segunda-feira, 20 de abril de 2015

MANIFESTO PARA A CIÊNCIA EM PORTUGAL


Minha recensão do livro de José Mariano Gago publicada em 1991 no Público:

É manifesto que não há tradição científica em Portugal.  Uma vez que essa tradição quase não existe quase nos resignamos a aceitar que também não haja discussão sobre a ciência.

O "Manifesto para a Ciência em Portugal" de José Mariano Gago, professor universitário, presidente da direcção do Laboratório de Instrumentação e Partículas e ex-presidente da Junta Nacional para a Investigação Científica, vem desempenhar, e bem!, dois papéis:

- fazer um retrato fiel da situação de quase calamidade social e cultural que a inexistência de prática científica representa num país como o nosso;

- propor pistas de reflexão que a prática poderá trilhar para ultrapassar a situação a que se chegou.

O primeiro é um instantâneo fotográfico que nem por ser curto deixa de ser rigoroso. O segundo é uma pintura que tem naturalmente a marca do autor e as cores de alguma esperança no futuro.

Até porque os sintomas abundam, não é difícil concordar com Mariano Gago sobre o peso excessivo que entre nos ainda tem uma herança não só de indiferença como de menosprezo pela ciência e pela criatividade científica.

Essa situação reflecte-se, por exemplo, no modo como alguns responsáveis, sentados no governo, encaram a empresa cientifica, as pessoas que a praticam e os resultados que estas vão obtendo.  Mariano Gago achou por bem não citar os autores das opiniões contrárias às suas. Dá até a entender que não vê, num único autor, um antagonista com craveira intelectual suficiente para valer a pena refutar as respectivas ideias. No entanto, as afirmações de responsáveis recentes pela ciência, a falta de melhor explicação, só podem ser vistas como resultado de uma tradição de ignorância e têm, necessariamente, de ser contraditas.

Tomemos um exemplo fresco, já posterior ao "Manifesto": a tutela sobre a investigação científica em Portugal esta atribuída ao Ministro do Plano e Administração do Território (infere-se logo dessa designação que a administração de território é algo especialmente associado à investigação científica não se compreendendo porquê), tendo o ministro Valente de Oliveira declarado, em entrevista ao "Público" de 6 de Dezembro de 1990, que "os investigadores têm de fazer pela vida". O que significa essa peregrina declaração? Será que resulta apenas de uma leitura apressada de Darwin e que essa "espécie" recente da "fauna" portuguesa que é o "investigador científico" está em vias de extinção, só não perecendo aqueles que triunfarem na "struggle for life"? Ou será antes uma maneira delicada de dizer - "vão trabalhar, malandros"- como se faz a um mendicante que apareça a porta com aspecto de quem não exercita nem a cabeça nem os músculos, apesar de os possuir? Ou será que queria dizer outra coisa qualquer e não encontrou a expressão adequada?

O mesmo ministro, mais à frente, interroga assim os leitores: "queriam que nos tornássemos num produtor de de conhecimentos novos, que não tivessem sequência, e cujos resultados práticos fossem explorados pelos Estados Unidos e pelo Japão?"  Quererá o ministro dizer que em Portugal não se devem produzir conhecimentos novos?  Ou que não se devem produzir aqueles conhecimentos novos que não tenham sequência (se eles são novos, como é que se vai adivinhar a sequência?)? Ou que não se devem produzir aqueles conhecimentos novos que não tenham sequência mas que possam ser aproveitados pelos Estados Unidos e pelo Japão (para que é que os Estados Unidos e o Japão querem esses conhecimentos se estes não têm sequência?)? O perigo da investigação fundamental é, para o governo, bem claro: se a praticássemos, vinham, malvados, os japoneses e, desonestos, os americanos sacar-nos as ideias todas e aproveitá-las para viver à boa vida na terra deles. Em Tsukuba estão os investigadores orientais dependentes de uma desatenção do Ministro do Plano e Território português para caírem sobre nós e roubar as últimas da álgebra abstracta ou da física do estado solido... No MIT  estão os engenheiros ocidentais só à espera de uma mudança de política em Portugal para conseguirem os segredos da investigação no LNETI sem pagar os "royalties"...

Parafraseando Mariano Gago (num contexto um pouco diferente mas, por isso, um pouco parecido): há coisas que são ditas e "ninguém ri"!

As soluções para inverter a actual situação estão apontadas no "Manifesto": promoção da excelência onde quer que ela esteja localizada (se os portugueses porventura fossem os melhores do mundo em múmias egípcias porque é que não haveria de ser também prioritário o estudo das múmias?), internacionalização cada vez maior da ciência feita por portugueses, disseminação de escolas, institutos e laboratórios bem apetrechados (com bibliotecas onde apeteça entrar e ficar), generalização da divulgação científica para romper o isolamento social da ciência, formação acrescida de pessoas nos vários domínios do saber humano e coordenação de esforcos interdisciplinares em novas áreas, consciencialização dos empresários sobre as vantagens da inovação, etc.

Mariano Gago denuncia os perigos da armadilha chamada "ciência para o desenvolvimento". Esta consiste no privilégio dado às aplicações só porque se pensa que estas, se encontradas, são aplicadas rapidamente e em força, e que os resultados disso são sempre estupendos para o país.

A ligação entre ciência e suas aplicações, apesar de complexa, pode ser exemplificada  pela relação entre a queda das pedras e o aquecimento da água. Não há, à primeira vista, associação entre calhaus a cair e água quente a correr. Mas à segunda vista já há.  Talvez não seja suficiente mente conhecido que a termodinâmica nasceu a meio do século passado quando se verificou que a água num recipiente podia ser aquecida deixando cair uma pedra, isto é, que o trabalho mecânico podia ser transformado em energia interna de um sistema.  Essa descoberta foi realizada por um senhor inglês chamado Joule que sabia a mecânica de Newton e queria simplesmente saber o que era o calor. A busca de conhecimento sobre o que é o "quente" e o "frio" ligou-se com o que se sabia antes sobre a energia (as pedras, ao descer, ficam com mais energia cinética!) e fez desenvolver, lenta mas seguramente, aquecimentos, isoladores térmicos e máquinas.  O atraso com que a ciência fundamental chega (lembra-se que a que é feita no local chega imediatamente) pode ser desastroso do ponto de vista cultural mas é ainda mais desastroso do ponto de vista social e económico.  Os factos são conhecidos: não houve praticamente cientistas em Portugal no século XIX que viu surgir a "ciência do calor"; por outro lado, ainda hoje nas casas portuguesas, porque faltam em regra isolamentos térmicos decentes, se tirita de frio no inverno.

Dizer que não houve no passado ciência em Portugal pode ser contraprudecente nas escolas (as pobres crianças ficavam logo encolhidas com a notícia). Mas o atraso da ciência tem naturalmente a ver com o atraso na educação, incluindo a educação básica de que todos os cidadãos devem beneficiar.  Aqui a comunidade cientifica (que é ainda pequena) tem algumas culpas no cartório pois acha, salvaguardadas as respeitáveis excepções, que está muito acima desses mesquinhos problemas do ensino básico e secundário e dessas questões menores da divulgação científica (alguns estão tão acima, anos-luz acima, que não se vêem nem com os melhores telescópios...)  Mas não é a única culpada. Vejamos como  "a vitrina tecnológica", agora tanto em voga e parente próxima da "ciência para o desenvolvimento", pode constituir uma simples miragem, destinada ao exercício de sedução pelos mercadores de imagens.  Aproveita-se, para isso, um dos exemplos referidos por Mariano Gago.

Reza a propaganda oficial do Ministério da Educação que existem computadores nas escolas.  É legitima, contudo, a interrogação sobre o que se faz com essa mão-cheia de computadores (além de os ligar e desligar).  Será que se usam sofisticados processadores de texto para dar erros primários de ortografia ou que se fazem contas de tabuada em Pascal que dantes se faziam, e com melhor despacho, pela cabeça ou pelos dedos?  É que ano basta haver computadores numa escola  para que esta, como que por mágica, se torne moderna. É necessário, primeiro que tudo, que existam objectivos educativos substanciais e bem definidos e, depois, que esses objectivos sejam realizados melhor com computadores do que so com canetas e cabeças.  Para que os computadores sejam veículos de experiências inovadoras, é mister a formação de professores, o "trabalho artesanal" destes com os alunos, o exercício de imaginação de uns e outros.  Não aparece ligando a ficha...  As chamadas "Novas Tecnologias da Informação" (NTI, outra sigla horripilante das muitas que agora proliferam) correm, portanto, o risco de ser mais um "penso rápido" (PR, sigla que aqui se propõe) que encobre a ferida sem a curar ou a aliviar. Gago diz mesmo que, não havendo laboratórios, bibliotecas e professores habilitados, as NTI são "uma risível caricatura e uma perversa inversão de prioridades".

A melhor recomendação que se pode fazer a um livro é que seja lido.

Sobre o "Manifesto pela Ciência em Portugal", pode-se fazer recomendação melhor: que seja posto em pratica.

- José Mariano Gago, "Manifesto para a Ciência em Portugal", Gradiva, 1990

1 comentário:

Anónimo disse...

"Mariano Gago denuncia os perigos da armadilha chamada "ciência para o desenvolvimento". Esta consiste no privilégio dado às aplicações só porque se pensa que estas, se encontradas, são aplicadas rapidamente e em força, e que os resultados disso são sempre estupendos para o país."

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