Meu texto publicado na última "Rua Larga", Revista da Universidade de Coimbra:
Na Revolução Científica, a ciência
apareceu em estreito conluio com as artes. O dia de nascimento da Física pode
ser datado - conforme recentemente escreveu Jorge Calado, na sua obra Haja Luz! (IST Press, 2011), onde alia
magistralmente a história da ciência e das artes - no dia nove de dezembro de
1609, quando o físico italiano Galileu Galilei olhou para a Lua usando o
telescópio que ele próprio tinha construído. Não só olhou como descreveu e
desenhou o nosso satélite. Galileu, filho de um músico que lhe tinha dado uma
formação humanista, revelou-se logo, para além de um extraordinário cientista,
também um talentoso artista.
O escritor contemporâneo Italo
Calvino não tem dúvidas em considerar Galileu o maior escritor (entenda-se
prosador, para que Dante não saia prejudicado) de língua italiana. Escreveu
Calvino (Ponto Final, Teorema, 2003):
“O maior escritor de língua italiana de todos os séculos, Galileu, mal se põe
a falar da Lua eleva a sua prosa a um grau de precisão e evidência e ao mesmo
tempo de rarefação lírica prodigiosas. E a língua de Galileu foi um dos modelos
da língua de Leopardi, grande poeta lunar...” E noutro trecho: “Na direção em que trabalho agora encontro
maior alimento em Galileu, como precisão de linguagem, como imaginação
científico-poética, como construção de conjecturas.“
Em 1610,
Galileu publicou uma obra seminal da ciência mundial, de que só recentemente
surgiu edição portuguesa. Sob um título de recorte literário - O Mensageiro
das Estrelas (Fundação Gulbenkian, 2010) - o autor narra as suas
observações com o telescópio não só da nossa lua como das luas de Júpiter. Galileu
escreve em grande estilo: “Grandes, coisas, na verdade, são as que proponho
neste pequeno tratado para que sejam examinadas e estudadas por cada um dos que
dos que estudam a Natureza. Coisas grandes, digo, pela própria excelência do
assunto, pela sua novidade absolutamente inaudita e ainda por causa do
instrumento com o auxílio do qual elas se tornaram do qual manifestas aos
nossos sentidos.” E a seguir: “Daí, consequentemente, que
qualquer pessoa compreenda, com a certeza dos sentidos, que a Lua não é de
maneira nenhuma revestida de uma superfície lisa e perfeitamente polida, mas
sim de uma superfície acidentada e desigual, e que, como a própria face da
Terra, está coberta em todas as partes por enormes protuberâncias, depressões
profundas, e sinuosidades.” O autor “convida todos os amantes da
verdadeira filosofia para o início, seguramente, de grandes contemplações.” O
novo instrumento era o posto avançado do olho que, por sua vez, é o posto
avançado da mente. Com a mente ampliada instrumentalmente, o homem conseguia
ver o invisível. E a Terra passava a estar unida aos céus. A Lua era, afinal,
aparentada à Terra; era uma parte do mundo que habitávamos, imperfeito, e não
uma parte de um outro mundo, perfeito, tal como a visão aristotélico-tomista,
bem retratada na Divina Comédia de Dante, advogava.
Mas não foi só no domínio literário das artes que Galileu se distinguiu. Como desenhador de notáveis esboços da Lua, incluídos no Mensageiro dos Céus, não deixou os seus créditos em artes visuais por mãos alheias. A Lua aparece-nos, tal como era e tal como é (basta aceitar o convite e olhar para lá com um telescópio), polvilhada de crateras, às quais o autor, com base na observação das sombras, atribuiu grande profundidade após admitir que as leis da formação das sombras são as mesmas na Terra e na Lua, num primeiro reconhecimento da universalidade das leis físicas. Pouco depois, um pintor amigo de Galileu, Lodovico Cardi, mais conhecido por Cigoli, do nome da sua terra natal, introduziu uma Lua realista, toda ela esburacada, aos pés da Virgem Maria. Este reflexo quase imediato da ciência nas artes pode ser visto na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma, num fresco pintado em 1610 e 1612. Galileu e Cigoli discutiram por carta a superioridade da pintura sobre a escultura. O crítico de arte Erwin Panowsky escreveu um livrinho intitulado Galileo as a Critic of the Arts (M. Nijhoff, 1944), onde apresenta esse diálogo. Segundo ele: “Se a atitude científica de Galileu influenciou o seu sentido estético, a sua atitude estética poderá também ter influenciado as suas convicções científicas, Para ser mais preciso, como cientista e como crítico de arte pode dizer-se que ele obedeceu às mesmas tendências orientadoras.”
Como se vê, a ciência e as artes interpenetraram-se no trabalho pioneiro de Galileu. O físico Mark Peterson, num livro recente Galileo’s Muse (Harvard University Press, 2011), vai mais longe: defende que a Revolução Científica é anterior a Galileu, por ter as suas raízes na arte renascentista, em particular na apropriação da matemática que pintores, arquitetos, músicos e poetas fizeram para derrubar o edifício da filosofia medieval, muito antes de os cientistas prosseguirem tal tarefa. Por exemplo, o arquiteto florentino Filippo Brunelleschi, a quem é atribuída a invenção da perspetiva na alvorada do século XV, usou os ensinamentos antigos de Euclides para conseguir dar no plano a ilusão do mundo em relevo. Por outras palavras, a arte abriu caminho à ciência moderna. Basta ir ao Museu do Prado para reparar na revolução que foi a passagem da pintura medieval para a pintura renascentista: o mundo passou de plano para tridimensional. A nossa visão estava a mudar através das artes e a eclosão da ciência moderna não haveria de tardar para completar a mudança.
O papel da
música não pode ser olvidado. É no Renascimento que se passa da polifonia,
centrada na voz humana, para a harmonia, apoiada em instrumentos. O pai de
Galileu, que tocava alaúde, estudou a matemática das cordas vibrantes e
desempenhou um papel na passagem da música polifónica para a música barroca. O
filho não tinha para a música os mesmos talentos que para a escrita e o desenho
(o irmão Michelagnolo, esse sim, seguiu a profissão do pai). Mas foi um seu
contemporâneo, o alemão Johannes Kepler, que imaginou, usando proporções
matemáticas, os céus como um lugar governado pela música. Harmonias do Mundo
(1619), do qual há tradução portuguesa parcial em Aos Ombros de Gigantes
(Texto Editores, 2010), é o título de um dos seus livros mais
famosos. Nele, Kepler recuperou a tradição pitagórica da “música das esferas”,
defendendo o primado estético nas ciências. Galileu correspondeu-se com Kepler,
embora nunca se tenham encontrado. Foi Kepler que, descontados alguns devaneios
místicos, prosseguiu na senda de Galileu, ao matematizar as órbitas celestes,
que deixaram de ser perfeitas (circunferências) para passarem a ser imperfeitas
(elipses). Se Galileu tinha reconhecido o papel imprescindível da matemática na
compreensão do Livro da Natureza, coube a Kepler ler, com mais pormenor,
as páginas desse livro referentes aos céus. A matemática passou a ser um guia
para a mente que procura decifrar o mundo.
Que têm hoje, quatro séculos após
Galileu e Kepler, após um desenvolvimento explosivo do empreendimento
científico, a ciência e as artes em comum? Muito mais do que, em geral, se
imagina. Pegue-se logo nesta palavra: imaginar, isto é, criar uma imagem na
mente. De facto, a imaginação é a mola da ciência tal como é a mola das artes.
Para Einstein, a imaginação “é mais
importante do que o conhecimento pois o conhecimento é limitado, ao passo que a
imaginação envolve o mundo”. Mas, sendo ambas propulsionadas pela
imaginação, porque são a ciência e as artes tão diferentes? Acontece que a
criatividade na ciência tem de se cingir à “imaginação” do mundo, enquanto na
arte a imaginação pode ser mais livre. Tal não significa que a ciência seja
limitada, uma vez que toda a história da ciência no-lo ensina, a ”imaginação”
do mundo é, ou pelo menos parece ser, ilimitada. A busca de Kepler de harmonias
escondidas no cosmos prossegue nos dias de hoje – vide a busca de uma teoria de
unificação de forças, dominada pelo conceito de simetria – e, muito
provavelmente, é um empreendimento sem fim.
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