Novo texto de Cristina Carvalho
Falo das praxes. Falo dessa prática, muitas vezes desumana, gravemente humilhante, gravemente provocatória que os futuros “doutores”, os “encanudados” filhos da nação e futuros orientadores de futuros, gostam de praticar no lombo e no rosto dos jovens que vão pela primeira vez ingressar nas faculdades. Falo destes comportamentos aberrantes, sádicos e monstruosos que dão um “gozo catarino” a quem os pratica. Eles sentam-se em cima dos “fracos”, atam-lhes cordas ao pescoço, chibatam-nos pelas ruas das cidades de modo a que todos os possam apreciar. Eles cospem-lhes nas caras, eles arrotam-lhes o resto do jantar de ontem, mordem-lhes, eles despem-nos, pintam-nos, urinam-lhes e defecam-lhes em cima. Ardem e fremem corações de pedra, rejubilam no sofrimento do jovem colega, quanto mais humilhado e amarfanhado melhor! Que é que uma pessoa pode pensar disto? Que é um costume? Uma tradição a cumprir, obrigatória, na entrada do ensino superior? Esta violência acontece noutros pontos civilizados do planeta? O que é que uma pessoa pode pensar destas atitudes sabendo que as cabeças que prepararam tudo isto, gastaram uns dias da vida, umas preciosas horas da vida a engendrar torturas? O que é que uma pessoa pensa disto? Engendrar torturas e humilhações? Mas quem é esta gente que engendra torturas e humilhações? São os doutores? Os príncipes engalanados, pavões falantes trepadores de pódios desejados por toda a vida? São os futuros gestores e gerentes e políticos e nossos orientadores? Mas quem é esta gentuça? Donde vem? Quem os educou? Que sonhos têm na cabeça? Que prenda desejam no final dos cursos? Um gabinete com vista para a cidade? Um chicote com cabo de marfim? Um panelo sem fundo que aguente com as suas torpes idiossincrasias? Uns “sim senhores” que pretendem que a revolta se instale noutro tipo de espíritos? Que é que pretendem? Sofrimento? Burgessos a cumprir o folclore fascista inculcado atavicamente nas suas pobres cabeças, ainda que dele não tivessem tido conhecimento, que apenas dele tivessem ouvido falar, mas que tão bem o aprenderam. Faz lembrar as humilhações da história moderna das quais nem vou falar e que estão documentadas por fotografias. Atenção que isto é “bullying” do mais perverso! E à vista de todos sem a menor pretensão de disfarce. E ninguém diz nada! As ruas de muitas das nossas cidades ontem, hoje e amanhã estarão enfeitadas com esta massa ululante e “brincalhona” que se diverte por palavras e por ações malévolas e ninguém lhes toca! Há gritos de revolta e de censura, isso há, como este meu aqui enquanto escrevo esta crónica. Meu e de muito mais pessoas, mas não passa daqui. E são burgessos que eu sei lá! Falam mal, falam aos berros. Não é preciso sermos todos muito palacianos e muito mesuras e muito delicodoces, mas a tendência que há, que se nota, que se vê a olho nu, que se ouve a torto e a direito de algumas pessoas se acharam modernaças e jovens e giras e "práfrentexes", de algumas pessoas que exibem uma certa brutalidade verbal, uma enorme agressividade no sentido da pior assertividade e que lançam, por tudo e por nada e nas mais vulgares ocasiões, sem fazer o menor sentido e sem terem a mais pequena noção de oportunidade, o chamado palavrão, tipo porra, xiça, fosga-se e mais não digo porque nada disto faz sentido. Ao proferir estas palavras a torto e a direito, as pessoas retiram até a fantástica sensação de alívio que, realmente, só um palavrão pode proporcionar na altura devida. Além de que é vulgar e abrutalhado estar constantemente com este tipo de vocabulário. Uma pessoa define-se facilmente! Julga essa gente dos palavrões e das praxes, que se cria uma determinada intimidade, que essa atitude corresponde a algo que toda a gente sente e aprecia. Não! A boçalidade educa-se, a distinção – no sentido de ser distinto - não se obtém pela vulgaridade. A distinção é a própria distinção. Nunca perceberá isto, esta gentuça das praxes. E voltando às alegres entradas na universidades termino dizendo, que aqui estaremos à espera, mansamente, que estes filhos da nação que hoje se entregam a estes “divertimentos” acabem por vir divertir-se connosco quando forem mais velhinhos. A ver se a gente lhes acha graça… Cristina Carvalho |
sexta-feira, 28 de setembro de 2012
AS PRAXES - A GRANDE E DESEJADA HUMILHAÇÃO
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13 comentários:
No jornal Público de hoje, dia 28-09-2012
http://www.publico.pt/sociedade/caloira-acaba-no-hospital-de-beja-depois-de-praxe-1564956
Bem inicialmente quando comecei a ler o texto até pensei que tinha uma certa ironia contida...mas passando os olhos pelas restantes linhas apercebi-me que não. Eu frequentei uma universidade que desencorajava de certa forma o espírito da praxe, e eu próprio nunca fui muito fervoroso no que toca a esse tema...mas daí a fazer crer o que a Sr. Cristina Carvalho pretende com este texto parece-me demasiadamente desapropriado...tanto que roça o ridículo (sem querer ofender claro). Não sei se saberá, mas cada universidade e cada curso tem a sua própria identidade de praxe, focalizada na transmissão de alguns princípios que serão úteis ao indivíduo tanto no seu percurso académico como na sua futura vida profissional..como é lógico se olharmos apenas para alguns (maus) exemplos de praxe que apenas pretendem humilhar o caloiro aquilo que disse anteriormente não faz qualquer sentido, mas se tivermos em conta o companheirismo que é criado entre os alunos, as provas e jogos realizados para prepararem o caloiro para o ambiente de exigência, competição e pressão que irá enfrentar na sua vida académica e profissional, então conseguimos retirar aspectos positivos, e por alguma coisa a esmagadora maioria das pessoas gosta da praxe, será a grande maioria de estudantes portugueses delinquentes, indivíduos sedentos de sadomasoquismo e que se vangloriam com a humilhação e tristeza dos outros? não me parece...mais uma vez digo...eu próprio não fui um assíduo praticante da praxe..mas compreendo os seus fundamentos e tradições...tradições essas mais longas no tempo do que o seu aparente conhecimento sobre a praxe académica.
P.S. Não é por ter ou não ter praxe que vai ter melhores ou piores administradores, orientadores, etc como pretendeu insinuar...isso prende-se mais com a educação em casa, com a formação cívica, com o carácter e valores que transmitimos uns aos outros..até porque praxe existe aqui e na china...
Mas o mais espantoso, Cristina Carvalho, é que muitos dos jovens caloiros acham que devem sujeitar-se a estas práticas. E alguns deles dizem mesmo que gostam. E devem gostar...
Se calhar é para compensarem a ausência de limitações com que os pais os "educaram" e o modo como libertariamente se comportaram durante todo o seu percurso escolar: alguns agredindo professores de várias formas, no que foram muitas vezes secundados por certos "paizões" fortalhaços, perante a indiferença de quem manda (excepção para o Procurador Geral da República, Pinto Monteiro).
E isto é fascismo sem aspas, sim. Radicando em sentimentos nazis, sim senhor.
O problema é que isto parece morar nas profundezas da maioria dos exemplares do bicho homem.
Aí reside o horror da praxe.
Um horror que fingimos que não o é.
Eu defendo que as vítimas da praxe se defendam de todas as formas possíveis. Em legítima defesa.
Deles e nossa.
Enquanto é tempo.
Muito obrigado.
Para responder a João Sobrinho - e agradeço o seu comentário - Compreendo, perfeitamente, a defesa dos ritos iniciáticos e da sua importância instrumental. Compreendo, perfeitamente, o sentido das tradições e, como evolucionista, compreendo também a evolução das tradições.Mas não é esse o sentido do meu texto. Dirige-se às notícias de violência que todos os anos tenho lido nos jornais e a que urge por cobro. Valorizemos o sentido útil das tradições e saibamos atualizá-las sem a perda dos seus fundamentos.
Não vale a pena ignorar as atrocidades e o tempo despendido por algumas dessas pessoas (alunos) a engendrar essas mesmas atrocidades. Obviamente que não são todos, mas que os há, há!
Poderia revelar-lhe uma data de situações, absolutamente constrangedoras e revoltantes - para não dizer mais nada - nas quais vários e distintos professores e alunos foram vítimas.
Ignorar, não é possível.
E a atitude de um escritor /a é sempre e sempre uma atitude reflexiva e de intensa observação e é seu dever, cívico e social, participar na denúncia de atos sejam eles quais forem. Assim houvesse tempo para tal.
Muito obrigada
Cristina Carvalho
Aliás, a fotografia acima colocada, é extraordinária! Extraordinária!
Para responder a João Sobrinho - e agradeço o seu comentário - Compreendo, perfeitamente, a defesa dos ritos iniciáticos e da sua importância instrumental. Compreendo, perfeitamente, o sentido das tradições e, como evolucionista, compreendo também a evolução das tradições.Mas não é esse o sentido do meu texto. Dirige-se às notícias de violência que todos os anos tenho lido nos jornais e a que urge por cobro. Valorizemos o sentido útil das tradições e saibamos atualizá-las sem a perda dos seus fundamentos.
Não vale a pena ignorar as atrocidades e o tempo despendido por algumas dessas pessoas (alunos) a engendrar essas mesmas atrocidades. Obviamente que não são todos, mas que os há, há!
Poderia revelar-lhe uma data de situações, absolutamente constrangedoras e revoltantes - para não dizer mais nada - nas quais vários e distintos professores e alunos foram vítimas.
Ignorar, não é possível.
E a atitude de um escritor /a é sempre e sempre uma atitude reflexiva e de intensa observação e é seu dever, cívico e social, participar na denúncia de atos sejam eles quais forem. Assim houvesse tempo para tal.
Muito obrigada
Cristina Carvalho
"A distinção é a própria distinção".
Por vosso esforço as regras.
Falência de valores é aunsência de ciência.
Senhora Cristina Carvalho;
Mas outra coisa não seria de esperar do sistema do sistema de ensino que temos:
"um sistema feito à medida da mediocridade obediente, que acerta o passo enquadrada em legiões de explicadores (...) um ensino que favorece os passivos, os superficiais e os privilegiados economicamente, em prejuízo dos autónomos, dos inteligentes e dos economicamente débeis"
Senhora Cristina Carvalho, a pergunta que fica é, não são aqueles indivíduos filhos de papás com uma bolsa bem recheada, a que o nosso sistema de ensino assegura o êxito garantidamente?
Tem todo o aspeto disso, mediocridade e falta de falta de inteligência tem quanto baste.
Ali, na antepenúltima linha: "Delas" (das vítimas) e não "Deles".
Cara Cristina,
Venho responder a esta sua crónica para dar a conhecer "o outro lado".
Sou estudante finalista; fui praxada e praxei.
Nunca fui obrigada a frequentar as praxes e nunca obriguei nenhum caloiro a frequentá-las. Aliás, uma das primeiras coisas que me disseram enquanto caloira, quando os "Doutores de Praxe" me abordaram, foi "A praxe serve para integrar os novos alunos na vida académica, e não para os humilhar; se alguma vez te sentires incomodada, basta avisares que ninguém te vai obrigar a fazer nada". E foi mesmo isso que aconteceu - nunca me senti mal enquanto em praxe.
Foi graças à praxe que conheci os meus colegas e agora meus amigos. Fico contente de ter frequentado a praxe, pois era tímida quando cheguei à faculdade e fazer amigos nunca foi uma coisa fácil para mim.
Percebo que nem todas as universidades tenham os mesmos princípios que a minha tem, mas é impressionante ouvir nos meios de comunicação como a palavra "praxe" está necessariamente ligada a algo negativo. Nunca li nenhum artigo que enaltecesse a praxe - talvez porque não se deram ao trabalho de ir ver como é, o que se faz, como as pessoas se relacionam?
Acima afirma "Eles cospem-lhes nas caras, eles arrotam-lhes o resto do jantar de ontem, mordem-lhes, eles despem-nos, pintam-nos, urinam-lhes e defecam-lhes em cima." - diga-me, alguma vez testemunhou presencialmente esta prática bárbara de que fala? Será que pintar as pessoas é algo de tão grave? Muita gente o faz no Carnaval.
Alguma vez foi para um sítio onde estão a realizar praxes para saber o que realmente se passa? Caso a sua resposta seja negativa, convido-a a passar pelo relvado do Campo Grande, onde há praxes de vários cursos e de várias faculdades - basta escolher ou, ainda melhor, ver um bocado de cada uma.
A fotografia retrata realmente uma prática vergonhosa para dizer o mínimo - mas diga-me, sabe se os indivíduos em questão foram obrigados a fazê-lo, ou o fizeram de livre vontade? Não vejo trajados na fotografia, será que estão mesmo em praxe? Com certeza que sabe que a juventude de hoje em dia não tem pudores nem tabus, e cenas como a retratada em cima são cada vez mais frequentes.
O que gostaria mesmo era que, de cada vez que alguém escrevesse um artigo destes, não generalizasse. Há praxes boas e há praxes más. Responsabilizem que pratica as últimas, mas não penalizem os restantes.
Não é minha intenção mudar a SUA opinião sobre a Praxe, apenas que como escritora (como já disse que era), devesse reportar e apontar os erros que vê na Praxe, mas não generalizá-la e tornar o seu texto mais sensacionalista do que outra coisa qualquer.
Apenas por uma questão de curiosidade, quantas Praxes diferentes é que já viu? E por diferentes digo de várias Universidades, faculdades, etc.
Boa noite, cara Núrya
Agradeço, em primeiro lugar, a sua apreciação.
Pois, como a Núrya diz na penúltima linha - Há praxes boas e há praxes más.
Nem mais! Como compreenderá, esta crónica refere-se às praxes más.
Cumprimentos
Cristina Carvalho
Boa noite, Henrique Pereira e agradeço o seu comentário.
Vi muito do que a televisão e outros meios de comunicação social reportaram. Não é por não ter presenciado o sismo no Japão e outros acontecimentos trágicos ou não trágicos que não deixo de sentir e reagir aos acontecimentos do mundo em que vivemos. Declaro que não sou contra as praxes e outros ritos de certo modo iniciáticos que se praticam. Reconheço-lhes, aliás, utilidade enquanto práticas de integração grupal. A minha crónica visa criticar excessos e abusos.
Cristina Carvalho
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