Entrevista que dei a Ana Carvalho Melo do Açoriano Oriental, o mais antigo jornal português em actividade e um dos mais antigos do mundo (destaques meus a amarelo):
P- Afirmou que "Hoje o drama é o analfabetismo cientifico". Termos uma população com melhor educação em ciência, não significa que sejamos todos cientistas, mas antes uma melhor compreensão do mundo. Dado que tem dedicado muito da sua carreira cientifica à divulgação cientifica, o que falta fazer?
R- De facto, se nos últimos 20-30 anos houve um crescimento enorme da ciência em Portugal, temos de reconhecer que o
ponto de partida era baixíssimo. Nas Conferências do Casino de 1871 o açoriano Antero de Quental dizia: "A Europa culta engrandeceu-se, nobilitou-se, subiu sobretudo pela ciência: foi sobretudo pela falta de ciência que nós descemos, que nos degradámos, que nos anulámos." Se no final do século XIX o nosso nível científico era baixo e nos primeiros três quartos do século XX não melhorou muito.
O próprio Antero referiu nas causas do nosso atraso a défice de educação e o tipo de educação que tínhamos. estou convencido que a falta de ciência tem muito a ver com falta de
educação. No final do século XIX Portugal era um caso tremendo de analfabetismo, em contraste com a maioria dos países europeus, e em 1974 ainda havia 29% de analfabetos.
Hoje em dia ainda há cerca de 5% de analfabetismo, mas o nosso drama, que importa para a relação da sociedade com a ciência, é o analfabetismo que consiste em ignorar e
por vezes mesmo desprezar a ciência. Não é tanto saber ler em geral que nos deve preocupar, mas mais a não compreensão da ciência. Saber é poder e mais saber é mais poder. A ciência está presente no mundo
moderno, por vezes tão presente que se torna invisível (nem reparamos que está altamente concentrada por exemplo nos telemóveis). E, no entanto, em muitos sítios como em Portugal a
sociedade ainda desconhece a natureza, os objectivos e o método da ciência. Ora, como já alguém disse, esta mistura entre saber, só para alguns, e ignorância, da população em geral é explosiva.
Pode acontecer que a sociedade a certa altura não perceba a necessidade de investimento contínuo na ciência e toda a nossa civilização estará em causa.
O que falta fazer? Espalhar mais a ciência. Mais e melhor ciência tanto na escola como fora dela,.designadamente nos media. Há bons exemplos, mas falta que eles sejam
mais seguidos. Tiro meu chapéu ao "Açoriano Oriental",
ainda mais antigo que o Antero de Quental, e que se tem interessado pela difusão da ciência.
P- A educação em ciência deve começar em que ciclo de ensino?
R- O mais cedo possível, portanto logo no 1,.º ciclo do ensino básico ou, ainda antes, no jardim de infância. A criança, quando nasce, vem equipada
coma curiosidade, que é a mola da ciência. Ainda antes de entrar na escola e já quer saber como é o mundo. Agarra objectos antes de falar.
E quando fala pergunta o que é e por que é. Experiência de "ciência a brincar" deviam ser a introdução à ciência para todos, agora que entre nós a
educação pré-escolar se generalizou. Depois na escola, a formalização da ciência seria mais fácil. E já não haveria receio da ciência como "bicho-papão".
Por vezes desiste-se da ciência, por medo dela, quando nem sequer se sabe o que é. O método científico é algo bem simples: consiste em perguntar ao mundo
como ele é.
P- Por outro lado tem-se mostrado muito crítico em relação ao futuro da ciência em Portugal.
R- Eu não sou crítico quanto ao futuro da ciência em Portugal.Quero até ser optimista, como são em geral os cientistas.
Acredito no futuro da ciência em Portugal. penso, de resto, que sem ciência Portugal dificilmente terá futuro.
Basta olhar para os países hoje mais desenvolvidos para reparar que eles são mais desenvolvidas precisamente
porque acolheram a ciência há bastante tempo e não mais a largaram.
Estou crítico é de um governo que diminui drasticamente o número de bolseiros de ciência, que corta os projectos
a torto e a direito e que decide, à falsa fé, encerrar metade dos centros de investigação nacionais. O governo
voltou as costas à ciência. Quer abandonar um grande número dos cientistas à sua sorte. Em particular, desprezou a ligação forte entre ciência e sociedade que dá pelo
nome de cultura científica. Não procurou cultivar o conhecimento da ciência, nem na escola nem fora dela.
P- Quais as suas principais preocupações?
Na escola gostaria que a ciência começasse mais cedo, com educadores e professores a incutirem nos mais novos o gosto pela experimentação. As
crianças são verdadeiras esponjas: absorvem o que lhes transmite em tenra idade e absorvem sobretudo o que aprendem com o cérebro ligado
às mãos. No secundário vejo com mágoa que a física e a química não são valorizadas, estando a física e a química reduzidas a resíduos no 12..º ano.
No superior as instituições estão à míngua, com cortes até ao osso. Não há autonomia nem confiança nas instituições de ensino superior. Aposta-se ainda na ciência em institutos fora das universidade, estranhamente alguns privados, enquanto se desinveste das universidades. Há agora uma preocupação obsessiva com o emprego, que eu percebo, mas que na prática desvaloriza os cursos superiores de ciências básicas. Ao unir o Ministério da Ciência e Ensino Superior com o Ministério da Educação, assistimos ao apagamento político da ciência.
A ciência não se senta à mesa do orçamento, sendo na prática preterida por interesses que estão muito afastados dela. Certas pessoas que ora nos governam
ignoram que a ciência, em particular a ciência fundamental, é a fonte do desenvolvimento económico.
P- Quais as consequências da realidade actual para o futuro do nosso país?
R- Em consequência do desinvestimento na ciência e de uma politica míope que relega as universidades e politécnicos para segundo plano as novas gerações, aquelas mais qualificadas, não estão a encontrar trabalho científico e estão a emigrar. Se não se estanca essa corrente para fora, o país ficará, como já está, bloqueado. Claro que precisamos de cientistas e engenheiros, mas qualquer dia, a continuar assim o êxodo, não os teremos cá. Estarão nos sítios onde eles são acarinhados a fazer coisas que nós pagaremos muito caro para termos.
Se se pensa que a ciência é cara, vão ver o que nos vai custar a falta dela.
P- A mudança no panorama científico depende só do Estado ou também da indústria?
R- Depende dos dois. Mas a ciência fundamental, com rendimento só a médio ou longo prazo, é mais uma obrigação do Estado. As empresas têm tendência em verem só o curto prazo. É
até compreensível. Muitas pequenas empresas, que dominam em Portugal, lutam pela sobrevivência no dia a dia e não podem pensar em mais nada. Mas é preciso que os empresários portugueses conheçam a extraordinária mais valia que reside nos cérebros dos nossos doutores e mestres. Eles estão mortos por ajudar o país e o país precisa da ajuda deles. O seu recrutamento não pode ser apenas uma missão do Estado, tem de ser - e cada vez mais - uma missão das empresas. Ciência e economia têm entre nós de se aproximar, mas isso não se faz
contraindo a ciência, mas sim continuando a expandi-la até pelo menos chegarmos a níveis médios europeus.
P- E a ciência nos Açores?
R- Os Açores são um sítio único no mundo. .São um laboratório natural: de sismologia, de vulcanologia, de meteorologia, de recursos marinhos, de biodiversidade. Há condições para colocar aqui um centro internacional activo nessas áreas mas para isso é necessária diplomacia científica de Portugal e da Europa com os Estados Unidos. os Açores estão a meio caminho entre o Novo e o Velho Continente. A ciência pode não ser o único factor de desenvolvimento, mas deve ser um factor a considerar entre outros, assegurando emprego a pessoas qualificadas e atraindo pessoas de fora. Um grande projecto exige uma grande visão. Pode ser que ela um dia apareça.
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