quinta-feira, 6 de junho de 2013

Thomas Mann


Thomas Mann foi um dos grandes romancistas da primeira metade do século XX. Para mim, A Montanha Mágica é o seu maior romance, embora Doutor Fausto não lhe fique muito atrás; deste último, retirei este excerto, onde é notório e amplo o conhecimento do autor:
"Adrian falava-me do prurido da descoberta que provinha do ensejo para desnudar aos olhares o nunca avistado, o que não cumpre observar e jamais espera ser contemplado. O sentimento de indiscrição e até mesmo pecaminoso, que se lhe ligava a esse acto, não ficava inteiramente tranquilizado ou compensado pela patética reivindicação da Ciência, que pleiteia a autorização para progredir até onde as suas faculdades lhe permitam. Tornava-se por demais evidente que as excentricidades inacreditáveis, ora horripilantes, ora ridículas que a Natureza e a vida haviam perpetrado nessas regiões, com formas e fisionomias já não aparentadas com as do mundo terrestre, e que pareciam pertencer a outro planeta, eram produtos da sua segregação e da certeza d estarem ao abrigo de perene escuridão. A aparição de uma astronave humana em Marte, ou melhor ainda, naquela metade de Mercúrio à qual nunca chega nenhum raio de sol, não poderia causar entre os eventuais habitantes desses mais «próximos» corpos celestes pasmo maior do que aquele que o advento da redoma submersa de Capercailzie ali provocara. Fora indescritível a primeira curiosidade com que as abstrusas criaturas do abismo se haviam comprimido em torno da morada dos visitantes – e igualmente indescritível era tudo quanto deslizava velozmente lá fora, num movimento tão rápido quanto confuso, todas aquelas máscaras loucas, ocultas do mundo orgânico, as bocarras rapaces, as dentaduras sem pudor, os olhos de telescópio, peixes semelhantes a barcos de papel, peixes do feitio de machadas de prata, com vistas protuberantes, dirigidas para cima, bichos pinípedes, moluscos heterópodes que chegavam a ter dois metros de comprimento! Os próprios monstros viscosos que abulicamente flutuavam na corrente, moluscos, polvos, cifomedusas, animais de longos tentáculos, pareciam contagiados pela espasmódica excitação (….) 
A transição tornava-se fácil graças às descrições precedentes. O ambiente grotescamente estranho da vida no fundo do mar, dessa vida que parecia já não pertencer ao nosso planeta, servia-lhe de ponto de partida. A frase de Klopstock sobre «a gota aderente ao balde» era de outro. Com que clareza não ilumina ela, na sua humildade cheia de admiração, a posição secundária, despercebida, quase contraditória para uma visão mais ampla, devido à insignificância do objecto, não só da Terra mas de todo o sistema planetário, do Sol com os seus sete satélites, dentro do turbilhão da Via Láctea, da qual ele faz parte, da «nossa» Via Láctea, sem falar, nesta altura, de milhões de outras!
 A palavra «nossa» confere à imensidão a que se refere um quê de intimidade; engrandece de um modo quase cómico o conceito familiar, dando-lhe uma dimensão estonteante, da qual modesta mas seguramente amparados nos devemos sentir cidadãos. Nessa preservação intrínseca, parece afirmar-se a predilecção da Natureza pela esfericidade, e este era o terceiro ponto do qual partia Adrian ao iniciar as suas condições cósmicas. Em certo sentido, a isso o levou a isso a estranha experiência da sua estada numa bola oca, com o batíscafo de Capercailzie, que ele pretendia ter habitado durante várias horas. Depois, aprendera que nós todos vivemos sempre numa esfera semelhante, pois a condição do espaço galáctico, onde nos foi consignado um minúsculo lugarzinho em qualquer região lateral, é a seguinte: 
Explicou-me que esse espaço tem, pouco mais ou menos, a forma de um achatado relógio de algibeira: é redondo e muito menos espesso do que vasto; um disco em turbilhão, não incomensurável, mas decerto enorme, constituído por concentradas multidões de corpos celestes, constelações, agrupamentos e montões de astros, estrelas duplas, que descrevem órbitas elípticas, uma em torno da outra, além de inúmeras manchas nebulosas, algumas anulares, outras fosforescentes e ainda outras difusas. Mas, segundo Adrian, tal disco parecia-se apenas com a superfície plana, redonda, que se obteria se cortássemos uma laranja pelo meio. Pois, ao seu redor, era envolvido por um manto vaporoso de outros astros, que, por sua vez, não devia ser qualificado como incomensurável, mas apenas enorme, à mais alta potência, e em cujos espaços – espaços predominantemente vazios – os objectos presentes estariam distribuídos de tal forma que toa a estrutura teria o feitio de uma esfera. Nas profundezas do interior dessa bola oca, inconcebivelmente espaçosa, pertencente ao disco do condensado formigueiro universal encontra-se, totalmente secundária, dificilmente descortinável, nem sequer digna de menção, a estrela fixa, em volta da qual brincam na companhia de camaradas maiores e menores, a Terra e a sua pequena lua. «O Sol», que merece em absoluto o artigo definido, uma bola gasosa de seis mil graus de calor, na sua superfície, e de um diâmetro módico de um milhão e meio de quilómetros, dista do centro do plano interior galáctico de uns trinta mil anos-luz, distância essa igual à grossura do mesmo. A minha cultura geral permitia-me fazer uma ideia aproximada do conceito de um «ano-luz». Era, obviamente, um conceito espacial, e a palavra designada o trajecto que a luz percorre durante um ano terrestre – com a velocidade que lhe é peculiar e da qual eu tinha conhecimentos vagos, mas que Adrian sabia precisar exactamente: duzentos e noventa e sete mil e seiscentos quilómetros por segundo. Sendo assim, um ano-luz chegaria a cerca de nove e meio de triliões de quilómetros, de modo que a excentricidade do nosso sistema solar perfaria trinta mil vezes mais e o diâmetro total da esfera galáctica mediria duzentos mil anos-luz. Não, ele não era incomensurável e, dessa forma podia ser medido. E no entanto, que se deve dizer de tal incumbência imposta à inteligência humana? Confesso que, por índole, aquilo que é irrealizável e muito imponente apenas me leva a encolher os ombros em sinal de renúncia, mas também de certo desdém. A admiração da grandeza, o entusiasmo que sentimos em face dela e até por arrebatamento irreversível que ela nos causa criam, sem dúvida alguma, um prazer da alma. Mas somente podem ocorrer sob condições concebíveis, terrenas e humanas. As pirâmides são grandes; grande é o monte Branco, e o interior da catedral de São Pedro também o é, a não ser que se prefira reservar esse atributo ao mundo moral e espiritual, ao sublime do coração e do pensamento (…). O universo físico – a palavra «universo» na sua acepção mais vasta, a englobar as regiões mais distantes – não devia ser considerado nem infinito, porquanto ambos os termos designam algo virtualmente estático, ao passo que o cosmo, na realidade, é por índole inteiramente dinâmico e, havia muito, ou para sermos mais exactos, há mil e novecentos milhões de anos, encontra-se em estado de frenética expansão, ou mais precisamente de explosão. A esse respeito, o desvio para o vermelho na luz chegada até nós de numerosos sistemas galácticos, cuja distância conhecemos pouco mais ou menos, não admitia, segundo o meu amigo, nenhuma dúvida. Em direcção à extremidade do vermelha no espectro, a alteração da cor tornava-se, como expunha, tanto mais sensível quanto mais afastadas de nós estivessem aquelas nebulosas. Evidentemente, elas tendiam a fugir de nós, e nas mais remotas aglomerações, situadas a cerca de cento e cinquenta milhões de anos-luz, a velocidade do seu movimento equivalia àquela que desenvolvem as partículas alfa de substâncias radioactivas e que chega a vinte e cinco mil quilómetros por segundo, uma velocidade em comparação com a qual o voo dos estilhaços causados pela explosão de uma granada parece o avanço de uma lesma. Se, portanto, todos os sistemas da via Láctea se distanciavam uns dos outros com a máxima rapidez, o termo «explosão» era pouco adequado ou nem bastava sequer para descrever o estado do modelo atómico e a sua forma de dimensão. Podia ser que esta, outrora, tenha sido estática, limitando-se simplesmente a um diâmetro de um bilião de anos-luz. Mas, na situação actua, talvez fosse possível falar de expansão, mas nunca de uma dimensão fixa, quer «finita», quer «infinita». Tive a impressão de que tudo o que Capercailzie fora capaz de garantir ao interlocutor curioso se restringia ao facto de que a soma de todos os sistemas existentes da Via Láctea alcançava a ordem de grandeza de cem biliões, dos quais apenas um mísero milhão era avistado pelos telescópios que actualmente temos à nossa disposição.»
Notas:
Klopstock – poeta germânico
Capercailzie – professor de Adrian.

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