segunda-feira, 20 de abril de 2015
JOSÉ MARIANO GAGO (1948–2015): UM DEPOIMENTO
Conheci o José Mariano em 1984 na Conferência Nacional de Física em Évora. Eu tinha vindo, doutorado, da Alemanha no Natal de 1982 e, jovem professor auxiliar, fui aquela conferência e assisti a uma entusiasmante palestra sobre física de alta energia, em particular sobre a actividade no CERN, dada pelo então também jovem José Mariano Gago. Eu tinha 28 anos e ele 36. Falei-lhe no fim e só não ficámos com os emails um do outro porque ainda não havia Internet. O contacto – depressa tornado amizade - havia de durar muitos anos. A última vez que o vi foi em 20 de Janeiro de 2015, na UNESCO, em Paris, onde ele foi moderar, de forma brilhante, a mesa redonda final da inauguração do Ano Internacional da Luz. Na Páscoa tentei telefonar-lhe e ele já não respondeu. Sabendo da doença, mandei-lhe, na véspera da inesperada morte, um email animador falando do futuro da ciência entre nós, da urgência de sairmos da baixeza em que estamos mergulhados. Foram, portanto, mais de três décadas de intercâmbio de ideias, irmanados como estávamos pelo desejo de um país melhor baseado na ciência e na cultura científica.
Devemos-lhe a clarividente presidência da Junta Nacional da Investigação Científica (JNICT) entre 1986 e 1989. Eu tinha andado nas lutas em defesa do Instituto Nacional de Investigação Científica (INIC). A JNICT fez esquecer rapidamente as agruras do INIC com as Jornadas de Ciência e Tecnologia e o programa mobilizador de ciência. Saído da JNICT, escreveu o Manifesto para a Ciência em Portugal (Gradiva, 1990), um ensaio que vai fazer 25 anos e que é um programa de governo para a área. Sobre ele escrevi uma recensão nos primeiros meses do Público. Respondeu-me, por carta, esclarecendo-me sobre alguns dos pontos que levantei e lançando-me pistas de reflexão. Ele era assim: amável e inspirador. Em 1991 publiquei na Gradiva Física Divertida. O José Mariano escreveu na altura no Expresso uma recensão, em que elogiava o editor Guilherme Valente, chamando-lhe, “reitor da Universidade da Gradiva” e anunciando que o autor tinha ascendido à cátedra com aquela obra. Julgo que lhe agradou, para além de ter apresentado a história da Física, a apresentação de experiências simples. Para o José Mariano a escola e a sociedade precisavam da experimentação.
Em 1995 Mariano Gago, com a mudança política introduzida pela eleição de Guterres (que tinha sido seu colega no Instituto Superior Técnico e que tinha por ele uma enorme admiração), foi nomeado ministro da Ciência e Tecnologia. Era a primeira vez que existia essa pasta, pois antes os assuntos de ciência eram tratados, pasme-se, na Administração do Território. Tratava-se de uma esperança para a ciência que se veio a concretizar. No ano seguinte nascia a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), que sucedia à JNICT e a Ciência Viva – Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica. Passavam a exercer a sua acção por todo o lado. A FCT começou a dar projectos e bolsas, assim como apoio plurianual a unidades após rigorosa avaliação. Estive também com ele na inauguração do primeiro laboratório associado do país, o Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra. Apesar de não simpatizar muito com Coimbra – que ele via como símbolo de um passado de séculos onde a ciência esteve reduzida à mínima expressão - fez questão de inaugurar os laboratórios associados na Lusa Atenas. E inaugurou a Milipeia, o supercomputador no Laboratório de Cálculo Avançado em Coimbra. Por outro lado, o Ciência Viva cedo começou a fazer projectos nas escolas. Eu tinha participado num encontro que o José Mariano organizou sobre cultura científica, com alguns amigos estrangeiros, e estava disposto a colaborar no que fosse preciso. Tinha-lhe mostrado o embrião do Exploratório Infante D. Henrique, em Coimbra. Mas o primeiro Centro Ciência Viva abriu em 1997 em Faro, usando materiais de uma exposição itinerante de ciência. Eu estava no seu gabinete no Terreiro do Paço (o ministro gostava imenso do sítio, muito perto do Martinho da Arcada, onde ele ia) quando ele recebeu com satisfação um telefonema da Universidade do Algarve dando-lhe a notícia do protocolo para instalação do centro. Havia de ser o primeiro de muitos. Quando não era ministro, entre 2002 e 2005, estive com ele nas vicissitudes por que passou o Ciência Viva, que havia quem quisesse destruir. Eu sabia do reconhecimento internacional desse programa, que era uma menina dos olhos dele. O Rómulo – um centro de recursos na Universidade de Coimbra - foi uma ideia que lhe apresentei num jantar no Parque das Nações, perto do Pavilhão do Conhecimento, centro que ele sonhou bem antes de ser ministro. Quando lhe perguntei quantos centros Ciência Viva se poderiam criar numa dada região, respondeu lesto: “Far-se-ão todos aqueles que forem precisos!”. Mariano Gago haveria de visitar o Rómulo em 2013, tendo falado de novas formas de ligação dos cidadãos à ciência.
Não o visitando com frequência, sabia da sua permanente e generosa disponibilidade. Como ministro encontrou tempo para apresentar na FNAC do Colombo o meu livro Nova Física Divertida (Gradiva, 2007), tendo ele deixado claro que mais haviam de vir. Tendo-lhe pedido, quando já não era ministro, para apresentar o meu livro História da Ciência em Portugal (Arranha Céus, 2013), ele declinou amavelmente o convite, talvez por razões de saúde, mas esteve presente no El Corte Inglês em Lisboa não só para me abraçar mas também para fazer um comentário elogioso. Gago sabia da relevância da História da Ciência, não tendo sido por acaso que criou na FCT um programa de apoio a essa área. Foi estupefacto que vi o ministro Nuno Crato terminar com o programa em História da Ciência (e também com o programa em Promoção de Ciência). Começou aí o meu afastamento, que desde há algum tempo é público e notório, com a política de Crato. Comentei isso com o José Mariano num recente encontro que tivemos no Convento da Arrábida, um sítio que ele adorava.
Estranhamente, hoje alguns dos que aplaudem a obra de Mariano Gago são os mesmos que apoiam a política de castração da ciência, em particular da História da Ciência e da Cultura Científica perpetrada por Crato. O passamento de José Mariano Gago é uma grande perda para todos, para mim é o fim do convívio com um homem inteligente e sonhador. Mas é sobretudo uma chamada aos amigos da ciência e da cultura científica, para que redobremos o combate contra uma política tola desfavorável à ciência, que na prática mais não faz do que dar à ignorância o lugar que é do saber. Devemos à memória do José Mariano a continuação do bom combate.
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