quinta-feira, 11 de junho de 2015

"A pseudociência assenta sempre na autoridade de alguém"

Minha entrevista à jornalista Adelaide Oliveira, publicada na MGF Notícias, revista da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar.

MGF Notícias – O seu livro “Pseudociência” ajuda a distinguir ciência de pseudociência. De que forma?

David Marçal – A diferença fundamental entre ciência e pseudociência é que a ciência assenta em provas reprodutíveis, que podem ser confirmadas por outros grupos de investigação de modo independente. Os resultados são divulgados e as conclusões apresentadas de modo transparente, de modo a tornar possível a sua reprodutibilidade. Por outro lado, a ciência não assenta na auto- ridade de ninguém, nem numa linguagem específica que soe a científica. Depende das provas. O físico Richard Feynman costumava comparar a pseudociência ao “culto da carga”, um conjunto de rituais que os habitantes das ilhas do Pacífico começaram a praticar no final da II Guerra Mundial quando os aviões dos norte-americanos deixaram de aterrar nas bases militares desativadas. Depois da guerra, os nativos construíram pistas improvisadas no meio da selva, com estradas de terra batida e cabanas para o controlador aéreo, um indivíduo com metades de coco enfiadas na cabeça. Ou seja, copiavam todos os procedimentos dos militares norte-americanos, mas havia uma coisa que falhava: os aviões não aterravam.

A pseudociência faz a mesma coisa. Procura copiar toda a estética da ciência, mas há alguma coisa que falha. Neste caso, a razão pela qual os aviões não aterram é porque faltam as provas.

A pseudociência usa termos científicos para lhe dar credibilidade, as autoridades e a criação de controversas artificiais. Pode dar-nos um exemplo de como os médicos são utilizados?

Os médicos são figuras de autoridade. As pessoas confiam no que eles lhes dizem. Repare que até têm o poder de mandarem as pessoas despirem-se! Na pseudociência, que procura a validação através de figuras de autoridade, os médicos são um dos naipes do baralho. Por vezes, são também ex-cientistas da NASA, ou cientistas no ativo, como é o caso do suposto inventor das pulseiras power balance.

Em relação à Medicina, o caso do Dr. Andrew Wakefield é um dos mais tristemente famosos. No final dos anos 90 publicou um artigo, também tristemente famoso, em que afirmava existir uma associação entre a vacina tríplice e o autismo. Esse artigo consistia num conjunto de 12 casos clínicos de crianças atendidas num hospital inglês. Segundo as histórias clínicas, relatadas no artigo, os primeiros sintomas de autismo tinham surgido duas semanas após a toma da primeira dose da vacina tríplice.

O artigo era uma fraude a todos os níveis. O médico recebeu uma “avença” de 400 mil libras de um escritório de advogados para ajudar a construir o processo contra as empresas que fabricavam as vacinas e, no âmbito de uma investigação jornalística, veio-se a descobrir que os dados tinham sido falsificados. Os registos hospitalares não coincidiam com os dados publicados no artigo. No entanto, este artigo fraudulento acabou por alimentar o movimento anti-vacinas moderno. Andrew Wakefield insistiu no erro e o processo, devido ao seu enorme prestígio, demorou cerca de dez anos a esclarecer-se cabalmente. Completamente desacreditado e impedido de exercer Medicina no Reino Unido, acabou por ir para os Estados Unidos, onde continua a ser um dos gurus dos movimentos anti-vacinas, a publicar livros e a dar conferências.

O Tamiflu foi também um caso de pseudociência?

A indústria farmacêutica também tem um cadastro considerável. Aliás, os partidários das medicinas alternativas usam frequentemente a indústria farmacêutica para afirmar que se pode colocar tudo no mesmo saco e que a falta de fundamentação científica das suas práticas pode ser comparável às falhas da medicina convencional. Contudo, o médico Ben Goldacre, autor do bestseller mundial “Ciência da Treta”, costuma dizer a este respeito que, apesar de haver falhas na aviação, isso não significa que os tapetes voadores sejam uma boa ideia.

Mas, de facto, o caso do Tamiflu é um exemplo de má conduta científica. A Roche escondeu uma série de ensaios clínicos e apenas divulgou os que lhe eram mais favoráveis. Quando se avalia a segurança e a eficácia de um determinado tra- tamento, o padrão para essa avaliação são as revisões sistemáticas da literatura e as meta-análises. Quando, após cinco anos de insistência, os investigadores da Cochrane Collaboration revelaram os dados, ficámos a saber que o Tamiflu não reduz as complicações da gripe. Apenas diminui os sintomas em cerca de seis horas e à custa de bastantes efeitos secundários.

Se estivessem na posse destes dados, os governos dos vários países que compraram grandes quantidades de Tamiflu provavelmente não o teriam feito. Mas isto faz parte da cultura da indústria farmacêutica e mesmo das autoridades reguladoras. Existe uma certa legitimidade em esconder a informação por razões de interesse comercial, o que é muito perverso, porque o interesse que deve prevalecer é o dos doentes, assim como o direito dos médicos a terem acesso à melhor informação para poderem tomar decisões em relação aos tratamentos.

No seu livro fala da regulamentação das terapias alternativas, acupuntura, medicina quântica e homeopatia, entre outras matérias. Porque é que diz que a homeopatia não é uma ciência?

A homeopatia é uma medicina alternativa que não tem qualquer fundamento científico. Essencial- mente, é uma prática médica inventada há 230 anos pelo médico Samuel Hahnemann, que se baseia em dois princípios: o semelhante cura o semelhante (ou seja, uma substância capaz de causar um sin- toma numa pessoa saudável pode tratar esse sintoma numa pessoa doente) e quanto mais diluída é uma substância, mais ela cura. Ambos são princípios delirantes. Fazem lembrar vagamente o princípio das vacinas mas, na realidade, não têm nenhuma relação. E qualquer coisa pode ser um remédio homeopático, desde leite de cadela, a abelhas esmagadas ou arsénico.

Os homeopatas diluem extraordinariamente os remédios homeopáticos até não sobrar nenhuma molécula da substância original e argumentam ainda que a água tem memória, depois de umas panca- dinhas entre cada diluição numa superfície dura e flexível, o que não tem qualquer fundamento.

De onde é que veio essa ideia das pancadinhas?

O Samuel Hahnemann convenceu-se de que os remédios homeopáticos eram mais eficazes nos doentes que moravam mais longe. Pôs-se a pensar sobre o motivo e chegou à conclusão de que a diferença era a viagem a cavalo que fazia para entregar os remédios e os frasquinhos que iam a abanar em cima do cavalo. Então, concluiu que tinha que dar as tais pancadinhas para simular a viagem do cavalo.

Mas é preciso dizer que a homeopatia, há 230 anos, não era uma ideia assim tão má! Por essa mesma época, a medicina convencional era uma péssima ideia. Consistia em sangrias e coisas do género...

Devo recordar que a homeopatia ganhou um grande impulso na sequência de um surto de cólera numa cidade alemã. Alguns doentes foram levados para o hospital homeopático, outros para o hospital normal, e a taxa de sobrevivência no hospital homeopático foi muito superior. Mas, no hospi- tal convencional, os doentes eram sangrados e no outro não só não os sangravam como ainda lhes davam água com açúcar para beberem. Hidratavam-nos – de alguma forma – e por isso sobreviveram mais.

A homeopatia é isso? Água com açúcar?
Os remédios homeopáticos são placebos. Mas hoje em dia temos tratamentos fisiológicos para a maioria das condições clínicas que são preferíveis aos placebos. Não é ético, na minha opinião, oferecer homeopatia às pessoas, dizendo-lhes que tem um efeito que não possui. De facto, na homeopatia, não há nuances. Não funciona melhor do que o placebo e todos os remédios são iguais, porque todos são água com açúcar.

E o que nos diz da acupuntura?

Se queremos comparar a acupuntura à medicina convencional – e esse é sempre o ponto de partida – teremos de ver como se comporta, em termos da demonstração da sua eficácia e segurança em ensaios clínicos.

Na realidade, não se comporta muito bem. Por um lado, é muito difícil fazer ensaios clínicos com acupuntura, na medida em que é difícil ter um grupo de controlo. Não podemos comparar um comprimido de açúcar com um tratamento de acupuntura porque os placebos não são todos iguais. Tratamentos mais dramáticos produzem um efeito placebo superior. Aliás, dois com- primidos de açúcar têm um efeito placebo superior a um só; um comprimido colorido tem mais efeito do que um comprimido branco e quanto mais caros, melhor.

O efeito placebo consiste numa sensação de melhoras, subjetiva e transitória, em relação a uma determinada condição clínica. É nessa subjetividade que joga o placebo. A acupuntura é um tratamento dramático porque espeta agulhas nas pessoas e temos de ter algum cuidado quando fazemos ensaios clínicos, na medida em que a comparação terá de ser feita com algo igualmente dramático.

O método que considero mais credível é uma acupuntura placebo feita com agulhas retráteis, que acabam por não espetar mas dão essa sensação.

Nesses ensaios clínicos, para a maioria das condições clínicas, a acupuntura verdadeira não conse- gue demonstrar a sua eficácia de uma forma inequívoca. Há outros casos em que parece que há leves indicações, mas também não são muito convincentes. Sem surpresa, a acupuntura parece resultar melhor em condições de avaliação subjetiva como a dor, por exemplo. A questão não é se a acupuntura pode ajudar ou não nalgumas situações clínicas, mas se tem provas do seu funcionamento que sejam equivalentes às da medicina tradicional. E isso não acontece, quer em relação à acupuntura, quer em relação a qualquer outra terapia alternativa.

E quanto à medicina quântica, considera que é puro delírio?

A medicina quântica parte de ideias pré-científicas delirantes, muito antigas na verdade, que agora são transformadas com uma roupagem de modernidade e uma aura que não se percebe mas, por isso mes- mo, deve ser verdadeira! A física quântica, que descreve o comportamento de partículas mais pequenas do que o átomo, é muito contra-intuitiva. O modo como as partículas sub-atómicas se com- portam não tem nada a ver com o modo como nós nos comportamos. Mas isso aplica-se ao mundo muito pequeno, que não tem nada a ver com o mundo em que nós vivemos.

Os gurus quânticos fazem essa extrapolação extraordinária e, basicamente, só dizem disparates.
A verdade é que a comunidade de loucos quânticos não tem nada a ver com a física quântica verdadeira, mas são muito divertidos. E veja como a pseudociência não se poupa a esforços para copiar a ciência. Chegam a copiar as infraestruturas formais da academia. Em Honolulu (Havai) criaram uma universidade onde oferecem doutoramentos e mestrados em medicina integrativa e também um MBA em negócios quânticos, ou seja, ensinam os alunos a ganhar dinheiro com as aldrabices.

A universidade funciona por correspondência, não é material, o que tendo em conta a filosofia da medicina quântica, até é coerente. Mas enviam certificados materiais, de doutoramento, para casa do aluno, que poderá colá-los na parede do seu consultório, como argumento de autoridade.

Na realidade, isso é o que também faz a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), quando se dispõe a enviar certificados de homeopatas e de acupuntores para que esses profissionais os possam colar na parede como praticantes legítimos dessas atividades...

Na sua opinião, essa regulamentação é um desastre. Porquê?

É mais um argumento de autoridade que vai induzir nas pessoas a ideia de que aquelas terapias têm um fundamento científico quando isso, pura e simplesmente, não é verdade.

Sou crítico porque a legislação publicada não protege, de forma nenhuma, o doente. Não há nada que permita responsabilizar, adicionalmente, os terapeutas alternativos pelas consequências dos seus tratamentos, más práticas ou práticas irresponsáveis.

Na discussão do Orçamento de Estado para 2015, o Bloco de Esquerda apresentou uma proposta de alteração ao Código do IVA em que propunha a sua isenção para estas terapias alternativas. Felizmente, foi chumbada, mas isto será o primeiro passo para reivindicar a comparticipação de tratamentos alternativos através do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Aliás, essa porta já foi aberta na Região Autónoma da Madeira, com a aprovação recente de legislação nesse sentido e a ideia será que as terapias alternativas sejam introduzidas e comparticipadas pelo SNS.

Pessoalmente, considero que não devemos utilizar os recursos financeiros do sistema de saúde para financiar medicinas sem fundamento científico.

Adelaide Oliveira

3 comentários:

Francisco Domingues disse...

Parece-me que, neste caso das medicinas alternativas, os cientistas têm um papel preponderante no influenciar as autoridades decisoras - Ministérios da Saúde e das Finanças - para que não introduzam, no SNS, bónus ou comparticipações nos gastos com aquelas medicinas (consultas e medicamentos). Quando muito que, no IRS, apareçam nos gastos com a saúde taxados a 23% de IVA. E incluir tb a sensibilização das Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos. É enviar vários mails, meus senhores cientistas, para estas entidades! "Água mole em pedra dura..."

Migx disse...

Nao sei se estou a perceber bem, ou se exprimiu-se mal, uma vez que, conheço pessoas que fazem sessoes de acupuntura a imenso tempo e obtiveram melhoria significativa na qualidade de vida, no respeita as dores cronicas.
Eu proprio, que não vou descrever a quantidade de dores cronicas na coluna toda e afeta a cabeça, que tomo medicaçao diaria para as dores (ja é medicacao forte, uma vez que, a mais de 3 anos que sofro de dores diarias, por vezes quase incapacitantes).
Conheços casos que se viram obrigados a deixar de trabalhar e viver apenas do oxigenio que respiram, devido as suas doenças debilitantes progressivas e que por culpa da falta de apoios sociais, nao podem, nem puderam, recorrer a sessoes de acupuntura, por questoes economicas e assim terem ainda em alguns casos, a possibilidade de continuar a trabalhar por mais algum tempo, ate que os doentes de doenças cronicas progressivas, como fibromialgia, cervicalgia, lombalgia e muitas, fossem reconhecidos como doentes que necessitam de mais do que o oxigenio para sobreviver e nao cair em desespero e porem termo a vida.
Reconhecem as doenças , mas nao reconhecem os doentes que as teem, e assim, ser-lhes dado o apoio de que necessitam (tratamentos e incapacidades variaveis consoantes cada caso)... Mas ... Isto afinal ate foi alterado (finalmente tiveram vergonha), e neste momento ja passam a reconhecer e avaliar os doentes com este tipo de doenças.
Vamos ver como corre...
Resumindo: Apoio, comparticipaçoes, isencoes, em IRS gastos relacionados, avaliacao de percentil de incapacidades, gastos com transporte para deslocacoes a sessoes e consultas, subsidio de apoio para casos em que exista alguma dependencia de terceiros...
E assim meus amigos, teriamos uma "utopia" social, mas justa !!
CARPE DIEM

Migx disse...

Nota: Esqueci de referir que recentemente, iniciei tratamento via acupunctura e notei e noto, melhorias significativas, a nivel de dores, que ja nao sao tao intensas e tenho tido dias que nao sinto necessidade e evito tomar medicaçao, embora as dores se manifestem, mas ja me habituei a viver assim, quando nao sao muito intensas e debilitantes.
Melhorias tambem de foro psicologico e stress.
Fiz apenas 2 sessoes e vou continuar, assim que a parte financeira me permita faze-lo.

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