domingo, 26 de abril de 2015
A ARTE DOS SABORES
Texto recebido de Galopim de Carvalho:
Ver fazer, experimentar e conseguir fazer foram constantes ao longo da minha vida. Já o escrevi e já o disse vezes sem conta. Praticamente tudo me cativava, menos a escola, desinteressante, austera, repressiva e enfadonha. Aprender gramática escrevendo no caderno diário, a mando do professor, as definições de sujeito, predicado, complemento circunstancial de lugar, nome predicativo do sujeito e mais uma infinidade de conceitos não explicados, sem sentido, ditados monótona e monocordicamente, nada tinha de apelativo. Pior ainda era ter de decorar tudo aquilo e repeti-lo, tim-tim por tim-tim, frente ao semblante carregado do mestre, de régua na mão a bater na perna a cadência da recitação.
- Dá cá a mão, meu madraço. Agora levas já três para alegrar a festa. E, amanhã, se não me trouxeres tudo na ponta da língua, sem gaguejar, apanhas com mais meia dúzia de cada lado...´
Era muito mais atraente ficar horas a ver o Maurício, de joelho no chão, a escolher e a afeiçoar as pedras da calçada, enfiando-as de seguida em covinhas que fazia na terra com a peta do martelo e que, por fim, ajeitava com três ou quatro pancadinhas de mestre, rematando sempre com uma mão cheínha de terra a colmatar as imperfeições dos ajustes. Impressionante era, depois, ouvir o baque pesado e cavo do maço a calcar o chão, numa repetição ritmada pelo respirar ruidoso saído do peito do calceteiro, num vigor condizente com o esforço posto em cada batida. Nessa altura eu já distinguia os diversos tipos de martelos dos vários ofícios abertos à minha imensa curiosidade no pequeno universo que foi a cidade e os seus arredores. Martelo de sapateiro, com que brinquei na oficina do meu tio Almaça, de funileiro, como o do Teófilo, à Porta Nova, de pedreiro, de estofador, de ferrador, de carpinteiro, que aprendi a usar, pregando e tirando pregos, com o mestre Roberto, na Rua do Segeiro, todos os martelos eram diferentes entre si e nenhum era igual ao do Maurício, mais parecido com o martelo de geólogo, profissão que nessa altura, já lá vão mais de sete décadas, ninguém em Évora sabia o que era. Ferramenta esta que nem eu sabia que ia ser a minha a partir do ano em que, já adulto, decidi cursar Geologia, um gosto antigo só tarde concretizado. Bonitos e em tamanho a condizer com a minha estatura de criança eram os martelinhos do senhor Rego, relojoeiro, e o do senhor Sales, conceituado ourives da cidade. Uma tal curiosidade e interesse por tudo o que era manual, levou-me, mais tarde, nos anos cinquenta, a frequentar a oficina de encadernação do Brito, um jovem da minha idade com quem estabeleci amizade e me iniciou na arte. Grande mestre e referência entre os últimos encadernadores douradores ainda vivos, com ele aprendi a coser os cadernos, a fixar as capas de cartão e a armar as lombadas encordoadas. Ali me adestrei no corte com a cesária mas nunca tive ordem de usar a guilhotina. Sob a sua simpática e sábia orientação, cheguei a encadernar alguns dos meus livros em meia-francesa, em pano e em percalina, peças que guardo religiosamente.
Entre os inúmeros pólos de atracção, alvos predilectos desta minha vocação de ver fazer e, assim, aprender como se fazia, estava também a cozinha. Vários factores foram determinantes deste meu interesse. Sendo o mais novo de cinco filhos só fui para a escola aos nove anos, para a terceira classe. A primeira e a segunda fi-las em casa, numa modalidade designada por Ensino Doméstico, tendo por mestres a mãe, o pai e os irmãos mais velhos. A minha mãe sabia como era a escola e achava-me demasiado pequeno para enfrentar um tal desconforto. Com ela aprendi a ler na «Cartilha Maternal» de João de Deus e toda a tabuada, a mesma que ainda hoje me dispensa do abuso das calculadoras de bolso dos nossos actuais estudantes. Assim, só com aquela idade enfrentei as “virtudes pedagógicas” dos mestres-escola de então. Havia excepções, deve ressalvar-se, mas eram poucas.
Nesse tempo era quase sempre eu que, diariamente, fazia as compras na praça, no talho, na mercearia, para além de outros mandados indispensáveis a uma casa de família. Tal azáfama foi-me ensinando a conhecer os produtos alimentares, dos legumes à fruta, passando pelas carnes e pelo peixe, a tal ponto que podia ir para a rua com uma nota de vinte escudos na algibeira e ser eu que destinava. Destinar era um verbo muito usado pela mãe para dizer, com uma só palavra, uma porção delas: pensar o que iria ser o almoço ou o jantar desse dia, em função do que havia e não havia, das qualidades e dos preços, e decidir, na hora, ali, frente às bancas.
- Destina lá tu. Se as favas estiverem em conta – dizia-me, já eu ia escada abaixo – não te esqueças de pedir coentros e rama de alho fresca. Compra três quilos que, depois de descascadas, ficam por menos de metade. E não queiras das grandes. Têm a pele dura e são farinhentas. Pede das miudinhas. Se não houver das boas, traz ervilhas. Escolhe das mais cheínhas e gradas. Tens é então de comprar uma dúzia de ovos. E certifica-te que são frescos. Na semana passada deram-te um gorado...
Era assim todos os dias. Peixe espada para grelhar, carapau para fritar, pescada para fazer com arroz e espinafres. Ciba (choco grande) para guisar com batatas. Tomate rijo para a salada ou bem maduro para a tomatada. Da galinha viva para a cabidela (não te esqueças dos cominhos), às ervas de cheiro e aos ingredientes para o cozido de abóbora e grão, acabei por aprender muito do que todas as mães sabiam no seu quotidiano de dar de comer à família. Na mercearia do Anselmo onde, a brincar, dava ajuda de caixeiro, aprendi os usos a dar às especiarias, a distinguir o bacalhau do escamudo, a avaliar as qualidades de tudo o que se vendia a granel, tirado a corredor das tulhas, do açúcar às massas, do arroz ao feijão e ao grão. Aprendi a estimar o grau do azeite pela cor e pelo cheiro. Um outro factor influente no meu gosto pela culinária tinha-o em casa, na cozinha, ouvindo a mãe que falava das quantidades, dos tempos e dos cuidados a ter e me explicava todos os porquês e os para quês, os quando e os quantos, os como e os onde.
- A asa da frigideira fica sempre lá para trás, não vá a gente dar-lhe um encontrão. E, olha – advertia, de dedo em riste e olhar muito sério – não há queimadura pior do que a do azeite a ferver. Para engrossar o caldo com farinha nunca é o frio sobre o quente, pois dessa maneira formam-se umas bolinhas de farinha cozida que já não se desfazem. Olha, é sempre assim, - dizia, enquanto tirava com o caço o caldo a ferver da panela e o vertia em fio sobre uma tigela onde diluíra a farinha em água fria. Outras vezes, estando a preparar um cozido, alertava-me – A couve tem de ser escaldada primeiro – e, mais adiante, – os enchidos são cozidos à parte, senão deixam um cheiro a fumeiro que estraga tudo.
Um terceiro factor de interesse pela arte de Pantagruel foi talvez a minha própria natureza de grande apreço pelos bons paladares e a convicção de que não há melhores aromas do que os que se exalam dos tachos e panelas ao lume, aromas que enchem as cozinhas e dilatam as narinas. E todos sabemos como os aromas prenunciam os paladares...
Quando os onze anos me levaram para o liceu, acabou-se para a minha mãe a ajuda que lhe dava em casa neste capítulo do aprovisionamento alimentar e terminou, para mim, o contacto diário com a cozinha, um saber que, sem me ter dado conta, mantive guardado como uma semente que só muito mais tarde germinou e deu frutos. Depois de adulto, já casado, em todas as situações em que se proporcionou pôr o avental, todo esse repositório veio ao de cima. Três anos em Paris, cada um a estudar para seu lado e a residirmos na vizinhança da velha e conhecida rue Mouffetard, onde ainda decorre o mais tradicional mercado parisiense, deram-nos, agora aos dois, novas possibilidades de explorar a arte dos sabores.
Galopim de Carvalho
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