sábado, 8 de setembro de 2012

Cursos do Ensino Técnico no Brasil e em Portugal


Elimina“A escola única é uma ficção, um igualitarismo funcional que nada tem a ver com a igualdade real” (Jean-Luc Mélenchon, ex-candidato às eleições presidenciais francesas de 2012, “L’Express, 22/03/2001).
Meses atrás, deparei-me com o post, Cursos técnicos x bobagens académicas (24/04/2012), publicado no blogue brasileiro, Boteco Escolar - Ensaios sobre uso de blogs em educação. Nele foi transcrito integralmente o meu post, "O Deputado Paulo Rangel, Canudos e Desemprego” (22/04/2012), com a seguinte introdução:“Dias atrás, dois amigos me contaram as bobagens que certos acadêmicos andam fazendo com o ensino técnico no Brasil. A bobagem maior é a de oferecer muita teoria, esvaziando o conteúdo técnico dos cursos. Eu precisaria de mais informações para analisar com cuidado o que está acontecendo. Mas, acho que o texto sobre o assunto, escrito em Portugal, no blog De Rerum Natura, oferece um bom quadro daquilo que meus amigos me contaram. A matéria é escrita pelo educador Rui Baptista e achei por bem reproduzí-la aqui”.

Deveras honrado com o interesse que este meu post despertou no país irmão, publiquei um novo post, aproveitando a boleia do sugestivo título Cursos Técnicos x Bobagens Académicas, que muito foi valorizado pelos comentários aí deixados, mormente um deles, da autoria de um brasileiro, Jarbas Novelino Barato, que vim a saber mais tarde tratar-se de uma personalidade detentora do mestrado em tecnologia educacional pela San Diego State University e doutor em educação pela Unicamp, professor da Universidade São Judas Tadeu com especialização em educação profissional numa prática de mais de trinta anos no Senac São Paulo.
Pelo seu grande interesse, reproduzo esse comentário que muito valorizou o meu post:
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“Rui, Muito bom ler sua crítica à desfiguração do ensino técnico aí em Portugal. Com pequenas mudanças, para tropicalizar a linguagem, tudo o que você escreve cai como luva para as bobagens que fizeram como ensino técnico no Brasil.Não vou muito longe. Começo com a história da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1971. Essa lei, que profissionalizou todo o ensino secundário no Brasil, sucateou o ensino técnico. Acadêmicos que nunca tinham visto uma oficina em suas vidas começaram a ditar regras para a formação profissional nas escolas. Resultado: um desastre, acompanhado pelo desmonte do ensino técnico que foi construído por gente que entendia de trabalho e gostava do que fazia em oficinas e empresas de aplicação (fazendas, lojas e hotéis escolas, por exemplo).

Conto uma história acontecida logo depois da Lei 5692/71. Com a unificação do ensino, carreiras de dirigentes do ensino geral e profissional foram equiparadas. Graças a tal equiparação, diretores de escolas primárias [formados em pedagogia por onde o trabalho não passa] puderam candidatar-se a cargos de direção das antigas escolas técnicas. Uma senhora, com muito tempo de experiência na educação de crianças, assumiu uma das escolas técnicas, da área de tecnologia agrária, situada numa fazenda. Ao inspecionar as instalações, a nova diretora viu um touro magnífico, bem nutrido de carnes. Ordenou que o animal fosse sacrificado para churrasco de posse. O touro da história era uma matriz importada, produtor de material genético que vinha sendo utilizado em experiências de reprodução em todas as escolas técnicas agrárias do Estado de São Paulo...Atualmente está em curso um projeto de educação integrada no ensino técnico brasileiro. A proposta é liderada por acadêmicos cujo saber sobre formação profissional é, quando muito, livresco. A consequência é uma desvalorização da técnica enquanto saber. Há muito que comentar sobre isso, mas fica para uma outra ocasião.
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Se interessar, posso lhe encaminhar duas obras que analisam algumas das dimensões do assunto que é objeto dessa nossa conversa:"Educação Profissional: Saberes do Ócio ou Saberes do Trabalho", e"Saber no Trabalho: Valorização da Inteligência do Trabalhador". Sou autor do primeiro livro. O segundo livro é tradução de obra de Mike Rose, professor da UCLA.Mande-me seu endereço postal para que eu possa encaminhar-lhe as citadas obras. Para tanto, envie mensagem para o meu Email. Grande abraço, Jarbas”.
Como é óbvio, logo agradeci a preciosa oferta, tendo-me chegado, pouco tempo depois, esses dois livros. Do livro do Professor Jarbas Novelino Barata, reproduzo integralmente a explicação por si dada sobre o título do seu livro, ao escrever na respectiva introdução (pp. 31 e 32):
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“O conhecimento marcado pelos rigores intelectuais daquilo que chamamos de filosofia e ciência tem as suas origens no século VIa.C., numa cidade da antiga Ásia Menor, chamada Mileto. Tales, Anaximndro e Anaxímenes, são os primeiros pensadores conhecidos a formularem teorias explicativas e racionais sobre a origem e a evolução da matéria. Inauguraram um modo de pensar, libertado da religião e de mitos, cujo desenvolvimento foi ganhando os contornos daquilo que hoje recebe o nome de ciência. Como observava Gottlieb, segundo Aristóteles a produção dos filósofos de Mileto aconteceu graças ao tempo de lazer de que eles desfrutavam numa cidade cujo comércio internacional liberava alguns dos seus cidadãos para um pensar descomprometido com as coisas do dia-a-dia. Essa associação entre produção do conhecimento e ócio (assim como muitas outras observações de Aristóteles) marcou profundamente a cultura ocidental. Acostumamo-nos assim a ver o conhecimento como teoria desvinculada do fazer.
A tradição aristotélica atravessou séculos e criou uma fronteira nítida entre teoria e prática. É preciso considerar, porém, que as actividades humanas, sobretudo aquelas às quais damos o nome de trabalho, começaram a se estruturar muito antes do surgimento do pensamento descomprometido dos filósofos de Mileto. Embora não fossem frutos de ócio, as técnicas de navegação marítima que garantiam a riqueza de Mileto eram conhecimento. Essa dimensão do saber dos homens não mereceu muita atenção de Aristóteles. Mais que isso: foi ignorada pelo pensamentA tradição aristotélica atravessou séculos e criou uma fronteira nítida entre teoria e prática. Por isso, em situações de educação sistemática, valoriza-se hojeo hegemônico que estruturou a educação sistemática no mundo ocidental.
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No dia-a-dia dos educadores, a valorização dos saberes do ócio e a correspondente desvalorização dos saberes do trabalho aparecem num discurso que subordina a prática à teoria. Mais do que isso: aparece em formulações que reduzem a técnica ao "status" de “mera habilidade”. Neste livro procuro mostrar um caminho que se contrapõe ao modo tradicional de pensar as relações entre o conhecimento construído por sábios que podem contar com tempo livre para elaborar suas teorias e sábios que inventam os fazeres que nos produzem enquanto seres humanos. Para marcar a tensão entre duas tradições distintas do saber, que certamente influenciaram e continuam a influenciar modos de ver percursos de educação profissional, escolhi um título pouco usual para esta obra. À referência ampla do tema (Educação profissional) agreguei uma pergunta que apresenta de modo contundente as ideias propostas neste livro: ‘Saberes do ócio ou saberes do trabalho?’ Espero que a minha contribuição sirva para mostrar que o modo hegemônico de privilegiar os saberes do ócio, nos sistemas e escolas que pretendem formar trabalhadores, empobrecem a educação profissional. Espero, ao mesmo tempo, que a valorização dos saberes do trabalho mostre um caminho que não ignora o conhecimento que nasce das actividades produtivas”.
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Eu, por meu lado, espero (no dizer do povo: “A esperança é a última coisa a morrer") que a introdução deste livro, acima transcrita, seja lida e meditada pelos responsáveis governamentais pelo ensino profissional ou simples opinion-makers para que ilumine as esconsas e escuras vielas para que remeteram o ensino técnico em ambos os países irmãos abastardando a sua verdadeira função e poluindo-a, por vezes, com argumentos que nada acrescentam ao assunto baralhando-o mesmo. Para que tal aconteça é necessário que prevaleça “o soberaníssimo bom senso”, de que nos falou Antero!

3 comentários:

Fernando Caldeira disse...

Caro Rui Baptista

Temos realmente um mau sistema de ensino que não serve os jovens, nem a maioria das famílias, nem o país. Mas estou convicto que a solução não está na recuperação, dentro das escolas normais, do ensino técnico, profissional ou vocacional (designação que considero algo infeliz, digamos). Isso seria prepará-los para o mundo do passado. Mas hoje, felizmente ou infelizmente, também não é fácil criar cenários para o futuro, mesmo imediato. Nas últimas décadas o mundo mudou muito, todas as tecnologias hoje intimamente ligadas à ciência, pelo que mudam a um ritmo a que nunca antes tínhamos assistido.
Pessoalmente penso que a solução estará numa boa preparação científica de base, uma preparação técnica de curta duração (1 ano, ou 2, para as mais especializadas), em centros de formação de associações empresariais (em eventual parceria com o Estado) e, fundamental, uma aposta na formação permanente ao longo da vida.

Sobre os problemas da nossa escola escrevi, há cerca de dez anos, um artigo que o jornal PÚBLICO teve a amabilidade de publicar na altura e que pensei transcrever a seguir pois considero que ainda se mantém actual. Como não foi aceite, devido à sua extensão, deixo o link:
http://jornal.publico.pt/noticia/13-10-2003/e-preciso-mudar-a-escola-206416.htm

Rui Baptista disse...

Caro Fernando Caldeira: Obrigado pelo seu comentário e pela chamada de atenção para o seu artigo no Público. Quanto a mim, todavia, esta é uma discussão sobre uma temática que tem por base um ensino em que a democracia se ajoelhou aos pés da mediocracia. Logo inquinado à nascença. Ou, dito de outra maneira, em que os “alunos” procuram um caminho que os conduza ao almejado diploma, se possível , universitário . Haja em vista alguns dos nossos governantes ou deputados “doutores” ou “engenheiros” por universidades privadas de duvidosa qualidade. Eles são tantos que seria fastidioso enumerá-los havendo até o perigo de alguns continuarem numa conveniente obscuridade.

Por vezes me interrogo se haverá em mim uma certa dose de masoquismo em terçar armas por uma causa perdida à partida por incomodar a mediocridade de uma sociedade em que o saber passou a palavra morta ou, então, pejada de “sábios” (na gíria académica: sabões). Talvez por isso, quando escrevo sobre o ensino técnico do passado (aquele que vivi de perto como docente e permanece impoluto na minha lembrança) mais não pretendo do que tornar-me um homem do meu tempo que não renega (numa sociedade de renegados!) a vivência de alunos obreiros de um passado de nobreza profissional que não deve, nem pode, ser um chão atapetado de causas perdidas que perderam o viço primaveril e desbotaram o verde da esperança. Mesmo no reino científico, segundo Bachelard, “é à organização das ideias antigas que devemos chamar ideias novas”.

Em resumo, não comungo da ideia de um ensino técnico ministrado em escolas secundárias (herdeiras dos antigos e “fascistas” liceus) sem professores devidamente preparados para um ensino essencialmente técnico, mestres (não confundir com este grau académico) que ensinem a fazer e oficinas bem apetrechadas. E,porv último, que os seus alunos tenham orgulho das suas escolas e de uma “ferramenta” que os preparou para uma vida de inegável utilidade social. Já alguém se deu ao trabalho de pensar o que seria de um (não) “admirável mundo novo” pejado de cérebros de engenheiros e engenheiros técnicos sem haver mãos que executassem as orientações vindas de cima?

Aproveito a ocasião para dar notícia deste exemplo apresentado por Jarbas Novelino Barato no seu livro, em reconstituição de uma história contada por Eduardo Rojas, que resumo: “ Em Buenos Aires , um operário de ascendência alemã é encarregado de haver-se com a máquina nova e deveras sofisticada importada da Alemanha que três engenheiros da fábrica conhecedores da língua alemã não conseguiam dela ter tirado o devido rendimento. Depois de vários fracassos, não fosse dado o caso de uma deficiente tradução do respectivo manual, consultaram um tradutor profissional sem resultado evidente. Foi consultado um velho trabalhador da fábrica que depois de várias tentativas, põe de lado os manuais, tateia por ensaio e erro, pondo a máquina a funcionar a contento. Indagado sobre o que tinha feito, o operário responde: “Eu li a máquina!”

Meu caro Fernando Caldeira: muito do mal que sofre o nosso ensino é a sua politização em que a esquerda sindical se arroga do direito em transformar os professores em agentes de um sindicalismo de massas que aponta defeitos sem indicar soluções . Ou então perorando sobre questões com a finalidade de matar à nascença qualquer mudança que não sirva os seus desígnios...de liderança!

joão boaventura disse...

Caro Rui

Atenção à Casa Pia

Ensina-se a arte da relojoaria, ensina-se a arte da carpintaria, ensina-se a arte da metalurgia, a arte do electricista ... ... ...

Ali não há congeminações aristotélicas, ensinam-se as artes dos artistas e põem-se os rapazes a trabalhar no mercado.
Com a vantagem de todos eles terem emprego...!!!!

E com a vantagem de não estarem à espera de normativos a esclarecerem se se chamam escolas técnicas ou quejandos... o que ora interessa é que se façam, que se ensine, que se ponha mão de obra feita e acabada cá fora, independentemente dos nomes, designações ou signos das sedes que os formam.

Um abraço


O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...