sábado, 29 de setembro de 2012

Existe indisciplina no Ensino Superior?

Texto composto a partir de um depoimento que me foi solicitado pelo jornal Expresso e que foi publicado na edição do passado dia 15 de Setembro.
“Tarefas detestáveis de manhã: interrogar três alunos que fizeram sinais a mulheres da rua nos terrenos da Universidade numa tarde de domingo; outros dois que assobiaram no corredor, outro que fumou nos terrenos da Universidade. É para isto que eu sirvo?... A vida que agora levo tem de acabar, ou então será ela que acabará comigo (...). O meu tempo completamente tomado durante todo o dia com os mais repugnantes detalhes de disciplina, capazes de pôr qualquer coração doente: fraude, dissimulação, falsidade, comportamento grosseiro, pais e amigos a aborrecer-me o tempo todo e acreditando estupidamente nas mentiras que os seus filhos lhe contam.”
Edward Everett (reitor da Harvard University), Memórias (1846-1849) [1]
“(…) a disciplina escholar dos estabelecimentos litherários [e punir disciplinarmente] os actos de insubordinação. [Essas punições constavam na] reprehensão dada na presença do secretário da Universidade e notada por elle no livro competente com os motivos que deram logar á demonstração; a participação das faltas literárias e moraies aos paies, tutores ou pessoas em quem possa tocar; a preterição na ordem ou procedência dos actos; a detenção em custódia por tempo de um a oito dias; a sahida da cidade por tempo de seiz mezes a um anno; a exclusão perpetua da Universidade.”
Regulamento da Polícia Académica da Universidade de Coimbra [2]

Existe indisciplina no Ensino Superior?

Existe, mas sem relativizar o problema, é importante destaca que não é um problema novo nem circunscrito em termos institucionais. Relatos vários (de que os acima reproduzidos constitum xemplos) indicam isso mesmo.

Situando-nos no presente. Se temos muitos estudos sobre a indisciplina no ensino básico e secundário, eles são escassos no ensino superior.

O conhecimento que tenho de diversas faculdades, de Letras e de Ciências, leva-me a concluir que os comportamentos dos estudantes variam de instituição para instituição, de curso para curso, de turma para turma. Uma turma dum determinado ano pode manifestar comportamentos preocupantes e a turma do ano seguinte funcionar bem.

É um problema que merece investigação detalhada para que seja possível compreendê-lo melhor e, em sequência, antecipá-lo, preveni-lo, tanto quanto possível, impedir que se manifeste.

Por outro lado, é preciso investir na organização do ambiente das escolas e das aulas de maneira que seja possível ensinar e aprender da melhor maneira possível. Isto beneficia, obviamente, os estudantes portugueses, mas também os estrangeiros, que tenho visto manifestarem desconforto com o que se passa nas salas de aulas.

Razões do problema?

Por parte dos estudantes, eu indicaria três. Uma é o desconhecimento ou insensibilidade a regras básicas de relacionamento interpessoal e de funcionamento de situações formais como as aulas: falar enquanto o professor ou um colega fala, usar um tom arrogante quando se lhes dirige, atender o telemóvel, entrar e sair da aula, chegar atrasado a exames e achar que isso é normal, não cumprimentar, não pedir licença nem agradecer, são comportamentos que ocorrem. Casos há em que esses comportamento predominam e impedem que as aulas decorram com um mínimo de normalidade.

Outra razão é a falta de conhecimentos básicos e de curiosidade intelectual, sendo que uma coisa está muito ligada à outra. O ensino superior surge naturalmente no percurso escolar, não tendo alguns estudantes feito uma escolha consciente: «pretendo, de facto, prosseguir estudos superiores?», «tenho conhecimentos que me permitem acompanhar esses estudos?». Quando faltam os conhecimentos e a curiosidade muito dificilmente se conseguem acompanhar os raciocínios, realizar as tarefas e a tendência para fazer outra coisa que não acompanhar o ensino deve ser grande.

Outra razão, ainda, é a ideia de que todas as tarefas académicas têm de ser agradáveis, práticas, têm de implicar acção e intervenção dos estudantes. Quando isso não acontece, consideram que não estão a aprender verdadeiramente e derivam a sua atenção para algo mais apelativo...

Da parte das instituições escolares, indicaria as razões que se seguem.

Uma delas, a que me parece mais importante, é não se encarar devidamente o problema desde a entrada na escolaridade básica: antes de se intervir na indisciplina é preciso construir um clima de disciplina: organizar (e separar) tempos e espaços de trabalho e lúdicos, estimular as capacidades dos alunos, proporcionar-lhes desafios adequados mas progressivamente mais exigentes, fazê-los perceber um quadro de valores fundamentais...

Outra razão: as próprias instituições de ensino superior têm deixado ao critério dos professores tudo o que se passa nas suas aulas, alegando que eles são autónomos e responsáveis pelo ensino. Isso é verdade, mas quando os problemas de comportamentos passam de pontuais e ligeiros a recorrentes e muito perturbadores não se resolvendo com uma chamada de atenção, os professores ficam numa situação difícil: sabem que mesmo que apresentem a situação a instâncias superiores, estas podem não ter os instrumentos normativos para lhe fazer face e, mais importante do que isso, temem os juízos que se possam fazer deles: que não sejam suficientemente interessantes e dinâmicos para prenderem os alunos, para estabelecerem uma boa relação com eles... Isto para não falar na avaliação formal a que estão sujeitos. Tudo isto é muito desgastante...

O que se pode fazer?

A abordagem deve ser primordialmente de carácter institucional. Cada escola pode e deve reconhecer que o problema existe. A este aspecto primordial deve associar-se o acolhimento àquilo que os professores e os alunos têm para dizer sobre o assunto, ponderar os casos que ocorrem e procurar soluções. Enfim, fazer tudo o que estiver ao seu alcance para potenciar ambientes calmos e produtivos sob o ponto de vista do ensino e da aprendizagem.

Algumas universidades começam a tomar medidas formais (por exemplo, a Universidade de Coimbra aprovou recentemente o seu regulamento disciplinar e a Universidade de Lisboa está a prepará-lo), que constituem suportes válidos em casos concretos. Porém, e sem lhes retirar importância, há um trabalho fundamental a fazer em termos de investigação e em termos pedagógicos.

[1] Citado em Harvard Alumni Bulletin de 1 de Maio de 1965, 583 in Sprinthall, N.A. & Sprinthall, R.C. (1993). Psicologia Educacional: uma abordagem desenvolvimentista. Lisboa, McGraw-Hill, página 528.
[2] Citação de M. R. Coimbra (1991, 330) in José Ramos Bandeira, Universidade de Coimbra, Coimbra, Casa do Castelo, 1947, 2.º vol., página 140. Este Regulamento estava em vigor no século XIX.

3 comentários:

José Batista disse...

Sim, Professora Helena Damião

..."não se encarar devidamente o problema desde a entrada na escolaridade básica" é um problema terrível.
Muito agravado pelo facto de muitos psicólogos, e (alguns) psiquiatras, de que é exemplo o Professor Daniel Sampaio, se terem esforçado muito por distinguir "indisciplina" de "violência", como forma de, já nem digo desculpabilizar, mas de aceitar como normal a primeira.
Esquecendo(-se de) que a aceitação da indisciplina (enquanto comportamento repetido e persistente) como coisa normal prejudica a aprendizagem de quem não é indisciplinado e torna-a uma violência sobre os profissionais ( funcionários, educadoras infantis, professores...) que lhe sofrem a ação desgastante. O que redunda em mais prejuízos para a generalidade dos alunos.

E querer fazer sentir aos professores (como foi prática nas últimas décadas) que certos casos de indisciplina eram uma prova da incompetência deles era simplesmente obsceno.

Ora, isto são coisas que toda a gente sabe, não é preciso ser "especialista" de coisa nenhuma.

Biblioteca Escolar Clara Póvoa disse...

Finalmente vejo abordado um problema que se está a tornar recorrente no ensino superior e que apenas se fala em privado.
Talvez assim os críticos permanentes do ensino não superior, que constantemente assacam aos professores e às escolas as responsabilidades dos maus resultados dos alunos, percebam que não se consegue ensinar quando os alunos consideram que estar na conversa numa sala de aula é um comportamento normal. Talvez assim percebam que o problema nem sequer está em se desenvolverem competências versus conteúdos (falsa questão na maior parte dos casos), mas na total impossibilidade de se ensinar seja o que for, porque, com demasiada frequência, ou se tem alunos completamente amorfos ou se tem alunos indisciplinados. E não é apenas no ensino superior que a indisciplina fica nas mãos dos docentes. Não há uma ação concertada que leve todos os professores a considerar que não é admissível que os alunos oiçam música nas aulas, joguem nas calculadoras ou nos telemóveis, conversem...Mas, se já é difícil impor a disciplina numa turma de 20 alunos, torna-se completamente impossível em turmas de 30,em espaços exíguos, onde mal se consegue circular.

Armando Quintas disse...

Eu ainda sou do tempo que os pais davam educação em casa, que os pais diziam aos professores da primária: bata-lhe se ele se portar mal!
Se a educação e o bom comportamento fossem de facto ensinados pelos pais e se não tivéssemos um socialismo muito português que só vê direitos sem deveres e não reforma o sistema punitivo, teríamos menos de metade dos problemas atuais.
A indisciplina provêm da má educação, de se prejudicarem terceiros com as suas acções e nem se querer disso saber. Instalemos um sistema punitivo que já existia antes dos psicólogos de chachada e veremos, comecemos por punir os pais pela má educação dos filhos, de certo que os resultados começarão a surgir.

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...