Video completo do primeiro episódio do "Assim Fala a Ciência", programa da Fundação Francisco Manuel dos Santos, todos os dias da semana às 19h, que tenho o prazer de moderar.
quinta-feira, 30 de abril de 2020
"Esta é a Ditosa Pátria Minha Amada"
Que me seja perdoado o arrojo de citar Camões em título deste texto.
Feita esta minha declaração preambular, que tive por conveniente fazer pela aversão que me causa quem possa enjeitar este símbolo da pátria como se o passado de
nobreza do povo português não devesse ser simbolizado em páginas de história que se não devem circunscrever a “Grândola Vila
Morena”, que serviu de senha para o golpe miliar de 25 de Abril data libertação da opressão do Estado Novo.
Em 2018, deputados do Partido Socialista cantaram "Gândara Vila Morena" numa cerimónia evocativa de 25 de Abril na Assembleia da República. E no ano em curso, nas galerias da casa
representativa da vontade dos portugueses, manifestada em eleições livres, abusivamente, foi cantada
esta canção para interromper a intervenção do antigo primeiro ministro Passos
Coelho como se a Assembleia da República passasse a representar aquelas dezenas de pessoas que ali se sentaram em evidente
arruaça.
Entendo que toda e qualquer homenagem prestada no hemiciclo
deve ter como pano de fundo o hino nacional que exalta a epopeia camoniana como
se o passado de nobreza do povo português não fosse verdadeiro hino prestado
aos portugueses de antanho. Epopeia vilipendiada por Joacine Katar, nas escadarias do órgão representativo da vontade popular, nas últimas
eleições legislativas, em que ela em vez de agradecer ao povo que a acolheu em pátria lusa como se ele não
merecesse, já não digo gratidão - a gratidão só está ao alcance de almas nobre - mas um mínimo de respeito, ainda que só por uma pequeníssima franja de eleitores que a tirou do anonimato, para a sentar numa bancada da Assembleia
da Republica aumentando os seus
proventos económicos e estatuto social.
Por esse facto, acho que faz todo o sentido endossar-lhe esta admoestação de Jonny
De Carli: “Tenha gratidão, respeito e amor pela sua pátria, a terra que o acolheu. Ser patriota é uma das formas de expressar gratidão à pátria que nos
acolheu. Vibre positivamente pelo seu país”. Portugal, em período da Restauração de 1640, que libertou o país do jugo espanhol, teve os seus traidores, de entre eles o mais odiado, por
ter desempenhado funções no governo espanhol equivalentes à de primeiro
ministro, Miguel de Vasconcelos, defenestrado de uma das janelas do Terreiro do Paço.
Julgo chegada a hora de outorgar a nacionalidade portuguesa apenas aqueles que tenham a terra
lusitana de nossos avoengos no coração, nunca por interesses ao serviço de posições de destaque na vida política
nacional acompanhada de proventos rendosos económicos. Por outro lado, acusar
os portugueses de esclavagismo é argumento que não deve colher dividendos, por acordar ódios ancestrais, a não ser sob a
evocação da história do lobo e cordeiro: “Se não foi a vossa geração foi a geração dos vossos trisavôs ou tetravôs”.
Claro está que se não deve ocultar ou esquecer o seu horrendo,
férreo e desumano desígnio que não se discute, aproveitado pela esquerda para
tentar fazer crer à geração atual que Portugal não tem passado de glória mas tão-só de esclavagista num tempo em que ele era
moeda corrente no continente europeu, pese embora Portugal ter sido o primeiro país europeu a abolir a escravatura.
Assim nada ou pouco justifica o
ostracismo a que tem sido votada a letra do hino nacional, havido como o mais
vibrante e belo do mundo a seguir à
Marselhesa, muito menos, tê-lo como fascista como aconteceu logo a seguir a 25
de Abril. Esse ostracismo evidencia-se, nos jogos internacionais de
futebol em que uns tantos jogadores sob
a bandeiras das quinas, mesmo que nados e criados neste rectângulo europeu, fingem que o cantam mexendo apenas os lábios,
fingimento detectável em língua gestual
portuguesa.
Em contrapartida, Pepe, nascido em terras de Santa Cruz, canta-o
alto e bom som, com alma e coração, num tempo em que o pedido da nacionalidade
portuguesa, mormente não obedece a questões sentimentais. Já é tempo de deixar para trás os interesses dos portugueses
de gema em prol de uma europa sem fronteiras e, como tal, escancarada a tudo e
a todos. A actual pandemia veio demonstrar haver necessidade de ter cuidado, quanto mais não seja em defesa da
saúde, segurança e bem estar dos veros nacionais.
Já chega de atacar o nacionalismo e defender o
internacionalismo da antiga União Soviética personalizado em Karl Marx quando
afirmou que os operários não têm pátria, são internacionalistas, fechando as
fronteiras de quem as delas se queria ver livre e, curiosamente, abrindo-as a
presos políticos de outros países que nelas se refugiavam com estrito e
absoluto controlo de que comungavam de
ideários comunistas.
Bem sei que me sujeito a críticas porque, como reconheci e
escrevi em tempos, em opinião meramente pessoal, quem diz o que o partido manda
é progressista, quem diz o que pensa é reacionário. Neste canto mais ocidental europeu, os partidos políticos que prometem embora sabendo não poder vir a cumprir, ganham eleições. Estranho país
este seara imensa de oportunistas!
quarta-feira, 29 de abril de 2020
FERNANDO PESSOA SOZINHO NO CHIADO
Recebido do meu amigo Eugénio Lisboa, crítico literário e académico, publico estes versos com o prazer de sempre:
Estrangeiro sempre me conheci,
estranho entre os homens que acho estranhos,
mal roçando um amor que demiti,
e acalentando sonhos tamanhos;
paranóico, bizarro e ausente,
homem sem corpo e de alma pouca,
alcoólico de génio, demente,
pedinte e vadio de ambição louca,
assexuado bicho desgraçado,
sorrindo em itálico reprimido,
em vez da vida, o verso bem limado,
em vez da posse, o abraço bem fingido,
- assim grande e ausente me puseram,
plantado em pedra aqui no Chiado.
Palhaço de turistas me fizeram,
só, entre papalvos, alapardado!
E aqui fui moendo o meu tédio,
cercado de gente, mas solitário,
vivendo a eternidade sem remédio,
neste horrível mundo oco e arbitrário!
Entre só mas rodeado de gente
e só sem que ninguém me atormente,
confesso que ficarei mais contente,
neste mundo sem gente de repente!
Eugénio Lisboa,
que pede escusa ao grande escritor por lhe pôr
na boca estas palavras álgidas e lúcidas (“Merda, sou lúcido!”, não era mais ou menos isto que dizia o seu histérico heterónimo, Álvaro de Campos?)
terça-feira, 28 de abril de 2020
O "novo normal" para acabar de vez com essa figura difusa que é a "escola tradicional"
Parto, neste apontamento, de um comentário do leitor Rui Ferreira.
Não há muito tempo, comecei a encontrar, sobretudo nos documentos da Organização para a Cooperação Económica (OCDE), a estranha expressão "new normal" aplicada à educação* percebi que ela traduzia uma estratégia muito concertada e, mais do que isso, radical, de "mudança de paradigma" - da "educação tradicional" para a "educação tecnologizada"**.
Em mais de um século, as múltiplas tentativas de romper com a "educação tradicional", não foram/são consideradas satisfatórias: qual hidra de mil cabeças, sobreviveu, replicou-se, ampliou-se. Chegámos ao século XXI e ela mantém-se inabalável, diz-se.
Para grandes males, bem se sabe, grandes remédios. No caso, o remédio foi preparado, de modo muito concertado, ao mais alto nível, tendo sido fixada em finais de 2019, depois de mais de uma década de trabalho. Trata-se de uma orientação global para os sistemas educativos. Espera-se que todos a reconheçam e implementem.
Ou seja, espera-se que substitua/m decisiva e definitivamente a/s normalidade/s "tradicional/is", que se foi/ram construindo em função das múltiplas contingências que influenciam a educação escolar, reconheçamo-lo, com as suas imperfeições, fragilidades, erros, por certo, mas também, com as suas virtudes e potencialidades, por uma única e "nova normalidade", construída e dada como perfeita, terminada, logo, inquestionável.
Ou seja, espera-se que substitua/m decisiva e definitivamente a/s normalidade/s "tradicional/is", que se foi/ram construindo em função das múltiplas contingências que influenciam a educação escolar, reconheçamo-lo, com as suas imperfeições, fragilidades, erros, por certo, mas também, com as suas virtudes e potencialidades, por uma única e "nova normalidade", construída e dada como perfeita, terminada, logo, inquestionável.
Diz muito bem o leitor Rui Ferreira,
a escola tradicional de hoje contempla o novo e a inovação; foi capaz, e com distinção, de formar para o futuro (não esqueçamos que estes que se consideram bons e visionários foram todos eles formados na e pela escola tradicional).E diz mais:
A (...) escola tradicional deve estar disponível somente para as elites. O que pretendem mesmo não é acabar com ela, antes querem guardá-la só para eles. A escola tradicional é perigosa porque tende a levar as pessoas a pensar.
Aqui digo: uma certa escola tradicional, antes de mais, que pressupõe uma relação pedagógica presencial, assumindo que o ensino (dos professores) é fundamental para que os alunos aprendam, que veicula conhecimentos diversos, incluindo os de humanidades e artes, que insiste em desenvolver capacidades cognitivas, afectivas e motoras, que tem por fim formar pessoas para o mundo... Estou convencida que esta escola não será, de facto, para todos (já não é): a esmagadora maioria de crianças e jovens obrigados a uma escolaridade, cada vez mais longa, passam/passarão (como se dizia nos anos oitenta e noventa, a propósito da educação tradicional) por "um modelo único pronto-a-vestir": o "novo normal".
________
* Traduzi a expressão para "nova normalidade" mas tenho-a visto traduzida por "novo normal".
* Traduzi a expressão para "nova normalidade" mas tenho-a visto traduzida por "novo normal".
** Uso esta expressão (educação tecnologizada) para designar a educação, destituída de pensamento educativo e comandada por técnicas (modos de fazer) que são impostas sem outro argumento que não seja o da eficácia. Podem (ou não) estas técnicas integrar hardware e software inscrito nas novas tecnologias da informação e da comunicação.
segunda-feira, 27 de abril de 2020
"Grândola Vila Morena" e "Bella Ciao"
“Liberdade se significa alguma coisa,
será sobretudo o direito de dizer às pessoas
aquilo que elas não querem ouvir”
(George Orwell)
Terminaram ontem as "Comemorações de 25 de Abril", mas está longe de terminada as polémicas extremistas que gerou.
É natural, como nos diz o povo, com a sua sabedoria ancestral, "até ao lavar do cesto tudo é vindimas”. Vindimemos, portanto!
A nossa proverbial costela latina mais do que discutir quem ideias contrárias é insultar quem de nós discorda. E entre os que concordam e os que discordam criou- se uma cisão, uma espécie de “mare magnum” que separa as pessoas, ou mesmo as inimiza.
Em crítica desapaixonada, a unanimidade neste particular esteve longe de ser consensual. Haja em vista a lista de convidados para a cerimónia e que se de desconvidaram entretanto de “motu proprio”.
Pior do que isso é considerar fascista aos que discordam destas festividades e comunista aos que concordam, criando uma espécie de nova cisão ente os blocos orientais e ocidentais do tempo da “Guerra Fria”, em que os próceres de Berlim Oriental quiseram fazer passar a imagem de que o muro de Berlim tinha sido construído para evitar que os habitantes do lado ocidental se passassem para o lado oriental.
Facto desmentido porque quando da sua destruição a camartelo os habitantes de Berlim oriental, em verdadeiro tsunami, impossível de suster, saltaram doidos de alegria para abraçarem os seus familiares ocidentais que a política tinha separado durante anos que tinham parecido séculos de vivência no deserto encontrando, finalmente, um oásis em Berlim Ocidental.
Embora, o número de mortos e infectados não pare de aumentar, ainda que lentamente, no passado dia 25 de Abril, festejou-se na Assembleia da República, não vá o povo ingrato esquecer a data dos cravos para uns e dos cravas que para outros.
Nesse dia cantou-se às janelas e varandas “Grândola Vila Morena", uma canção que se quer impor ao povo como canção revolucionária do Minho, ao Algarve e ilhas da Madeira e Açores e não como uma simples senha dos capitães de Abril.
Ao invés, tempos houve em que a nossa Epopeia Camoniana foi tida como fascista pelos suas estrofes iniciais: “Heróis do mar, nobre povo / Nação valente e imortal / Levantai hoje de novo / O esplendor de Portugal”.
Nesse mesmo dia os italianos prescindiram de cerimónias oficiais, cantando o povo às janelas a belíssima e vibrante canção “Bella Ciaio” contra a opressão fascista de Mussolini. Itália uma península mediterrânica com um historiai milenar na estatuária, na pintura , nas Belas Letras, no Belo Canto, na indústria automóvel, etc. que se levantou dos escombros da II Guerra Mundial e da opressão fascista de Mussolini.
Já é tempo dos portugueses, despidos de clivagens ideológicas ou simples tricas de comadres desavindas, darem as mãos para juntos e rapidamente reconstruirem um Portugal profundamente ferido nas suas estruturas económicas e sociais pela actual pandemia sem políticos da estripe do Marquês de Pombal, que não se divisam no horizonte nacional actual, que em esforço ingente reconstruiu a cidade ulissiponense em escombros pelo demolidor terremoto de 1755.
E no meio disto tudo, que belíssima lição de patriotismo e civismo foi dada por aquele cidadão anónimo que desceu em 25 de Abril a Avenida da Liberdade lisboeta com uma gigantesca bandeira verde rubra nos braços sem a turba multa de manifestações partidárias, sob os holofotes da comunicação social, em que centenas de manifestantes, para fins estatísticos são anunciados,“urbi et orbi”, como sendo muito milhares.
Já dizia Leite Pinto ministro da Educação de Salazar: “Há duas maneiras de mentir, uma é não dizer a verdade, outra fazer estatística!”
Sociedade Civil - Sorte e Azar, programa da RTP em que participei
Sociedade Civil: Sorte e Azar - Cara ou coroa? Eu escolho uma, desse lado escolhem outra. Escolho cara, atiro moeda ao ar para decidir um tema para este programa. Escolhemos nós: Sorte e azar.
O cavalo tecnológico em tempos de pandemia
*
"Ó infelizes, que loucura tamanha é esta, cidadãos?
Acreditais que os presentes dos Gregos estão isentos de astúcias?...
Ou os Aqueus se encontram escondidos neste cavalo de madeira ou esta máquina foi fabricada contra as nossas muralhas para inspeccionar as nossas casas e para vir por cima da nossa cidade, ou esconde algum engano... " — Virgílio, Eneida, II, 42-49.
Para conseguirem entrar na cidade há tanto tempo sitiada, os Gregos, seguindo o imaginoso e astuto Ulisses, recorreram ao estratagema do cavalo de madeira que, diziam, deixavam como presente a Minerva, antes da retirada. E foram os próprios Troianos, acreditando que o inimigo tinha desaparecido, que introduziram na sua cidadela esse "presente envenenado" que os levaria à destruição. Não bastou a palavra sensata e avisada de Laocoonte, alertando aqueles que acreditavam na "dádiva" a Minerva e a tentavam introduzir na cidadela. "Timeo Danaos et dona ferentes", dizia o sábio sacerdote, segundo o poeta Virgílio na sua Eneida, isto é, "Temo os Dânaos (os Gregos) mesmo quando trazem presentes".*
Vem isto a propósito da entrevista a Rana Foroohar de que aqui transcrevemos alguns passos em tradução. Pouco tempo antes da pandemia, a colunista e editora associada do ‘Financial Times’, publicou um livro - Don’t be evil - a que o modo de lidar com a pandemia deu redobrada pertinência. O tema central é o poder que as grandes empresas de tecnologias foram acumulando e as consequências sociais e económicas que daí advêm. Numa entrevista, assinada por Esteban Hernández, com o título que se pode ler acima e publicada no passado dia 16 de Abril (aqui), disse (os sublinhados são nossos):
O confinamento converteu as empresas ligadas às tecnologias em partes indispensáveis do nosso quotidiano, e muitas pessoas que não estavam habituadas a utilizá-las estão a adquirir esse costume. É por demais evidente que neste processo essas companhias estão a recolher uma enorme quantidade de dados sobre os nossos comportamentos e formas de pensar, que irão aproveitar e monitorizar de diversas formas. Elas são as grandes triunfadoras económicas deste apagão geral...
Todas as preocupações existentes antes do coronavírus sobre a privacidade e o uso dos nossos dados, a concentração corporativa e as grandes somas de dinheiro que dedicam a fazer lobby político desapareceram, e as pessoas estão viradas para os serviços que oferecem, desde a entrega de alimentos até ao teletrabalho.
As empresas maiores estão a aproveitar ao máximo o momento e utilizam-no para pressionar e conseguir mais poder e tomar o controle de novas áreas ligadas aos dados: um exemplo é a aliança entre a Google e a Apple para criar uma app que permita saber se estivemos expostos ao vírus rastreando os nossos movimentos e os nossos contactos.
Se não há limites nos poderes adicionais e aos dados que se lhes dão como resultado da crise, entraremos num plano inclinado muito escorregadio que terminará num Estado de vigilância estilo chinês nos Estados Unidos e também na Europa.
Isto e muito mais do que isto a que faz alusão pode, sublinha, "converter-se
facilmente numa corrida para o abismo". Acrescentamos perguntas: estamos, realmente, conscientes do que se passa? Poderemos fazer alguma coisa? Estaremos ainda a tempo de fazer alguma coisa?
Laocoonte avisou os Troianos, mas eles não quiseram ouvi-lo, as consequências são conhecidas.
Eis a apresentação do livro, onde não encontramos propriamente respostas, mas encontramos pensamento de que precisamos...
Isaltina Martins e Maria Helena Damião
"Telépolis, a distância, a velocidade e a ressonância"
Vale a pena ler o texto de João Maria André, professor de Filosofia da Universidade de Coimbra acima identificado. Começa assim:
Em 1994, num livro intitulado Telépolis, o filósofo espanhol Javier Echeverría descrevia nestes termos o perfil dessa nova forma de polis ou de cidade à distância que então se ia consolidando na sua emergência:
Continuar a ler aqui.“Telépolis não está assente sobre um território bidimensional que pudesse ser cercado por círculos concêntricos e vias de saída, nem é reduzível a um conjunto de volumes edificados sobre tal planta: não tem perspetiva visual, nem geografia urbana desenhável sobre um plano. É multidimensional pelo seu próprio desenho e nem sequer a partir do alto é possível aceder a uma visão global da nova cidade. Para nos orientarmos minimamente nela já não valem os antigos mapas de cidades: há que recorrer a múltiplas bases de dados, cada uma das quais nos oferece apenas um corte ou aspeto. As possíveis delimitações que se proponham na nova cidade já não estarão baseadas na distinção entre interior, fronteira e exterior, nem, portanto, nas parcelizações do território, mas em estruturas reticulares, arborescentes e inclusivamente selváticas, sem prejuízo de que na imensa complexidade futura possamos chegar a distinguir novas formas de identificação e de classificação rigorosamente estruturadas. Para começar a investigar esta nova estruturação do espaço social, utilizaremos inicialmente um recurso puramente metafórico, mostrando que as componentes clássicas de uma cidade (as suas casas, os seus quarteirões, os seus bairros, as suas ruas, as suas praças, os seus subterrâneos, os seus cemitérios, as suas vias de saída e de entrada) mudaram radicalmente, ao perder o primado um conceito extensivo da polis e ao modificar-se a sua estrutura topológica.”
É preciso reorganizar os sistemas educativos em função do "novo normal"
Nos últimos dias têm sido entrevistados representantes de organizações internacionais que participam directamente na formulação de políticas educativas, com recomendações e orientações. Perguntam-lhes os jornalistas qual é o estado do ensino em virtude da COVID-19 e como evoluirá num futuro próximo.
Reproduzi aqui extracto de uma entrevista a Andreas Schleicher, director de Educação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), reproduzo, abaixo, extractos de uma entrevista de Rui Polónio (TSF, 15 de Abril) a Stefania Giannini, Diretora-geral Adjunta para a Educação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
Apesar da diferença de origens e vocações das duas organizações, o discurso sobre a educação escolar é sobreposto. Poderiam trocar-se os nomes dos mencionados representantes que não se perceberia. Compare o leitor as repostas e verá...
A UNESCO tem acompanhado de perto o encerramento de escolas? Absolutamente. A UNESCO começou a monitorizar os dados desde o início. Em poucos dias, 300 milhões de crianças deixaram de ir à escola, na China, Itália e em mais alguns países. Mas este número tem vindo a subir e hoje temos 1.600 milhões de alunos em casa, que representam mais de 90% da população estudantil de todo o mundo (…).
Quando um país decide encerrar escolas, quais são os riscos que ficam em cima da mesa? Mais do que riscos, prefiro falar em impactos. Em muitos países, as escolas são dos locais mais seguros, mas são também, muitas vezes, a garantia de uma nutrição apropriada. O fecho das escolas tem, claro, implicações no bem-estar das crianças e das famílias. Também é preciso garantir a qualidade do ensino, não deixar os mais desfavorecidos para trás e garantir equipamentos que assegurem esta mudança. Os impactos são muito fortes, mas deixe-me dizer isto: onde vemos um risco, também podemos ver uma oportunidade. Penso que o momento que estamos a viver também serve para fortalecer as ligações entre todos os atores do processo educativo, criar parcerias entre os Governos e sensibilizar para a importância da educação durante a crise e depois dela.
Que desafios identificam? Há grandes desafios que os países e os Governos enfrentam no imediato. O primeiro é o de mudar (de um dia para o outro) das salas de aulas tradicionais para plataformas de e-learning e continuar a assegurar o ensino. Não é fácil e óbvio em lugar nenhum do mundo. O segundo é dar aos principais atores do processo, professores e alunos, especialmente os da primária, todas as ferramentas necessárias. Não apenas as infraestruturas e plataformas, mas também aptidões sociais e emocionais para estarem preparados. Para fazerem esta transição com naturalidade, aprenderem e ensinarem num novo contexto sem precedentes e totalmente inesperado (…). Depois há um impacto que nós já começámos a avaliar em vários países, talvez mais relacionado com as desvantagens para alguns segmentos da população estudantil: o que é que significa o fecho das escolas? Por exemplo, não podermos dar acesso à alimentação. Em muitos casos, a alimentação na escola significa ter acesso diariamente a comida saudável (…), há muitas variáveis que temos que levar em conta e é nisto que a coligação global para acompanhar o impacto do novo coronavírus, lançada pela UNESCO há quatro semanas, está a trabalhar.
Como tem sido a atuação junto dos Governos? Estamos em contacto direto com quase todos os Governos e ministros da educação. De resto organizámos já a primeira reunião ministerial centrada nos grandes tópicos de que falei há pouco. Penso que neste momento é difícil para todos eles anteciparem o desenvolvimento desta situação (…)
A UNESCO comprometeu-se com o desenvolvimento sustentável no âmbito da agenda 2030 (…) De que forma olha para este processo? Penso que a palavra-chave para o que estamos a construir é: solidariedade, uma nova forma de solidariedade que encontrámos na comunidade educativa. Uma nova forma de construir parcerias rapidamente pode ajudar os ministros a encontrarem soluções, estejamos a falar de apenas mais algumas semanas ou de uma situação a médio prazo que talvez obrigue os Governos a pensar para lá da crise. Uma nova forma de organizar os sistemas educativos (…). A este propósito, houve uma reunião extraordinária, por videoconferência, claro, da Comissão Internacional pelo Futuro da Educação. Foi um encontro centrado nos efeitos do novo coronavírus, mas em que se começou já a repensar o futuro do ensino (…).
As soluções não são iguais para todos os países? (…) Estamos a tentar sentar à mesa os principais intervenientes, para que a um nível global se possa ajudar os diversos países a encontrarem o seu próprio caminho (…). Que países se estão a destacar na adoção de medidas? A China que foi o primeiro país a fechar escolas e em poucos dias colocou online 180 milhões de estudantes, de acordo com a informação que o ministro chinês da Educação nos transmitiu (…). Cada país está a lidar com este problema à sua maneira. O Irão também está a recorrer às rádios e televisões como forma de complementar as plataformas de e-learning (…). Na Europa, destacaria a França que ativou imediatamente o Centro Nacional para a Educação à Distância e está a funcionar bem (…) As escolas primárias não estão com o mesmo nível de eficiência que o secundário. Mas isso é normal, pois é muito diferente ensinar e aprender no começo do percurso escolar ou em níveis em que os alunos são mais autónomos, preparados para utilizar todos os instrumentos e capazes de interagir, com normalidade, através de plataformas online, com os professores. Na África subsaariana, alguns países, como o Senegal (…) não têm ligação à Internet na maior parte do território, não têm implementadas plataformas de e-learning. Estamos a ajudar a criar essas plataformas, mas (…) demora algum tempo. Entretanto, eles estão a utilizar algo que penso que lhe seja familiar: a rádio está a substituir, de alguma forma, a voz dos professores (…).
O paradigma da educação pode mudar quando a pandemia acabar? Penso que sim. Nós falamos muito, pensamos muito em re-construir o modelo tradicional do ensino (…) agora que fomos obrigados a mudar de um dia para o outro, podemos aproveitar e finalmente mudar alguma coisa. Não é apenas sobre usar melhor ou pior as infraestruturas e os equipamentos. É um paradoxo: Quanto mais somos obrigados a mudar-nos das salas de aulas tradicionais, para salas virtuais, mais importante se torna centrarmo-nos no lado humano, no bem-estar, nas necessidades emocionais e sociais. É importante atrairmos os jovens e as crianças para o centro da construção do processo educativo (…). A crise tem sido muito abordada pela perspetiva dos alunos e das famílias. Mas há também 60 milhões de professores a enfrentar uma nova realidade. Este é um dos assuntos que a UNESCO - e a coligação global que lidera - vai abordar nos próximos dias com novos dados, novas linhas orientadoras e algumas reflexões que vamos partilhar com a comunidade internacional. Por agora, posso adiantar que 50% dos professores [dos países da OCDE] não estão preparados para uma mudança rápida em direção a um novo modelo de ensino. Isto significa que ainda há muito trabalho a fazer. Ser professor não é uma tarefa fácil, nunca o foi, mas hoje é mais desafiante do que nunca.
Que cuidados devem ser tidos em conta na hora de reabrir as escolas? Esse é um aspeto que temos discutido com a coligação global e em que estamos a trabalhar de perto com os nossos parceiros (…). Primeiro apoiar a crianças, porque vai haver um impacto emocional ao entrarmos no que talvez seja o novo normal e isso é algo que nos preocupa. Outro aspeto prende-se com as famílias (…) pais ocupados com tarefas domésticas, com tele-trabalho e com as crianças a correr à sua volta e a terem aulas à distância (…). Depois, há a questão da avaliação e do acesso ao ensino. É importante que os sistemas escolares possam manter a confiança das famílias, dos alunos, mas também dos professores. Tem de haver continuidade na aprendizagem, é importante que o ensino mantenha um nível de qualidade alto e não acentue as desigualdades depois desta crise.
domingo, 26 de abril de 2020
NOVOS CLASSICA DIGITALIA
Os Classica Digitalia têm o gosto de anunciar 2 novas publicações com chancela editorial da Imprensa da Universidade de Coimbra. Os volumes dos Classica Digitalia são editados em formato tradicional de papel e também na biblioteca digital, em Acesso Aberto.
Além do usual circuito de distribuição da IUC, a versão impressa das novas publicações encontra-se disponível nas lojas Amazon.
NOVIDADES EDITORIAIS
Série “Humanitas Supplementum” [Estudos]
- Delfim Leão & Olivier Guerrier (eds.), Figures de sages, figures de philosophes dans l'oeuvre de Plutarque (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2019). 221 p.
[Les
textes ici réunis invitent à aborder l’œuvre du Chéronéen selon le
prisme choisi : ils déclinent différentes « figures » selon six
sections, qui ne sont évidemment pas sans relation parfois les unes avec
les autres, mais tâchent également lorsque cela est possible de
distinguer entre « sage » et « philosophe » : sagesse et types de sages ;
figures « mythiques » ; le sage et le politique ; figures de
philosophes ; figures exemplaires « en situation » ; représentations et
relectures.]
- Dámaris Romero-González, Israel Muñoz-Gallarte, Gabriel Laguna-Mariscal (coords.), Visitors from beyond the Grave: Ghosts in World Literature (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2019). 300 p.
[The
monograph deals with the topic of ghosts in universal literature from a
polyhedral perspective, making use of different approaches, all of
which highlight the resilience of these figures from the very beginning
of literature up to the present day. Therefore, the aim of this volume
is to focus on how ghosts have been translated and transformed over the
years within literature written in the following languages: Classical
Greek and Latin, Spanish, Italian, and English.]
CINEMA E CIÊNCIA
Meu artigo que saiu na revista BICA, que acaba de sair: versão digital aqui (na revista tem mais figuras, para além do design):
A fotografia e o cinema
são tecnologias de base científica que datam do século XIX. A fotografia
assenta na física (óptica) e na química, ao passo que o cinema se serve da
capacidade do olho humano ligar imagens fotográficas sucessivas de modo a
originar a impressão de movimento. As duas tecnologias deram origem a novas
formas de arte: o cinema é conhecido como a “sétima arte”.
A fotografia foi uma inovação francesa. A primeira fotografia em todo o mundo, Point de vue du Gras, que ainda hoje se preserva, foi tirada no verão de 1826, da janela da casa do inventor Joseph-Nicéphore Niépce, que mais não pretendia do que copiar desenhos de uma litografia. Mostra partes dos edifícios e paisagem vizinhos de sua propriedade, Le Gras, em Saint-Loup-de-Varennes, na Borgonha, França. O trabalho de Nièpce foi continuado pelo seu sócio Louis Daguerre. Ao longo de todo o século XIX a fotografia conheceu um extraordinário processo de evolução tecnológica, que haveria de se prolongar pelo século XX.
O cinema, tal como o
conhecemos hoje, é também uma invenção francesa. A primeira exibição de um
filme teve lugar no salão Grand Café, no Boulevard des Capucines, em Paris, a
28 de Dezembro de 1895. O instrumento utilizado chamava-se cinematógrafo, sendo
os seus autores os Irmãos Lumière, Auguste e Louis, filhos de um fotógrafo e
fabricante de películas fotográficas (o cinema filia-se na fotografia!). O
filme, intitulado L'Arrivée d'un Train en gare de La Ciotat (Chegada de um comboio à estação de
La ciotat), não durou mais do que um minuto. Os cerca de três dezenas de
espectadores presentes, que se assustaram perante a chegada virtual do comboio,
não podiam imaginar que estava a emergir uma não só nova, mas também poderosa
indústria. Para os Lumière o cinema não passava de uma “curiosidade
científica”, sem nenhuma possibilidade de um futuro comercial. Enganaram-se
redondamente.
Se o cinema entrou na
história em França a pré-história do cinema situa-se nos estados Unidos. Quatro
anos antes dos irmãos Lumière o inventor americano Thomas Alva Edison tinha
inventado o cinetrógrafo, que já apresentava imagens em movimento, mas que não
permitia projecção: era simplesmente uma máquina para espreitar. Metia-se um
níquel para visualizar individualmente um filme numa caixa, em vez de se pagar
um bilhete para entrar numa sala de muitos lugares com um grande ecrã, como
ocorreu mais tarde. Foi, como se sabe, a segunda tecnologia que ganhou.
Radicando tanto a fotografia como o cinema na ciência, a ciência logo aproveitou essas duas tecnologias para seu próprio benefício. Este é aliás um fenómeno recorrente: a ciência proporciona instrumentos, que têm, para além de outras, utilidades na própria ciência. Foi, no tempo da Revolução Científica, o caso do telescópio, do microscópio, do termómetro, do barómetro e de outros instrumentos que ampliaram o poder do olho humano ou permitiram medidas de grandezas físicas com maior precisão. Daguerre usou a fotografia para fixar eventos astronómicos, como eclipses, ou espécies vegetais ou animais. Ligadas a telescópios e a microscópios as câmaras fotográficas logo permitiram novos avanços na ciência concretizando os seus anseios de uma objectividade cada vez maior. Uma prova podia agora basear-se num registo fotográfico, um documento partilhado que era difícil de contrariar. Desenvolveram-se também fotografias com luz invisível, isto é, luz não visível pelo olho humano, mas que conseguia impressionar chapas fotográficas Por exemplo, os raios X, descobertos pelo alemão Wilhelm Roentgen em 1895, praticamente ao mesmo tempo que o cinema, permitiram a “fotografia através dos corpos opacos”, revelando-se o que pode ser considerado o maior contributo que a física jamais deu à medicina. O cinema conheceu um rápido aproveitamento na ciência, de resto semelhante ao que se passou na fotografia nos tempos posteriores à imagem pioneira de Niépce. Em 1896, o fotógrafo polaco Bolesław Matuszewski filmou algumas cirurgias em hospitais de Varsóvia e São Petersburgo, tendo depois sido convidado a filmar em hospitais de Paris. Ainda no século XIX, o neurologista romeno Gheorghe Marinescu realizou alguns filmes na sua área de especialidade. O autor chamou a esses trabalhos “estudos com a ajuda do cinematógrafo”, isto é, investigação científica baseada no cinema. Tal como a fotografia, o cinema revelava a sua utilidade na ciência. Há quem considere Os problemas de caminhar na hemiplegia orgânica (1898) o primeiro filme científico em todo o mundo, já que o autor era médico ao contrário de Matuszewski. Como Auguste Lumière tomou conhecimento desses documentários através de notícias, com algumas imagens, publicadas na revista La Semaine Médicale, ele afirmou numa carta numa carta de 1924: “Vi seus relatórios científicos sobre o uso do cinematógrafo em estudos de doenças nervosas, quando ainda recebia o La Semaine Médicale, mas naquela época eu tinha outras preocupações, o que não me dava tempo livre para iniciar estudos biológicos. Devo dizer que esqueci esses trabalhos e agradeço-lhe ter-me lembrado deles. Infelizmente, não foram muitos os cientistas que seguiram o seu caminho."
Radicando tanto a fotografia como o cinema na ciência, a ciência logo aproveitou essas duas tecnologias para seu próprio benefício. Este é aliás um fenómeno recorrente: a ciência proporciona instrumentos, que têm, para além de outras, utilidades na própria ciência. Foi, no tempo da Revolução Científica, o caso do telescópio, do microscópio, do termómetro, do barómetro e de outros instrumentos que ampliaram o poder do olho humano ou permitiram medidas de grandezas físicas com maior precisão. Daguerre usou a fotografia para fixar eventos astronómicos, como eclipses, ou espécies vegetais ou animais. Ligadas a telescópios e a microscópios as câmaras fotográficas logo permitiram novos avanços na ciência concretizando os seus anseios de uma objectividade cada vez maior. Uma prova podia agora basear-se num registo fotográfico, um documento partilhado que era difícil de contrariar. Desenvolveram-se também fotografias com luz invisível, isto é, luz não visível pelo olho humano, mas que conseguia impressionar chapas fotográficas Por exemplo, os raios X, descobertos pelo alemão Wilhelm Roentgen em 1895, praticamente ao mesmo tempo que o cinema, permitiram a “fotografia através dos corpos opacos”, revelando-se o que pode ser considerado o maior contributo que a física jamais deu à medicina. O cinema conheceu um rápido aproveitamento na ciência, de resto semelhante ao que se passou na fotografia nos tempos posteriores à imagem pioneira de Niépce. Em 1896, o fotógrafo polaco Bolesław Matuszewski filmou algumas cirurgias em hospitais de Varsóvia e São Petersburgo, tendo depois sido convidado a filmar em hospitais de Paris. Ainda no século XIX, o neurologista romeno Gheorghe Marinescu realizou alguns filmes na sua área de especialidade. O autor chamou a esses trabalhos “estudos com a ajuda do cinematógrafo”, isto é, investigação científica baseada no cinema. Tal como a fotografia, o cinema revelava a sua utilidade na ciência. Há quem considere Os problemas de caminhar na hemiplegia orgânica (1898) o primeiro filme científico em todo o mundo, já que o autor era médico ao contrário de Matuszewski. Como Auguste Lumière tomou conhecimento desses documentários através de notícias, com algumas imagens, publicadas na revista La Semaine Médicale, ele afirmou numa carta numa carta de 1924: “Vi seus relatórios científicos sobre o uso do cinematógrafo em estudos de doenças nervosas, quando ainda recebia o La Semaine Médicale, mas naquela época eu tinha outras preocupações, o que não me dava tempo livre para iniciar estudos biológicos. Devo dizer que esqueci esses trabalhos e agradeço-lhe ter-me lembrado deles. Infelizmente, não foram muitos os cientistas que seguiram o seu caminho."
O cinema tornou-se rapidamente
uma arte que ganhou o interesse das massas, muito para além dos círculos
restritos da ciência e da técnica. Ele passou a ser principalmente usado como
veículo de ficção, consumido por um público ansioso de desfrutar dessa nova
forma de passatempo. Um francês que tinha tentado sem êxito comprar o
animatógrafo aos irmãos Lumière foi o autor de um dos primeiros filmes de
ficção científica. Em 1 de Setembro de 1902, Georges Méliès apresentou Le Voyage dans la Lune (A Viagem à
Lua), um filme mudo e a preto e branco (embora haja uma versão colorida à
mão) de 14 minutos que usava o que hoje chamamos efeitos especiais para mostrar
uma viagem à Lua originada por um disparo de um gigantesco canhão. A história
inspirava-se em dois romances clássicos de ficção científica: Da Terra à Lua,
do francês Jules Verne, e Os Primeiros
Homens na Lua, do inglês Herbert George Wells. Um exemplo de cinema de ficção
científica no início do século XX foi o filme americano Frankenstein
(1910), de James Searle Dawley, também
um filme mudo também de 14 minutos, a preto e branco embora com partes
coloridas em sépia, que era uma adaptação cinematográfica do famoso romance da
inglesa Mary Shelley de 1818, sobre uma criatura que escapava ao criador. Este
filme, produzido pela companhia de Thomas Edison, foi apenas o início de um
grande número de filmes que versam o mesmo tema, ilustrando os perigos de uma
ciência de ambição desmedida. Deve também ser referido o filme Metrópolis
(1927) do alemão Fritz Lang, uma distopia urbana colocada no ano de 2026 que
reflecte sobre problemas laborais e sociais. O filme era mudo, com legendas em
alemão, mas, em contraste com os atrás referidos, já durava 153 minutos
(versões posteriores têm as mais variadas durações).
Dado o apreço de multidões,
o cinema conheceu um crescimento explosivo no seculo XX, passando primeiro do
preto e branco ao sonoro (as primeiras experiências, recentemente descobertas,
datam de 1902, sendo da autoria do inglês Edward Raymond Turner) e depois do mudo
ao sonoro (um marco foi o filme O cantor de jazz, 1927, do americano
Alan Crosland). A televisão, com um longo percurso tecnológico onde avulta a
primeira transmissão electrónica protagonizada pelo americano Philo Farnsworth
em 1927, veio dar uma novo e alargado
palco ao cinema, ao entrar por nossa casa dentro.
A relação mais
conhecida entre cinema e ciência encontra-se, sem dúvida, nos filmes de ficção.
Falamos de ficção científica quando uma história inventada, pelo menos em
parte, assenta de algum modo na ciência e na tecnologia, na linha da Viagem
à Lua de Méliès. Convém lembrar que a ficção científica é tão antiga como a
própria ciência: no dealbar do século XVII. em plena Revolução Científica duas
obras pioneiras do género foram Sonho (escrito em 1608, publicado em
1634), uma viagem à Lua imaginada pelo astrónomo alemão Johannes Kepler, e
Nova Atlântida (escrita em 1623 e publicada em 1626), uma utopia de base
científico-técnica localizada numa ilha do Pacífico pela imaginação de Francis Bacon, jurista e filósofo de ciências
inglês. É possível distinguir vários temas de filmes de ficção científica que
se sucederam a essa obras iniciais: o espaço, onde releva o hipotético tema do
contacto com outras civilizações; os computadores, onde sobressai o receio da eventual
omnipotência das máquinas através da inteligência artificial; e a biomedicina,
onde se destacam os temas dos perigos da genética e das epidemias. Eis uma
escolha necessariamente pessoal de filmes de ficção científica, ordenados dentro dos
três quadros temáticos apresentados, por ordem cronológica da sua estreia:
1- Espaço: 2001
Odisseia no Espaço (1968), dirigido pelo americano Stanley Kubrick, um
clássico do cinema cujo guião foi escrito pelo realizador em conjunto com o
escritor inglês Arthur C. Clarke que mescla
evolução humana, tecnologia espacial, inteligência espacial e vida
extraterrestre; Solaris (1972), filme soviético dirigido pelo russo Andrei
Tarkowski, baseado no romance homónimo do escritor polaco Stanislaw Lem, que
junta o espaço e a psicologia; Encontros
Imediatos de Terceiro Grau (1977), dirigido pelo americano Steven
Spielberg, sobre o contacto dos seres humanos com uma civilização
extraterrestre; Star Wars (1977-2019), uma criação do americano George
Lucas, que se transformou, com oito filmes adicionais de vários autores, num
impressionante fenómeno de cultura popular; Star Trek (1979), dirigido
pelo americano Robert Wise, com base numa criação do seu compatriota Gene
Roddenberry, que começou com uma série de televisão (1966), e que conheceu
múltiplas sequelas tanto no cinema como na televisão; ET: o Extraterrestre (1982),
dirigido pelo já referido Steven Spielberg, que assim voltou ao tema do
contacto humano com alienígenas; Desafio Total (1990), um filme de acção
americano passado em Marte dirigido pelo holandês Paul Verhoeven (curiosamente
formado em Física e Matemática); Contacto (1997), dirigido pelo
americano Robert Zemeckis, com base no romance homónimo do seu compatriota Carl
Sagan (foi a única obra ficcional do
cientista e divulgador científico); Gravidade (2003), um filme britânico
e norte-americano dirigido pelo mexicano Alfonso Cuarón, que conta o drama de
dois astronautas que sofrem uma acidente; A Guerra dos Mundos (2005), outro
filme de Steven Spielberg inspirado no romance de Herbert George Wells (há um
filme de 1953 que tem precisamente o mesmo título); O Dia em que a Terra Parou
(2008), do realizador americano Scott Derrickson, nova versão do filme homónimo
de Robert Wise de 1951, no tempo da guerra fria (na nova versão o perigo maior para
a Terra já não é o armamento maciço, mas sim as alterações climáticas); Avatar
(2009), dirigido pelo americano James Cameron (tal como o realizador de Desafio
Total, também Cameron estudou Física), que aborda a colonização do espaço
em luas de planetas extrassolares; Perdido em Marte (2015), do americano Ridley Scott, sobre a
sobrevivência de um astronauta em solo marciano; e Interstellar (2014),
filme anglo-americano dirigido pelo inglês Christopher Nolan, que
relata a viagem de astronautas que passam num “buraco de minhoca”, um túnel do
espaço-tempo, chegando a um buraco negro (o físico teórico americano Kip Thorne,
especialista na teoria da relatividade e laureado com o Nobel das Física de
2017, foi um dos principais conselheiros do realizador).
2- Computadores: Blade
Runner (1982), dirigido pelo americano Ridley Scott, baseado no romance do
escritor americano Philip K. Dick, Os Androides sonham com carneiros
eléctricos?, que o tempo tornou um clássico; Matrix (1999), filme
australiano e americano dirigido pelas irmãs lana e Lilli Wachowsky que imagina
o mundo como uma grande simulação (conheceu duas sequelas, completando uma
trilogia); A.I. – Inteligência Artificial (2001), outro filme de Steven
Spielberg, baseado num conto do escritor inglês Brian Aldiss, sobre a
possibilidade de uma máquina ganhar características humanas; e Eu Robô (2004),
filme americano dirigido pelo australiano Alex Proyas, baseado em histórias de
robôs do bioquímico, divulgador e escritor americano Isaac Asimov.
3- Biomedicina: Gattaca
(1977), filme americano do neozelandês Andrew Nicol, sobre produção
genética de seres humanos; Despertares (1990), dirigido pela americana
Penny Marshall, baseado numa história clínica real que consta do livro com o
mesmo título do neurologista americano Oliver Sacks; Parque Jurássico
(1993), de Steven Spielberg (um mestre da ficção científica!), baseado no livro
com o mesmo título do americano Michael Crichton, que conta a história de uma
ilha povoada por dinossauros, que foram engendrados por experiências de
genética permitem criar dinossauros (o filme teve várias sequelas); Contágio
(2011), filme do americano Steven Soderbergh sobre o pânico originado por uma
pandemia viral.
A maior parte destes filmes foram grandes êxitos de bilheteira, tendo
moldado o nosso imaginário colectivo. Avatar é o segundo filme mais
visto de sempre, tendo rendido quase três mil milhões de dólares nas
bilheteiras só nos Estados Unidos. O episódio da saga Star Wars de 2015
é o quarto nessa lista enquanto o Mundo Jurássico – o quarto filme da
série iniciada com Parque Jurássico – é o sexto,
Os documentários – os
filmes de não ficção que surgiram no cinema desde o início - foram um género
que chegou aos nossos dias, embora, ao contrário dos filmes de ficção, nunca
tenham conseguido ganhar a atenção de multidões nas salas de cinema. Exemplos
de documentários científicos recentes são a película americana Potências de
Dez (1977), uma curta-metragem dirigida pelo casal de designers Ray
and Charles Eames, que mostra a enorme variedade
de escalas no Universo, desde as partículas subnucleares às galáxias distantes;
Cosmos (1982), uma série de televisão americana de grande êxito criada
por Carl Sagan e pela sua esposa Ann Druyan e dirigida por Adrian Malone (foram
feitas duas sequelas dessa série, ambas narradas pelo astrofísico americano e
divulgador de ciência Neil de Grasse Tyson); Uma Breve História do Tempo
(1992) de Errol Morris, que, apesar de partilhar o titulo do best-seller
de Stephen Hawking, é uma biografia cinematográfica do célebre astrofísico
inglês tolhido pela esclerose lateral amiotrófica; Microcosmos (1996), uma
produção de um consórcio de países europeus dirigido pelos franceses Claude
Nuridsany e Marie Pérennou sobre a vida dos insectos; Planeta Terra (2006),
uma série de documentários da BBC (11 episódios) que mostra a passagem da Terra
e a biodiversidade, narrados pelo naturalista inglês David Attenborough; e Uma
Verdade Inconveniente (2006), dirigido pelo americano Davis Guggenheim, sobre
alterações climáticas, baseada no livro de Al Gore, ex vice-presidente dos Estados
Unidos, com o mesmo título (o filme teve uma sequela em 2017).
Há filmes baseados na
vida e obra de cientistas que são quase documentários, mas não o são
verdadeiramente por incluírem alguns elementos de fantasia, que fazem naturalmente
aumentar a sua audiência. O lado humano – patente em particular na exploração
de aspectos sentimentais – é enfatizado. O dramatismo é um elemento de alguns desses
filmes, em especial quando eles abordam temas de saúde ou temas de guerra. Eis
alguns exemplos de filmes desse tipo, de novo uma escolha pessoal: A Vida de
Louis Pasteur (1935), filme do americano William Diaterle sobre a
descoberta de certas vacinas pelo grande químico e microbiólogo francês e a sua
campanha em prol da saúde pública; Edison
the Man (1940), um filme dirigido pelo americano Clarence Brown que é um relato ficcional do processos criativos
de Edison, com ênfase na invenção do
fonógrafo e da lâmpada eléctrica (o filme não refere o seu papel na
invenção do cinema); Madame Curie (1943), dirigido pelo americano Mervyn
LeRoy, sobre a vida e obra da física e química francesa de origem polaca que
ganhou dois prémios Nobel e do seu marido Pierre Curie, também ele distinguido
com o Nobel (o guião partiu da biografia de Madame Curie, escrita por sua
filha, Ève Curie); Infinity
(1996) um filme do americano Mathew Broderick, que é também o
principal actor, sobre a primeira
parte da vida do físico americano Richard Feynman, um dos autores da
electrodinâmica quântica, que se baseia no livro autobiográfico Está a
brincar Mr. Feynman? e que mostra a sua participação no projeto Manhattan
que, nos anos 40 do século XX, conduziu às primeiras bombas atómicas; Uma
Mente Brilhante (2001), do americano Ron Howard, sobre a vida do
matemático também americano John Nash, o especialista em teoria dos jogos e
laureado com o Nobel da Economia que padecia de esquizofrenia; Teoria de Tudo (2014), do inglês James
Marsh, sobre a vida de Stephen Hawking, com acento no lado amoroso (o roteiro
partiu da Viagem ao Infinito, livro biográfico de Jane Hawking, a
primeira mulher do físico); e O Jogo da Imitação (2014), dirigido pelo americano Morten Tyldum,
sobre a vida e obra do matemático inglês Alan Turing, especialista em
criptografia e inteligência artificial que teve um papel decisivo na decifração
de mensagens nazis durante a Segunda Guerra Mundial (o roteiro baseia-se no
livro Alan Turing: the Enigma, de Andrew Hodges).
A epopeia espacial
iniciada em 1957 com o lançamento do Sputnik e que de certo modo
culminou com a chegada do homem à Lua com a missão Apollo 11 em 1969 é
um tema científico-tecnológico particularmente aliciante para o cinema, em
especial para a indústria cinematográfica norte-americana. Eis alguns filmes que
se enquadram nesse tema e que se baseiam largamente em acontecimentos e
personagens reais: Os Eleitos (1983), dirigido pelo americano Philip Kaufman
sobre os pilotos de teste que foram escolhidos para o projecto Mercury
de voos tripulados; Apollo 13 (1995), do americano Ron Howard, sobre o
drama vivido pelos astronautas que tiveram de lidar com uma avaria na sua nave
durante uma viagem à Lua; Elementos Secretos (2016), do americano
Theodore Melfi, sobre a história de três matemáticas da NASA; e O Primeiro
Homem (2018), filme do americano Damien Gazelle sobre a vida de Neil
Armstrong, o primeiro astronauta a pisar o solo lunar.
Na era digital, o
cinema passou progressivamente a tornar-se digital, primeiro o áudio e depois a
imagem. Algumas das primeiras projecções digitais foram efectuadas em 1999 em Nova Iorque e Los Angeles para
oferecer ao público o primeiro filme da série Star Wars. No século XX o
cinema digital conheceu um crescimento enorme. Uma das consequências do
desenvolvimento de tecnologias de vídeo digital foi a sua democratização em câmaras fotográficas ou, mais recentemente, nos
telemóveis que toda a gente usa. A Internet passou a ser, com o YouTube (2005, comprado em 2006 pela Google) e outras
plataformas, o lugar maioritariamente ocupado por conteúdos em vídeo.
Modernamente, grandes empresas
de distribuição global de filmes em streaming (uma técnica que pôs
progressivamente de lado os CD e Blu-rays) usando a Internet como a HBO
(criada em 1972 como canal de TV pago) e a Netflix (fundada em 1997) têm
surgido como fortes concorrentes do cinema tradicional, ao proporcionarem a
visão do cinema em casa. Vários documentários e filmes de ficção científica encontram
aí uma plataforma privilegiada para encontrarem larga audiência. Embora o meio
de transmissão seja diferente, os temas são os mesmos do formato tradicional:
representações da criação ou da aplicação da ciência, no caso dos documentários,
e representações imaginárias inspiradas pela ciência, onde não podem deixar de aparecer
os receios que ela suscita.
Ninguém previu, quando o cinema surgiu há pouco mais de um século – os Lumière não o previram –, o espectacular caminho que ele ia trilhar. A ciência originou uma criatura que fugiu ao criador, embora os dois continuam por vezes, para nosso prazer, a encontrar-se.
Ninguém previu, quando o cinema surgiu há pouco mais de um século – os Lumière não o previram –, o espectacular caminho que ele ia trilhar. A ciência originou uma criatura que fugiu ao criador, embora os dois continuam por vezes, para nosso prazer, a encontrar-se.
Estudo em Casa
Acabo de ver este vídeo sobre uma aula de “Estudo em Casa”, dedicada à disciplina de Educação Física do Enino Básico.
Começo por considerar tratar-se de uma “fak new” para não cair no embuste de ter o falso por verdadeiro.
O exemplo que passo a relatar foi por mim vivido e é “verdade verdadeira”!
Em tempo remoto, que a minha velhice permite a adjectivação, de aluno do então 7.º ano liceal (correspondente ao actual 12.º ano do ensino secundário), e numa época em que os professores habilitados pelo INEF não chegavam para as encomendas, o ministério das aulas de Educação Física eram comparticipadas com médicos que acumulavam com os seus magros proventos esse dinheiro por fora, numa altura em que a medicina não era mercantilizada, mas como um sacerdócio do tipo João Semana, um dinheirito dava muito jeito.
“In illo tempore”, as aulas de Educação Física, de um determinado liceu lisboeta, eram ministradas em acumulação por um esculápio baixo e com barriga proeminente de volframistas que fumavam charutos cubanos, durante a II Grande Guerra Mundial, postava-se ele à porta do ginásio, vestido com um grande e coçado sobretudo, batendo palmas enquanto chamava pelos alunos mais renitentes: “Meus senhores (nessa altura já éramos homenzinhos!) façam o favor de entrar para a aula começar”!
“In illo tempore”, as aulas de Educação Física, de um determinado liceu lisboeta, eram ministradas em acumulação por um esculápio baixo e com barriga proeminente de volframistas que fumavam charutos cubanos, durante a II Grande Guerra Mundial, postava-se ele à porta do ginásio, vestido com um grande e coçado sobretudo, batendo palmas enquanto chamava pelos alunos mais renitentes: “Meus senhores (nessa altura já éramos homenzinhos!) façam o favor de entrar para a aula começar”!
Invariavelmente, obtinha como resposta: “Fazer a xaropada da ginástica do fole (ou seja, os alunos deitados de costas em bancos suecos, obedecendo à voz do professor inspire-expire) para ficarmos gordos e baixos como o senhor doutor?”
Nesse tempo anedótico embora verdadeiro, os professores para exemplificação dos exercícios mais complexos que não dominavam por incapacidade permanente ou ocasional, escolhiam um dos alunos com maior aptidão para exemplificar os exercícios a ministrar.
No caso que aqui é reproduzido em vídeo, um aluna matulona que mal se sustinha em equilíbrio instável, ainda que com o apoio das mãos no tampo da secretária da professora que vê o vídeo de raspão, repetia, “ad nauseam”, sempre o mesmo exercício de equilíbrio.
E isto é tanto mais grave por a hipocinética da quarentena exigir, quer a adultos quer a crianças, exercícios de natureza muscular e cardiopulmonares.
Finalmente, esta minha “crítica” tem como finalidade, chamar a atenção de pais das chamadas crianças com bicho carpinteiro, mas com pouca habilidade motora, que feitas macaquinhas de imitação, se possam estatelar no chão partindo um osso exigindo ser engessadas tendo que, como tal, recorrer ao SNS assoberbado com pacientes vitimados pelo coronavírus.
Como nos ensina a sabedoria popular – “vox populi, vox dei” – mais vale prevenir do que remediar”.
Aqui fica, portanto, o aviso preventivo!
Aqui fica, portanto, o aviso preventivo!
O GRANITO NA GEOLOGIA E NA CULTURA PORTUGUESAS
Comecemos por dizer que a palavra granito (termo que alude à textura granular da rocha) surgiu em Itália, em 1596, introduzida por Andrea Caesalpino (1519-1603), radica no latim granum, que significa grão.
Praticamente, não há quem, entre nós, não conheça o granito. Grande número de portugueses ainda dizem que é uma rocha formada por quartzo, feldspato e mica e a maioria dos nossos rapazes e raparigas saem da escola a saberem que é uma rocha magmática plutónica e um pouco mais, equipados com uma informação estereotipada e acrítica, simplesmente memorizada para vencerem a fasquia do exame final, fruto de um conjunto de deficiências que, desde sempre, venho denunciando.
Estou aqui a falar de granito “lato sensu”, isto é, no seu sentido mais amplo, ou seja, o conjunto das rochas afins do verdadeiro granito tal como os petrógrafos o definem (aquele em que o feldspato é essencialmente sódico (albite) ou potássico (ortóclase ou microclina)).
Com efeito, são várias as rochas a que o vulgo chama granito (pois que em amostra de mão e sem recurso a equipamentos adequados, como é, por exemplo o microscópio petrográfico) e que diferem do dito verdadeiro, em especial, na natureza mais cálcica dos feldspatos, aqui designados por plagióclases. Os petrógrafos chamam-lhe granitóides (semelhantes a granito) e entre eles deixo aqui para quem quiser saber, uma breve referência a dois deles.
O granodiorito diferente do granito apenas por ser mais pobre em silício, potássio e sódio, e mais rico em cálcio, ferro de magnésio. Assim, pode ter ou não feldspato potássico (microclina e/ou ortoclase), mas tem sempre uma plagióclase ligeiramente cálcica (oligóclase). Como minerais escuros (ferromagnesianos) contêm geralmente biotite e/ou horneblenda.
O quartzodiorito difere do granito porque contém menos quartzo (menos de 10%, contra os 20 a 40% do granito) e uma plagioclase um pouco mais cálcica (andesina). Como mineral escuro e horneblenda é mais frequente que a biotite.
Posto este esclarecimento, podemos dizer que o granito “lato sensu” é a rocha predominante na crosta continental, ou dito de outra maneira, na ossatura do substrato rochoso dos condimente (em oposição ao basalto “lato sensu” que assume essa predominância no substrato rochoso dos fundos oceânicos). Portugal continental não é excepção. Com efeito o granito abunda no nosso país, em especial, no Minho. Trás-os-Montes e nas Beiras tendo ainda larga reperentação no Alto Alentejo.
Citãnia de Briteiros |
São desta rocha as velhas muralhas, os muros e as paredes de pedra solta (em choças) de muitos castros e povoados surgidos por volta de 1200 anos a.C., com a penetração do território nacional pela civilização Celta, num período, grosso modo, coincidente com a Idade do Ferro. São desta época as frustes representações escultóricas em granito, conhecidas entre nós por “porcas”, como a Porca de Murça, abundantes no Norte do país. Da mesma rocha foi talhada a estátua do Basto, de Celorico de Basto, datada do século I a.C.
Durante os cerca de cinco séculos de ocupação romana, os hábeis arquitectos e construtores, aperfeiçoados nessa importante e vasta civilização, usaram o granito no levantamento de muralhas, empedramento de estradas, construção de pontes, talhe de cantarias urbanas que resistiram ao tempo, e que hoje, volvidos mais de dois mil anos se converteram em conhecidos pólos de atracção turística.
Igreja dos Clérigos - Porto |
Na Idade Média, muitos dos castelos árabes e das igrejas e catedrais românicas e góticas do Centro e Norte de Portugal tiveram no granito aparelhado, a pedra por excelência. Do mesmo modo, este foi a pedra de cantaria da construção civil urbana e rural, abundante e característica desta grande região do país.
Durante o Renascimento, o ponteiro e o cinzel de escultores continuaram a dar forma ao granito, sendo de destacar, como exemplo destas artes e deste tempo, a notável Igreja da Graça, em Évora, fundada em 1511, com projecto do arquitecto da Casa Real Miguel de Arruda. No Porto, a arquitectura religiosa, desde a Sé, da primeira metade do século XII, às igrejas barrocas, com destaque para a Igreja e Torre dos Clérigos, do arquitecto italiano Nicolau Nasoni (1691-1773), fez uso do granito, a rocha que constitui o subsolo local e que caracteriza a monumentalidade da capital do Norte.
A. Galopim de Carvalho
sábado, 25 de abril de 2020
Evocação de Bento de Jesus Caraça no Rescaldo das Cerimónias de 25 de Abril
Acabo de ver o vídeo da
intervenção de Miguel Ventura nas cerimónias de 25 Abril.
A cara do Ferro Rodrigues, na
Assembleia da República, fez-me temer correr ele o risco de ser vítima de uma apoplexia tal eram as suas bochechas trémulas de raiva por não poder mandar calar, como é seu uso e abuso, o deputado do Chega! Esta situação lembrou-me um programa televisivo
chamado "Isto só visto!"
Já não sei onde comentei, ingenuamente, que as monumentais escadarias de São Bento
estariam pejadas de gente havendo o perigo de confrontos entre os defensores
destas festividades e os seus opositores numa altura em que as famílias, sejam
de esquerda, do centro ou de direita, choram os seus entes queridos mortos pela
pandemia que assola o país de lés-a-lés.
Precipitação ou mesmo erro meu porque estas escadarias seriam palco da descida pelos deputados e convidados para a cerimónia em que
as desistências foram uma parte muito substancial. Errei, repito e assumo o erro, colhendo exemplo
no falecido Bento de Jesus Caraça que
cito de memória: “Não temo o erro porque estou sempre pronto a emendá-lo”!
Lição de humildade de um falecido
e notável professor universitário, resistente antifascista do Partido Comunista
que devia servir (mas não serve!) de
lição aos políticos que afirmam nunca errar, lavando as mãos em bacia de
Pilatos os erros que cometem assiduamente
com ar de senhores da Verdade, embora Nietsche nos tenha dito “não haver factos eternos, como não há
verdades absolutas”.
Aliás, como o reconheceu, em
finais do século passado, Karl Popper ao derrogar os mitos da dita ciência dos
nossos dias!
sexta-feira, 24 de abril de 2020
"O ensino on-line será crucial no futuro, os professores deveriam esforçar-se mais"
Saiu ontem no jornal El País uma entrevista ao diretor de Educação da OCDE, Andreas Schleicher, cujo tema é, evidentemente, o estado actual e futuro do ensino e da aprendizagem em virtude da COVID-19. O país de referência é Espanha, mas poderia ser Portugal, apresentados ambos, em várias ocasiões, como exemplos do que, na perspectiva dessa organização, não deve acontecer nos sistemas educativos.
O modelo "educativo" que perpassa na entrevista é o de "produção de capital humano". Modelo que, se nada de substancial for feito, ganhará terreno nos tempos mais próximo, acentuando o redireccionamento da escola para que sirva directa e eficazmente o mercado de trabalho, de modo a beneficiar uma certa economia. E, para tal, é preciso que as empresas ganhem um novo protagonismo, superior àquele que já têm nos sistemas de ensino públicos. Isto deveria preocupar-nos, tanto quanto a COVID-19. É do futuro da educação que falamos (e, por inerência, da humanidade), submetida a um fim que não é, nem pode ser, o seu.
O modelo "educativo" que perpassa na entrevista é o de "produção de capital humano". Modelo que, se nada de substancial for feito, ganhará terreno nos tempos mais próximo, acentuando o redireccionamento da escola para que sirva directa e eficazmente o mercado de trabalho, de modo a beneficiar uma certa economia. E, para tal, é preciso que as empresas ganhem um novo protagonismo, superior àquele que já têm nos sistemas de ensino públicos. Isto deveria preocupar-nos, tanto quanto a COVID-19. É do futuro da educação que falamos (e, por inerência, da humanidade), submetida a um fim que não é, nem pode ser, o seu.
Um dos últimos estudos da OCDE indica que um em cada 10 estudantes não tem uma mesa para estudar na sua casa. Qual é a melhor solução para os alunos mais desfavorecidos? É passar de ano como o resto de seus colegas? É uma pergunta complicada. Acho que fazer os jovens repetir o ano é provavelmente a pior solução, porque, além de perder um ano, isso vai estigmatizá-los. Os sistemas educacionais devem encontrar forma de redobrar seus esforços e analisar como é que os alunos com menos recursos podem continuar a aprender. Há uma grande expectativa nos professores, são eles os que têm de agir como mentores e (…) manterem-se em contacto permanente com os seus alunos.
Pode ser problemático que em Setembro [muitos] alunos não tenham assimilado bem os conhecimentos do curso anterior? Em Setembro a aprendizagem e o ambiente das salas de aula serão mais diversos do que em qualquer outro ano (…)
A reabertura das escolas ocorre a diferentes velocidades na Europa. Os especialistas insistem em que a cada mês a desigualdade cresce exponencialmente. O custo social do fechamento das escolas é dramático (…) não é a cada mês, é a cada dia. Inevitavelmente, a desigualdade vai aumentar e, por isso, precisamos de encontrar fórmulas para mitigá-la: os alunos terão que dedicar mais horas ao estudo, será preciso envolver as famílias… Não há uma resposta clara. As famílias com mais recursos poderão compensar com aulas extracurriculares pagas do seu bolso. O que as famílias querem para seus filhos é o que o governo terá que assegurar para todos.
Levando-se em conta a crise económica que está começando, é realista pensar que os governos vão priorizar o orçamento educacional para assegurar esse reforço? O futuro dos países depende da educação, as escolas de hoje serão a economia de amanhã. Desde que começou a pandemia que o caso da China me impressionou. Uma das suas prioridades foi a educação. O Governo lançou uma plataforma gratuita de aprendizagem na nuvem com 7.000 servidores e 90 terabytes de banda larga, que permite que 50 milhões de alunos se conectem simultaneamente. Apostar na educação é uma decisão que toda a nação deveria tomar.
É uma questão de dinheiro ou de vontade política? Efectivamente, essa medida custou muito dinheiro, e grande parte dele foi doado por companhias tecnológicas. Há dois pontos de partida que são importantes. Desde o primeiro dia, todos os professores na China se envolveram com o uso dessa plataforma. Não se limitaram a dizer aos alunos que a usassem, telefonaram-lhes diariamente para entenderem as suas necessidades. Prestou-se muita atenção aos alunos sem acesso à internet, que receberam materiais didácticos, dentro de um plano organizado pelas escolas.
Por que é que em países como a Espanha e a França não se tentou lançar esse tipo de plataformas, se as já existentes não têm capacidade suficiente? O governo espanhol tem feito um grande esforço para usar ferramentas digitais e tem agido bem na procura de aliados da indústria tecnológica. Acredito que o mais difícil para eles tenha sido envolver os docentes, é aí onde provavelmente os esforços devem ser concentrados, em conseguir que os professores sejam parte activa nesta mudança. O ensino on-line será crucial no futuro do ensino, os professores deveriam esforçar-se mais.
Qual é sua recomendação para que o trabalho nestes dias seja eficiente? Como professor, neste momento, não há como resolver os problemas sozinho, só em equipa. Nisso a Espanha tem muito trabalho a fazer. Segundo os resultados do relatório Talis, os docentes espanhóis estão entre os que menos colaboram entre si, trabalham de forma isolada em sua sala de aula. Só 24% declaram participar numa rede colaborativa (...) frente aos 40% dos países da OCDE. É importante respeitar a autonomia dos docentes, mas neste momento é preciso fomentar a cultura colaborativa e não esperar instruções dos governos, assumir a responsabilidade da situação e contactar colegas para lançar medidas inovadoras. Os líderes da escola têm de se conectar com os professores, criar comunidades e estabelecer relações entre escolas. Um dos resultados do PISA é que, à escala mundial, 50% dos professores não se sentem confortáveis com o ensino digital.
Os dados do Talis dizem que apenas 59% dos directores desenvolvem acções para conseguir a colaboração entre docentes. Quem deve mandar essa mensagem? A crise amplifica a necessidade de estarmos conectados. Essa mudança deve partir da própria comunidade educativa (…). O governo está muito longe de ter um efeito no que acontece nas salas de aula. Os professores na Espanha continuam muitos dependentes do que a Administração dita.
Os docentes deverão modificar sua forma de ensinar em Setembro? Absolutamente. O grande preço que vamos pagar pela crise não é só a perda de aprendizagem mas também a insatisfação dos jovens (…). [As escolas] terão de os escutar mais, detectar a necessidade de cada um e desenhar novas formas de aprendizagem para se encaixar em diferentes contextos pessoais. Não se pode voltar como se nada tivesse acontecido.
Como se deve avaliar durante o confinamento? Devemos realizar a máxima avaliação possível (…) é preciso usar ferramentas on-line para ver se [os alunos estão] a aprender. Sou muito optimista e acredito que podemos ser muito criativos com novos formatos de avaliação.
Deve-se manter a avaliação nestes meses de confinamento, ou focar o apoio emocional? Talvez seja preciso mudar a natureza da avaliação, mas insisto que é importante mantê-la para poder acompanhar a evolução dos alunos (…) e também é uma forma de conseguir que não se desconectem.
Criticou que não haja uma maior colaboração público-privada para confrontar a crise educativa pela covid-19. A inovação educacional exige a colaboração entre o público e o privado, e na Espanha há uma cultura de confrontação entre o público e o privado. Parece que a educação é só coisa do governo, e é preciso que a sociedade se envolva e contribua com ideias criativas. As empresas também têm que tomar partido e propor soluções, por exemplo, para as práticas dos alunos de formação profissional.
"A única coisa que muda é o meio: de presencial passa a virtual"
Há décadas que uso o trabalho do italiano Francesco Tonucci como elemento de reflexão-humor sobre a escola. Sendo professor e pedagogo, Tonucci é mais conhecido como desenhador/cartoonista que assina livros como Com olhos de criança (aqui) e Criança se nasce (aqui), tal como impulsionador do projecto
Cidade das Crianças (aqui).
Seria, portanto, inevitável pedir-lhe opinião sobre o modo de educar durante e após a quarentena desencadeada pela COVID-19. Em entrevista aos jornais La Nacion ("Si el virus cambió todo, la escuela no puede seguir igual, aqui) e ao El País (“Não percamos esse tempo precioso com lição de casa”, aqui), afirma que ela veio evidenciar os problemas da escola mas também proporcionar uma oportunidade para a mudarmos. Mas não é isso que está a acontecer: mudou-se o meio de a concretizar (de presencial a virtual), mas o modo de a conceber mantém-se.
Ainda que discorde de pressupostos de que Tonucci parte e de estratégias pedagógicas que propõe, subscrevo por inteiro o seu questionamento ao tão elogiado meio virtual. E quando se desce no nível de escolaridade mais pertinente vejo esse questionamento.
Eis algumas das ideias que apresenta nas mencionadas entrevistas.
O vírus fez mudar tudo. Este é o ponto de partida. Se mudou tudo, a escola não pode continuar igual ao que era. Contudo, esta instituição quer mostrar que pode continuar com aulas e trabalhos. A única coisa que muda é o meio: de presencial passa a virtual. A crianças continuam sentadas, a ouvir as lições.
É preciso perguntar: as crianças devem estar tantas horas seguidas em frente a um ecrã? São todas capazes de fazer os trabalhos que se lhes pede? Têm todas elas a tecnologia adequada?
Se as pessoas estavam satisfeitas com a escola, entende-se que não queiram mudar nada. Mas é preciso que mude, tem sobretudo de ter em atenção as crianças pois tudo se decide de fora. Há regulamentos, programas, manuais mas nenhum destes instrumentos interroga as crianças sobre o que querem fazer, quais são os seus desejos, aptidões e capacidades.
Se a escola que temos se pode transpor para casa, aproveitemos a casa: que seja considerada um laboratório e os pais assistentes/colaboradores dos professores, convertendo cada espaço, desde a cozinha até uma gaveta de fotografias velhas, em oportunidades para aprender algo de novo.
A escola vivia em constante conflito com a família, agora, a escola faz-se na família. É necessário que os pais ajudem os filhos a compreender e a conhecer, por exemplo, como usar máquinas, pôr roupa a secar, passar a ferro... A cozinha é um laboratório de química, aí se pesam e misturam os ingredientes, se cozinham usando vários métodos.
A escola poderia propor às crianças que preparassem um prato ou um molho segundo o costume de cada família, que construíssem a sua história de vida a partir de fotografias, que estudassem a planta da sua casa como forma de aprender geometria, que fizessem um diário ou vídeo (pessoal, com direito a preservar a intimidade) uma vez que estão a passar por uma experiência especial.
Também poderia incentivar o amor pela leitura: o prazer e a necessidade de percorrer livros que estejam em casa ou que a escola faça chegar a casa, não para as crianças fazerem resumos, fichas, mas para fruírem a leitura.
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