dizer de uma obra de arte, não me interessa o conteúdo, só me interessa a forma? Ou, não me interessa o que dizes, apenas a forma como dizes? Ou, não me interessa a forma como dizes, apenas o que dizes?
Nas obras de arte, a sua natureza, o objecto da crítica, o conteúdo e a forma, podem ser tão complexos que, para serem justamente (não subjectivamente) avaliados, numa mesma obra podem estar várias e múltiplas, o conteúdo da letra, a forma da letra, o conteúdo da voz, a música da voz, e tantos outros conteúdos e formas e cores.
Mas que justiça pode haver na apreciação, avaliação da obra de arte, que não seja subjectiva, cujo veredicto não satisfaça e não corresponda aos critérios soberanos do sujeito?

Ildefonso Dias disse...

José Saramago não é fácil de imitar porque é muito original na forma e no conteúdo.

João Boavida disse...

Meu caro Amigo, Carlos Ricardo Soares. O seu comentário coloca muitos problemas e interrogações; cada um dos seus períodos poderia dar origem a debates, mas penso que se poderão resumir ao problema, que temos andado a tratar, isto é, do que seja o fundo e a forma na arte. O artista produz a sua obra de acordo com os meios que são específicos à sua criação (escrita, pintura, música, escultura, imagens, etc.) e utilizando as muitas ou poucas capacidades que tem, isto é, o seu talento. Sendo assim, o fundo são os conhecimentos, os sentimentos, as intuições, as ideias, etc., e a forma é o que vai revelar isso, o que transforma isso em qualquer coisa de concreto, e que nós poderemos apreciar (texto, pintura, escultura, música, etc.).
Mesmo em domínios científico podemos falar em fundo e forma. Há cientistas que conseguem ser claros expondo (forma) matérias difíceis (fundo), e outros que mesmo os menos complexos conteúdos tornam confusas. Eugénio Lisboa já falou aqui, e muito a propósito, desses que complicam o simples para eles mesmos parecerem inteligentes e profundos. Há de tudo, mas a forma é importante, seja qual for o domínio científico. Com a arte é a mesma coisa, só que, em princípio, a forma parece ter uma função mais importante, mas não sei até que ponto isto é verdade.
Há sempre maneira de distinguir a forma do conteúdo porque, de facto, são distintos. Claro que há casos onde isto é mais nítido do que noutros, e casos extremos em que talvez se possa dizer que quase coincidem, mas só em casos extremos. Pergunta, como exemplo, qual é o conteúdo do verso "ai flores, ai flores!". Note, em primeiro lugar, que isso é uma parte do poema e que só no conjunto ele adquire o seu verdadeiro sentido. Mas, mesmo assim, truncado e reduzido ao mínimo, há uma evocação que deixa em aberto inúmeros desenvolvimentos possíveis. A nós, que o conhecemos, aquela parte do todo lembra o lamento pelas flores que se contemplam, e que sugerem saudades e perdas que nós próprios já vivenciámos. E todos reconhecem que, na sua simplicidade, é uma forma muito bela e leve de dizer o que é doloroso e às vezes mesmo difícil de suportar. Aquilo que foi escrito é tão sugestivo que somos capazes, a tantos séculos de distância, de sentir algo semelhante ao que sentiu o nosso querido D. Dinis. E, por outro lado, há poemas que são formados por um ou dois versos, e nem por isso deixam de ter um conteúdo denso e sugestivo. Eugénio de Andrade ter poemas curtíssimos muito belos e sugestivos. Mas, claro, tudo isto precisa dum recetor, e grande parte do segredo está aí.

João Boavida disse...

Meu Caro Ildefonso Dias. Deve ter reparado que eu fui bastante encomiástico no que escrevi sobre Saramago. Gosto dele e penso que conseguiu uma grande originalidade. Mas. atenção, como é costume dizer, se não fossem os que antes de nós subiram, não conseguiríamos chegar tão alto. Isto é verdade nas ciências e é verdade nas artes. E quanto à cópia do seu estilo, não será fácil, estou de acordo, mas sobretudo porque um artista menos bom faria uma cópia imperfeita, e um bom artista não o copiaria. Embora possa influenciar outros, que, contudo, farão sempre um pouco diferente, porque é assim que a arte se renova.

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