quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A PALAVRA NO ENSINO E NA DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA

Novo texto do Professor Galopim de Carvalho.
Divulgar, no sentido de espalhar conhecimento entre o vulgo, e ensinar na escola pressupõem o uso de palavras acessíveis a quem as ouve ou lê e a necessária descodificação dos jargões próprios das diferentes actividades ou disciplinas. O discurso do divulgador, como o do professor, tem de ser simples, sem perda de rigor, apelativo e, sempre que possível, agradável. Façamos, pois, o jogo das palavras e vejamos como elas nos abrem à melhor compreensão do Mundo.

Ao escrever sobre temas de Geologia em livros de ensino e de divulgação, revistas, jornais e, nos últimos anos, também em blogues, tenho tido em vista habilitar os leitores com elementos fundamentais à compreensão do mundo físico que habitamos, na convicção de que alguns deles são professores das nossas escolas básicas e secundárias, públicas e privadas, onde o ensino desta disciplina tem forçosamente de melhorar de conteúdo e de estilo, sob pena de continuarmos com o défice de cultura científica nesta área fundamental à nossa formação como cidadãos.

Salvo as excepções que valorizam a regra, este défice caracteriza a sociedade portuguesa a todos os níveis, dos governantes aos mais humildes, governados, dos médicos e enfermeiros aos auxiliares de saúde, dos industriais e comerciantes aos militares e aos funcionários públicos, dos artistas de todas as artes aos jornalistas, politólogos e comentadores de serviço, dos juristas e economistas ao operariado urbano e rural, aos motoristas de táxi e à malta do pontapé na bola.

De forma avulsa, simples e de leitura acessível ao comum dos cidadãos, estes textos constituem uma abordagem ao conhecimento de um certo conjunto de conceitos, e respectivos vocábulos, uns traduzíveis por palavras do domínio vulgar, como granito, erosão, montanha, minério, gás natural, vulcão e muitos mais, e outros tão afastados do nosso quotidiano, como anatexia, obducção, lamproíto, alodápico, gliptogénese, huttoniano, num nunca mais parar de palavras que perfazem o léxico das ciências da Terra, em número de alguns milhares. A palavra, dizem os entendidos, é uma característica exclusivamente nossa, que nos distingue dos restantes animais a que, de um modo demasiado simplista, chamamos irracionais.

Esta nossa capacidade reside nos escassos pontos percentuais que nos distanciam do código genético dos primatas. Porque não aproveitar então essa capacidade e fruir os bens que o saber e o pensar nos oferecem?

Já em 1732, Domingos Rodrigues, cozinheiro da Casa Real, escrevia «Não devem os homens só saber para si, porque isso é enterrar o talento que Deus lhes deu, devem sim comunicar os empregos de sua habilidade, para que os menos inteligentes, ou aprendam o que não sabem ou saibam o que não aprenderam».

À semelhança dos restantes domínios científicos, os neologismos criados pelos cultores das ciências da Terra, uns estão sancionados pela comunidade científica da especialidade e muitos outros têm vindo a cair em desuso e, por isso, ditos obsoletos. Todos eles, no entanto, se revestem de interesse para o conhecimento das origem, natureza e evolução desta “Bola Colorida” perdida na imensidão do cosmos, que é a nossa casa e onde, por enquanto, reside tudo o que temos, o ar, a água e o chão que pisamos e nos dá o pão. Assim, não se pode deixar de usar uma terminologia própria, na maioria pouco comum no dia-a-dia do cidadão comum, mas cujos conceitos, no geral simples e muitos deles evidentes, são indispensáveis à sua formação.

Como em qualquer disciplina científica, a terminologia utilizada foi sendo criada pelos respectivos estudiosos, quer no passado, por um número relativamente reduzido de sábios, como eram então designados, quer no presente, em que todos os dias surgem novos termos como resultado do trabalho de uma vasta comunidade de geólogos, mineralogistas, petrógrafos, geoquímicos, geofísicos e outros.

Oriundos das classes tidas por mais cultas, bebendo sabedoria nos autores clássicos, os primeiros criadores de conhecimento científico, na imensa maioria ligados à Igreja, sempre privilegiaram os caminhos da erudição. Surgidos durante a Renascença, mas sobretudo a partir do século XVIII, estes estudiosos foram engrossando os seus léxicos com termos construídos geralmente a partir de raízes ou étimos procurados no grego antigo e no latim, línguas clássicas só acessíveis a essas elites, uma minoria na sociedade de então. O número desta classe de homens interessados na ciência aumentou substancialmente a partir da centúria de novecentos, em consequência da abertura do espírito aos ideais do Iluminismo e da Revolução Francesa e, desta vez, fora das amarras da Igreja.

Todavia, este tipo de ocupação manteve-se confinado a uma elite sociocultural e só se libertou desta tutela no decurso do século XX, com a democratização da investigação científica. Não obstante esta evolução, a terminologia científica manteve-se, por tradição, erudita, ao mesmo tempo que o estudo do grego e do latim foi deixando de fazer parte dos curricula escolares de base.

Hermética quando lhe desconhecemos o significado, abre-se-nos de imediato à compreensão se lhe descodificarmos os elementos constituintes, sendo este um dos papéis do pedagogo. Assim, por exemplo, limnologia um termo criado a partir do grego, limné (lago) e logos (estudo, conhecimento), e outros, ainda menos frequentes, passam a ser tão compreensíveis como os que fazem parte do nosso vocabulário corrente.

A mais simples e vulgar das palavras é tão importante na comunicação, rápida e precisa, do nosso quotidiano, como qualquer vocábulo especializado da mais sofisticada linguagem técnico-científica. Qualquer actividade humana tem, pois, a sua própria linguagem feita de palavras faladas e escritas. Via de regra, um físico teórico, um imunologista ou um maestro não sabem o que é um “badame”, mas um velho carpinteiro teve-o nas mãos e alisou com ele muitas pranchas de madeira; nunca ouviram falar de “ferro de brunir” mas os raros sapateiros que vão resistindo à sociedade de consumo, lidam todos os dias com a ferramenta de dar brilho, com cera, às viras dos sapatos.

Se é certo que entre as sociedades mais primitivas se pode conviver com um número reduzido de palavras ou expressões, na ordem das centenas, um técnico especializado, um cientista ou um qualquer intelectual usam milhares de termos e expressões familiares entre pares, mas inacessíveis à maioria dos cidadãos. Quem é que entende o falar de alguns médicos, economistas e juristas quando, entrevistados na rádio ou na TV, se esquecem da função pedagógica que poderiam e deveriam ter? A erudição, todos sabemos, ainda é, muitas vezes, usada como estatuto de classe. Mas são precisamente os detentores dessa erudição que têm o dever de como escreveu Domingos Rodrigues, no século XVIII, «…comunicar os empregos de sua habilidade, para que os menos inteligentes, ou aprendam o que não sabem ou saibam o que não aprenderam».

No discurso próprio das ciências da Terra, para além da nomenclatura de âmbito geral, há que estabelecer contacto com uma outra, repleta de termos mais especializados. A verdade é que não podemos dispensá-los se quisermos tornar claros meia dúzia de conceitos básicos necessários ao conhecimento de alguns dos materiais e processos geológicos com que diariamente convivemos. Uns, como se disse, são expressos por termos acessíveis ao comum dos cidadãos, outros, menos usados, têm significados precisos e essenciais à compreensão dos temas próprios desta disciplina científica, sendo sempre necessário descodificá-los.

Se o vocabulário de uma qualquer área do conhecimento não for suficiente e correctamente explicado e se, pelo contrário, for debitado como algo a memorizar, em cumprimento de um programa mal concebido ou mal interpretado, o que acontece no mau ensino, um tal vocabulário acaba sempre, mais tarde ou mais cedo, por ser lançado no caixote do esquecimento, por desnecessário e enfadonho, deixando assim espaço para coisas tidas por «mais interessantes», com evidente e grave prejuízo a nível da formação que a escola tem o dever e a obrigação de dar.

De tão vasto vocabulário poderá concluir-se que não foram simples, mas antes múltiplos e complexos, os caminhos percorridos pelos criadores do conhecimento científico e do respectivo vocabulário, complexidade e vastidão que temos sempre maneira de apresentar numa linguagem dirigida aos não especialistas. Ao professor e ao divulgador compete, a cada momento e sempre que oportuno, começar por «traduzir por miúdos» os termos que não pode deixar de utilizar.

É neste compromisso, devidamente acompanhado de equilíbrio entre o uso da terminologia especializada e a sua descodificação numa linguagem acessível e, se possível, atraente, que reside o êxito da transmissão do conhecimento, quer na aula, na palavra falada, do professor para os alunos, quer na palavra escrita, do autor para o leitor.

No passado ainda recente aceitava-se como normal a existência de elites intelectuais exercendo actividades como ler, escrever e outras, consideradas menos interessantes e nada apelativas por parte de uma população maioritariamente ignorante nesses domínios, a quem apenas se pedia ou exigia trabalho braçal. Estereotipados pelo romantismo em grandes bibliotecas escuras e bafientas, entre livros poeirentos e teias de aranha, os sábios de então eram tidos por criaturas estranhas, tantas vezes meio loucas e até, nalguns casos, com eventuais ligações a Lucifer. Entre o vulgo, poucos ou nenhuns tinham acesso ao trabalho pioneiro destes precursores da investigação científica.

Foram poucos os homens e muito raras as mulheres aspirantes à investigação científica, actividade que, para a imensa maioria dos cidadãos, era destituída de qualquer atracção. Estudar? Matar a cabeça, para quê? São expressões em declínio, mas que foram o dia-a-dia de gerações e gerações e ainda o são numa parte importante da sociedade dos nossos dias, mesmo em muitos dos países reconhecidos como democráticos.

Cidadania e conhecimento são indissociáveis e, assim, este tem forçosamente de ser democrático, como bem escreveu Keay Davidson, o notável biógrafo de Carl Sagan. Em complemento da sua nobre missão de ensinar, o professor deve fazer sentir esta realidade aos seus alunos, em especial aos mais desprotegidos e atingidos pela exclusão social que grassa em tantas escolas marcadas pela suburbanidade crescente que caracteriza as sociedades desenvolvimentistas.

O sistema social e político dominante na sociedade capitalista continua a promover e alargar o fosso entre os que estudam, e assim aspiram e conquistam o direito à cidadania, e os outros. Transmitir esta mensagem aos jovens é um dever moral, essencial na luta contra o insucesso escolar e pelo direito a uma condição humana de maior dignidade. Não é fácil, mas não é impossível esta tarefa.

Há que saber ganhar a confiança dos alunos e, também, o seu afecto. Feliz do estudante que goste da convivência com o seu professor. Essa relação é decisiva na sua atitude face à escola e ao gosto pelo saber. Duplamente feliz se esse professor estiver à altura do seu papel que, para além de educacional, é, sobretudo, social.

Galopim de Carvalho

2 comentários:

José Batista disse...

Ao Professor Galopim de Carvalho

OBRIGADO, OBRIGADO, OBRIGADO

E agora (até) já deixou de ser crime nas escolas dizer ou escrever "É neste compromisso, devidamente acompanhado de equilíbrio entre o uso da terminologia especializada e a sua descodificação numa linguagem acessível e, se possível, atraente, que reside o êxito da transmissão do conhecimento, (...) na aula, na palavra falada, do professor para os alunos,(...)"

Pois é. E dito por si, senhor Professor, ninguém se levantará para o negar.

Espero eu.

José Batista da Ascenção

Ildefonso Dias disse...

Professor Galopim de Carvalho;

É para mim seguro que o Senhor Professor Galopim de Carvalho deve ser um admirador da vida e da Obra do Professor Bento de Jesus Caraça, além de que, têm a afinidade de ser também Alentejano.

Este texto que o Senhor escreve bem podia ser uma súmula daquilo que foi a linha geral de orientação e ação do Professor Bento de Jesus Caraça, que muita gente desconhece ou prefere desconhecer por motivos inconfessáveis; lembro aqui a Biblioteca Cosmos e os seus objetivos; os Conceitos Fundamentais da Matemática; o que eram as assistências nas suas aulas e os alunos que vinham de todo o lado para as assistir; as suas conferências, etc. (tudo se reflecte por assim dizer neste seu texto).

Será que o Senhor Professor Galopim de Carvalho teve a necessidade de escrever este seu texto após a leitura dos comentários, infelizes, do Senhor Professor José Baptista da Ascencão no post do DRN “Da maldade de cada dia nos livrai hoje: A propósito de uma ilustração” ? Não sei, mas eu inclino-me a pensar que sim.

Seja como for o Senhor Professor Galopim de Carvalho escreve agora de forma precisa e clara aquilo que eu entendo que é uma boa lição (resposta) para o Professor José Baptista da Ascencão. O Senhor cumpre o dever dos homens honestos da ciência que é o de esclarecer os outros.

Professor Galopim de Carvalho, se alguém depois de ler (este seu texto) lhe perguntar, se o Senhor Professor, é alguém no mundo, perfeitamente consciente da sua posição no cosmos? essa pergunta só pode ser, no mínimo, uma maldade. Obrigado

Aceite os meus cumprimentos cordiais,

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...