sábado, 18 de abril de 2020

"In Memoriam" de José Pereira da Silva e sua Participação na Revolução do Porto de Fevereiro de 1927

Preserve-se a memória dos indivíduos para se construir 
uma memória colectiva, que sirva para as gerações 
seguintes as compreenderem e estudarem, 
nas suas variadas nuances, transformações, vitórias e frustrações” 
(Heloísa Paulo, 
pesquisadora do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX 
da Universidade de Coimbra). 


No meu último post aqui publicado, “A Emigração Portuguesa, as Malas de Cartão, as Malas de Couro e os Sacos de Viagem” (13/06/2012), referindo-me a Jorge de Sena, escrevi uma frase que transcrevo: “Será que os dias tristonhos e nebulosos de um verão que tarda em chegar me inclinem, sem razão de ser, para idêntico estado de alma de quem se viu expatriado (…)”.

Em nome da verdade e para não criar mais um mito, de que a nossa história é tão pródiga, a cargo indevido de uma personalidade tão rica da vida cultural portuguesa e brasileira (nacionalidade que Jorge de Sena viria a adquirir por motivos profissionais), faz-se mister rectificar a palavra “expatriado”, situação a que ele não foi sujeito por ter saído do país de livre vontade sem ser, como tal, credor, como diria Camilo, de “amigos e parentes devotados todos a delir-lhe da lembrança a imagem de expatriado”. E explico porquê: 
“Em Agosto de 1959, viajou (Jorge de Sena) até ao Brasil, convidado pela Universidade da Bahia e pelo Governo Brasileiro a participar no IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, tendo, na altura, sido convidado, e aceitado o convite, como catedrático de Teoria da Literatura, em Assis, no Estado de S. Paulo iniciando assim um longo exílio”. 
Entretanto, por se tratar de persona non grata da política do Estado Novo, em 1968 quando quis visitar Portugal, sendo na altura Marcelo Caetano Presidente do Conselho, na fronteira com a Espanha foram-lhe levantados obstáculos pela PIDE. Para que eles pudessem ser ultrapassados, fez-se necessária a intervenção de José Blanc de Portugal (Adido Cultural junto da Embaixada de Portugal, em Brasília, que, de parceria com Jorge de Sena e outros, fundou a obra “Cadernos de Poesia”) junto de Marcelo Caetano. Posteriormente, em 1972, esteve em Moçambique, julgo que sem novos impedimentos, onde proferiu palestras e participou em colóquios literários.

Mas o verdadeiro motivo deste meu texto reside na constatação da sabedoria popular de “que santos ao pé da porta não fazem milagres”. Ou se não mesmo no vencer de uma espécie de deslocado “pudor” em não apresentar o exemplo do deportado político José Pereira da Silva. Situação de que me redimo, agora, numa espécie de remorso tardio em não testemunhar o papel de um civil que participou de armas nas mãos na fracassada "Revolução do Porto de Fevereiro de 1927", liderada pelo General Sousa Dias.

Aliás, esse fracasso ficou a dever-se, em grande parte, "às hesitações e à abstenção de muitos cúmplices no momento de ‘sair à rua’, deixando sempre grandes áreas na obscuridade. Muito provavelmente, só a vitória poderia ter revelado a verdadeira dimensão do reviralho” (Luis Farinha, “O Reviralho, Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo”, Lisboa: Estampa, 1959). 

Mas quem foi José Pereira da Silva? Por parentesco foi meu avô materno, cujos dois apelidos constam do meu nome de registo civil: Rui Vasco Júlio Pereira da Silva Baptista. Mas, como cidadão, foi um político que tudo sacrificou na vida (família, posição social, fortuna) pelos seus ideais e que, quando chegou a hora de prestar contas como um dos vencidos da "Revolução do Porto de 1927", foi condenado a uma desumana pena de deportação para Angola.

Ou seja, foi um daqueles, entre 700 pessoas, “que a 21 de Fevereiro, sem julgamento foram deportados para os Açores e colónias africanas a bordo do navio Lourenço Marques”. Contava-me minha mãe que só lhe foi possível despedir-se do pai, preso incomunicável, apesar das suas fortes e sólidas raízes em seara republicana, por influência de um aristocrata, amigo íntimo e sempre presente de meu avô, o 3.º Marquês de Ficalho. Nessa antiga colónia portuguesa cumpriu dura e desumana pena e aí viveu, tendo falecido nonagenário em Benguela no dia 25 de Novembro de 1973. Quiçá por ironia do destino, precisamente, cinco meses antes de 25 de Abril de 1974! 

E, assim, nasci eu em Luanda, em 1931, onde minha mãe, Maria Sofia Pereira da Silva, órfã de mãe, foi ter com o pai, a cumprir pena em Luanda, tendo aí conhecido e casado com meu pai, Humberto Baptista da Costa, que, de sociedade com um irmão e um primo, pouco anos antes, vindos da Metrópole, tinham criado a mais importante farmácia de Angola, a Farmácia Central. Por volta do ano de 1945, o meu pai vendeu a sua quota da farmácia, tendo a família vindo para a Capital do Império, onde fixou residência. Porque, na opinião da Doutora Heloísa Paulo, 
“os espólios muitas vezes estão ainda guardados nas mãos dos descendentes que carinhosa, mas gradualmente vão perdendo a memória de factos do passado”,
aqui me apraz dar conta de acontecimentos da vida do meu avô no Porto, sua cidade natal. Do que me recordo, na minha adolescência, povoada de façanhas do super-homem, relatava-me minha mãe peripécias da vida atlética do meu avô. Narrava-me ela ter meu avô assistido, em companhia de amigos de tertúlia nocturna, a um espectáculo de circo em que o homem das forças oferecia uma quantia em dinheiro a quem, a seu exemplo, fosse capaz de dobrar uma barra de ferro. E continuava minha mãe: depois de muito instado pelos amigos desceu à pista e pegando na referida barra dobrou-a facilmente. Quando o artista circense se lhe dirigiu para dar o prémio prometido a quem fosse capaz de idêntica façanha, meu avô, naturalmente, não aceitou. Logo ali lhe foi pedido por ele para aí não voltar a fim de não estragar o espectáculo. Desnecessário me parece dizer que o meu avô acedeu a esse pedido por a sua performance ter sido, apenas, a de satisfazer o pedido de amigos conhecedores da sua natural e forte força física, aumentada pela prática de exercício gímnicos constantes. 

A biografia dos homens é feita também de pequenos pormenores como este que, aos meus olhos de adolescente, assumiu um grande orgulho, deixando-me engramas na memória mesmo hoje em que ela já não é o que era. A idade prega-nos destas partidas!

Recorrendo à wikipédia, em texto de uma prima minha, neta paterna de meu avô José Pereira da Silva, Maria Isabel Pereira da Silva Veiga Cabral, transcrevo acontecimentos da vida política e social de meu avô que fazem parte, outro tanto, da minha memória e confirmam aquilo que minha mãe me foi contando ao longo dos anos. Escreveu a subscritora do referido texto: 
“Dotado de grande inteligência, cultíssimo, conviveu e foi amigo pessoal de grandes figuras intelectuais e políticas da cidade e do País, de entre as quais se destacam o Presidente da República, Manuel Teixeira Gomes, António Sérgio, Jaime Cortesão, Câmara dos Reis, entre outros. Formou com alguns intelectuais uma conhecida tertúlia, no 'Majestic' a qual agitou a pacatez citadina, quando, cerca de 1925, à frente do seu grupo, inconformado com uma agendada exposição de pintura abstracta para o Palácio de Cristal, se lhe antecipou, inaugurando a pretensa exposição, acompanhada da devida publicidade, com as obras abstractas que o grupo levou até à noite anterior a pintar e às quais foram dados sugestivos títulos a condizer, como A Loucura da Galinha. A exposição foi aplaudida calorosamente pelos ignaros críticos, que de nada suspeitaram... até ele se denunciar. Foi um amigo da sua cidade, um cidadão consciente das suas responsabilidades, assumindo papel importante nos seus destinos tanto nas funções de vereador como, em 1925, nas de Presidente da Câmara Municipal do Porto. Com a ajuda da empresa de importação/exportação que criara e da qual deu sociedade a CARLOS CUDELL GOETZ [em acrescento meu, produtor do filme Os Lobos, 1923], com sede na Avenida dos Aliados, no edifício do antigo Banco do Minho, electrificou parte do Porto e forneceu um dos aviões que Gago Coutinho e Sacadura Cabral utilizaram na travessia do Atlântico. Cudell Goetz, quando viu o sócio preso apossou-se da empresa.Grande democrata, associou-se ao descontentamento geral perante as iniquidades,as injustiças e os abusos praticados pelos governos, fruto da instabilidade política e social que se vivia entretanto, tendo sido um dos promotores da Revolução de 28 de Maio de 1926 e, quando esta tomou um rumo que comprometia os ideais dos revolucionários, encabeçou a Revolução de 7 de Fevereiro de 1927,que falhou pela traição de alguns dos colegas, Foi preso e deportado para Angola, onde morreu em Benguela no dia 25/11/1973”. 
Julgo que por a "Revolução do Porto de Fevereiro de 1927" ter sido um movimento de militares foram eles menos punidos e mais recordados do que alguns civis de destacada notoriedade na vida portuense, castigados com penas bem mais graves e pouco ou nada lembrados. A propósito, não posso deixar de me interrogar se não houve aqui a chamada "solidariedade da caserna" entre o oficialato das forças armadas que se sabe existir, e eu constatei como oficial miliciano. Sobre a vida preenchida de altos e baixos de meu avô, socorro-me, por meu turno, de um documento ínsito na Obra, em dois volumes, patrocinada pela Câmara da “Cidade Invicta”, coordenada pelo académico da Universidade do Porto, Fernando de Sousa, intitulada “Presidentes da Câmara Municipal do Porto”, que se inicia com o primeiro presidente Tomaz da Silva Ferraz (1822) e termina com o actual presidente Rui Rio. Transcrevo o que na p. 449, do respectivo I volume, se escreve acerca de José Pereira da Silva, presidente da Câmara Municipal do Porto no ano de 1925:
“Presidente do Senado da Câmara Municipal no primeiro trimestre de 1925, durante a ausência de António Joaquim de Sousa Júnior no Governo [em aditamento meu, ministro da Instrução Pública da I República]. Nas primeiras declarações após a sua eleição, Pereira da Silva, depois de agradecer à Câmara a honra que lhe havia conferido, assumiu de imediato o compromisso de resignar do cargo assim que Sousa Júnior abandonasse o Governo. E efectivamente, retomando Sousa Júnior o seu lugar na Câmara, a 12 de Março de 1925, e uma vez que de direito lhe pertencia a Presidência do Senado, Pereira da Silva pediu ao Senado a demissão colectiva da mesa, a qual lhe foi concedida. Na sequência desta demissão, foram realizadas novas eleições, não sem antes os membros da Câmara tecerem a Pereira da Silva os mais elevados elogios, reconhecendo-lhe ‘inteligência lúcida, dedicado e sempre pronto e firme na defesa dos direitos municipais’, salientando que tinha ‘desempenhado aquele cargo com tanta justiça, com tanta competência e imparcialidade que é lamentável que ele o abandone’, sendo mesmo lavrado em acta um voto de agradecimento. Nestas eleições, Sousa Júnior e Pereira da Silva obtiveram igual número de votos, e por consenso, Sousa Júnior regressou às funções de Presidente e Pereira da Silva assumiu as funções de Vice-Presidente”. 
Quase a terminar, e pelo significado de que a efeméride se reveste, em 2 de Fevereiro de 2007, realizou-se no Arquivo da Universidade de Coimbra um colóquio, “A Revolução de Fevereiro de 1927 contra a ditadura: oitenta anos depois”, com uma panóplia de historiadores e outros nomes ilustres da cultura e da vida civil e militar portuguesa, como Luís Reis Torgal, António Reis, Fernando Rosas, Luís Farinha, Heloísa Paulo, Luís Bigotte Chorão e o general Augusto Valente. No final da notícia a que me reporto, extraída do Almanaque Republicano, lê-se: 
"A História constrói-se e reconstrói-se sempre e em cada momento, com os elementos que vamos deixando, nunca estará fechada nem terminada, mas será sim uma permanente procura de construir um edifício sempre inacabado”. 
Por José Pereira da Silva ter sido um dos obreiros desse edifício,esta uma modestíssima homenagem que lhe era devida pelo receio de que a ingratidão dos homens e a falta de memória da história tenham feito cair no esquecimento a sua participação activa na "Revolução do Porto de 1927". E que eu, seu neto, embora com pouco engenho, tentei cumprir com muito respeito, grande prazer e imenso afecto. 

Na imagem: Capa de um dos volumes da obra "Os Presidentes da Câmara Municipal do Porto".

1 comentário:

Rui Baptista disse...

A fim de clarificar quaisquer dúvidas sobre o meu post anterior, relativas a meu avô, acabo de republicar um texto anterior sobre este assuno.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...