Jorge Carreira Maia faz uma boa crítica à minha crónica de hoje no Público. Invoca Condorcet (1743–1794), que foi um dos defensores do ensino universal. Como John Stuart Mill (1806–1873) e outros filósofos que defenderam o ensino universal, Condorcet estava perfeitamente ciente dos perigos do controlo estatal do ensino e por isso distinguia cuidadosamente educação de instrução. A instrução seria o ensino de conteúdos e competências sem carga ideológica, ou com o mínimo possível de carga ideológica; no caso da história, por exemplo, seria o ensino tão objectivo quanto possível da história, e não de uma leitura ideológica da história. A educação, pelo contrário, competiria exclusivamente à família e não ao estado, precisamente porque envolve muito mais além dos conteúdos e competências independentes de opções pessoais, ideológicas, religiosas ou partidárias.
A distinção de Condorcet (que Mill também faz no livro Sobre a Liberdade, que toda a gente devia estudar cuidadosamente) é sistematicamente violada por todos os estados e sempre o foi. É como ter o monopólio da imprensa, ou um quase monopólio, e ter a esperança de que o estado use esse poder de modo sábio e prudente. Isso é pura e simplesmente impossível.
No séc. XVIII, e até ao séc. XIX, defender o ensino controlado pelo estado era a única maneira de conseguir efectivar o ensino universal. É hoje difícil ter consciência de que a generalidade das pessoas bem pensantes, até ao séc. XX — o que incluía os funcionários do estado — considerava a ideia de ensino universal um completo disparate: os pobres ignorantes eram pobres e ignorantes por serem estúpidos, pelo que tentar ensinar-lhes física e história era visto como absolutamente ridículo; era como tentar ensinar um cão a compor sinfonias.
Historicamente conseguiu-se conquistar o ensino universal por diversas razões, e nem todas angélicas: os industriais precisavam de empregados instruídos, e sem essa necessidade talvez o ensino universal fosse ainda hoje uma miragem. Na verdade, ainda hoje quase todas as pessoas que se manifestam publicamente sobre o ensino mostram que a sua preocupação central é com o efeito económico negativo da falta de qualidade do ensino; não mostram qualquer preocupação, geralmente, com o facto de o ensino em si ser a actividade de pôr os seres humanos em contacto com o conhecimento, que tem valor em si, independentemente de ter valor instrumental (que também tem).
Na verdade, é esta instrumentalização do ensino que mostra que o sonho de Condorcet é impossível: se o estado detiver o monopólio do ensino, irá inevitavelmente instrumentalizá-lo. As opções curriculares, os conteúdos e as competências eleitos como centrais não o serão em função das reais necessidades e vontades das pessoas, mas em função de visões políticas discutíveis, geralmente mal pensadas e fantasiosas. Usando os conceitos de Condorcet, os governantes usam o estado para controlar a instrução, transformando-a em educação: para moldar a sociedade do futuro, controlando as mentalidades — uma gloriosa psicofoda.
O objectivo do meu artigo é chamar a atenção para o facto de que hoje o ensino universal é um dado adquirido. E por isso não precisa já de ser público; pode ser privado. Outra coisa é saber como fazer isso. Os intelectuais portugueses têm uma desconfiança instintiva do sector privado, em parte talvez porque são eles mesmos funcionários públicos e têm dificuldade em conceber que se possa viver do ensino e da investigação, dos livros e da cultura, sem ser com as esmolas do estado. Esta desconfiança limita-se a trair o facto de o nosso país ser tão centralista que quase toda a gente que trabalha na "indústria do conhecimento" (para usar a única terminologia que algumas bestas compreendem) trabalha à sombra do estado. Mas pensar que esta é a única forma de organização social é tão provinciano como pensar que sem o monopólio dos jornais por parte do estado ninguém estará interessado em fazer e financiar jornalismo de qualidade.
Na verdade, a qualidade do ensino é geralmente inversamente proporcional ao controlo estatal exercido sobre o mesmo. Algumas das melhores universidades do mundo são instituições privadas norte-americanas; as universidades alemãs, que serviram de modelo à criação das universidades norte-americanas nos anos trinta, quarenta e cinquenta do séc. XX, eram públicas mas absolutamente autónomas em relação ao poder político. As universidades britânicas são todas públicas, mas até muito recentemente eram como as alemãs eram: tinham completa autonomia. Hoje, vivem afogadas em controlos burocráticos, pelo que a sua qualidade irá inevitavelmente cair. A autonomia universitária é tanto mais impossível quanto mais dinheiro o estado investe nelas; enquanto o ensino universitário era uma coutada de ricos, o estado não tinha qualquer interesse no controlo das mentalidades porque aquelas pessoas em qualquer caso já tinham a mentalidade que o estado queria que elas tivessem. Mas quando o ensino se universaliza, o estado não pode já correr o risco de ter pessoas a pensar autonomamente e ainda por cima instruídas.
Finalmente, note-se que do facto de o ensino ser privado não se segue que visa o lucro. Pode visar o lucro, mas não tem de o visar. Podem ser cooperativas de professores, que visam exclusivamente gerar o dinheiro necessário para se sustentarem.
Em todo o caso, os jornais privados visam o lucro, mas nem por isso são todos de péssima qualidade e muitos são de muito melhor qualidade do que seriam se fossem públicos. Quando uma instituição de ensino visa o lucro, significa apenas que há um conjunto de investidores por detrás da instituição que querem dividendos. Mas se forem investidores inteligentes sabem que a melhor maneira de garantir dividendos é deixar o ensino entregue a quem sabe ensinar: os professores. Tal como os investidores dos jornais sabem que têm de deixar o jornalismo aos jornalistas.
Haverá boas e más escolas, se forem todas privadas? Sim. Mas também há boas e más escolas sendo todas ou quase todas públicas. E não há qualquer razão para pensar que as piores escolas privadas serão piores do que as piores escolas públicas, ao passo que há todas as razões para pensar que a média da qualidade das escolas, se forem todas independentes do estado, será muitíssimo superior ao que acontece hoje, em que todas as escolas são ideologicamente controladas pelo estado. Que razões são essas? O simples facto de se introduzir dinamismo e liberdade no ensino; diferentes escolas farão diferentes apostas, as mais bem-sucedidas serão copiadas, as outras desaparecem, porque as pessoas tentam escolher o melhor para os seus filhos.
terça-feira, 8 de julho de 2008
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78 comentários:
Você pode defender a privatização do ensino como muito bem lhe apeteça, mas podia fazer o favor a quem o lê de não demonstrar a sua ignorância.
As reservas de Condorcet ao domínio do estado sobre a “instrução”, contextualizados no seu tempo histórico, não são transmissíveis dessa forma para os dias de hoje. Pelo menos nos países onde o ensino já não é monopólio da religião, como sucede no nosso. Mas como não sucedia no tempo dele. Não insulte o homem, introdutor do princípio do ensino laico em França, que ele não está cá para se defender. Entendido?
A alarvidade de o ensino da História poder ser “objectivo” e “sem carga ideológica” é velhinha, tão velhinha como a demonstração de uma simples cronologia de factos ter uma carga ideológica. É que os factos seleccionam-se, e toda a História é uma leitura do passado feita de um presente. O resto é mistificação ideológica pura, e como tal demonstrado está desde meados do século passado.
A educação é sempre uma transmissão de ideologia, seja orientada pelo estado, pela religião, pela família, ou pelo Desidério.
Quanto ao cerne da questão, a sua escolha de exemplos é uma brilhante demonstração do mesmo. Fala-nos das universidades privadas daqui e dali, mas porque não usa como exemplo as portuguesas? E arranje-me lá um exemplozito da qualidade de ensino não universitário num país onde ele esteja privatizado?
Devo dizer que este seu texto, e a crónica do Público, me agradaram sobremaneira: a sua obsessão compulsiva pela examinomania, o seu anti-eduquês primaríssimo, ficam desta vez clarificados: o Desidério Murcho critica o ensino público porque quer tudo na mão dos privados. Ora, e considerando a ICAR uma instituição privada conceito que historicamente admito discutível, digo-lhe que para esse peditório já demos. É que o ensino em Portugal já foi pertença dessa Igreja. Com péssimos resultados. E se fosse novamente pago pelo Estado para ser aberto à "livre concorrência" tem alguma dúvida de quem se chegaria logo à frente, como de resto já faz? Com brilhantes resultados onde pode seleccionar os alunos, e péssimos onde é obrigada a todos receber?
João Cardoso
Acho que o Desidério, não tem esse ideologia:
"o Desidério Murcho critica o ensino público porque quer tudo na mão dos privados"
Acho que o objectivo dele, é demonstrar que o facto de ser privado, não faz dela necessariamente má. Deste modo, ele vai ao estrangeiro buscar exemplos, para provar o que ele está a dizer:
"Algumas das melhores universidades do mundo são instituições privadas norte-americanas"
Além de que, no final ele diz:
"Haverá boas e más escolas, se forem todas privadas? Sim. "
Parece-me a mim, uma opinião imparcial sobre o assunto.
Rui.
Desculpe Desidério mas espanta-me a falta de rigor da sua analise. Os erros mais salientes são os seguintes :
1. Nem tudo o que é de iniciativa privada tem o lucro como objectivo (as associações não visam o lucro).
2. Não existe monopolio publico do ensino em Portugal, mas apenas definição legal e regulamentar dos programas de educação que devem ser administrados pelos estabelecimentos autorizados a conferir diplomas publicos (ou com equivalência reconhecida).
3. A definição de programas de educação é um corolario da existência de um serviço publico de educação. Ora esse serviço publico justifica-se porque é de interesse geral todos os cidadãos aprenderem, em condições de igualdade, noções fundamentais para que possam ter uma vida digna, e também para que possam agir com responsabilidade (inclusive politica).
4. O Desidério parece desconhecer que em democracia (vivemos em democracia desde 1974, deu por isso ?) o Estado não é uma entidade abstrata nem um monstro burocratico, é um conjunto de orgãos que se regem pelo principio da legalidade democratica, ou seja por regras definidas pela Assembleia da Republica, onde estão os representantes eleitos do povo. A exitir um risco de "instrumentalização do ensino", o risco seria sempre inversamente proporcional ao controlo dos objectivos e dos meios da educação pelo Estado. Os privados (as empresas, as seitas, as igrejas, etc.) é que podem intrumentalizar o ensino, e não a administração publica, que age de acordo com normas legais, publicas, fruto de um debate politico...
5. A existência de um serviço publico de educação não é incompativel com o principio da liberdade de ensino. Em França, pais onde o ensino publico tem muita força, o codigo da educação consagra a liberdade de ensino (que tem consequências : por exemplo os professores so podem ser avaliados pelos seus pares, etc.). Presumo que em Portugal também seja o caso...
6. De resto, e pelas razões apontadas acima, um estabelecimento de ensino pode perfeitamente ser privado e estar sujeito ao controlo do Estado (é o caso quando administra cursos que são sancionados por um diploma publico ou com equivalência reconhecida).
7. O Desidério esta pura e simplesmente a confundir a questão dos meios e a questão dos fins. Acho que ninguém põe seriamente em causa que a educação é uma questão publica e que deve existir uma definição publica dos objectivos e dos meios que devem ser postos ao serviço da educação. Não conheço nenhum pais em que o Estado se desinteressa da educação, remetendo o assunto para as familias. O liberal mais ferrenho admitiria sem dificuldade que uma posição como essa seria fonte de desigualdades incomportaveis e incompativeis com os nossos principios democraticos. Existe depois a questão de saber como é que os fundos dedicados ao serviço publico da educação devem ser utilizados, se devem ser administrados por estabelecimentos publicos, se por privados, se devem ser completados por fundos privados, em que medida, em que condições, etc. Esta é a questão dos meios, das modalidades (não dos principios).
8. Desculpe mas não é digno de um filosofo que se preze, e que até devia ter reflectido sobre o assunto uma vez que foi (ou é) professor, escrever um texto com tantas aproximações. O Desidério habituou-nos a melhor, quanto mais não seja por mostrar que a filosofia pode e deve aspirar a mais do que ao estatuto de conversa de café...
Caro João,
Eu sou professor do ensino público e, em muitas circunstâncias, defendo o ensino privado incentivado e tutelado pelo Público. A defesa de que o ensino privado não funciona porque é só para o lucro, é uma defesa cobarde. E é porque todos temos medo de perder a nossa segurançazinha provinciana de far niente, e de centralismo do pai Ministério. Não queremos as responsabilidades. Mas os acontecimentos recentes pelo menos retiram alguns argumentos dos defensores do ensino público, que são muito interessantes de observar: já não podemos dizer que o ensino privado é pior do que o público porque é facilitista. Já não podemos dizer que é pior porque visa o lucro. E o mais estúpido é que, pelo menos em Portugal, qualquer ensino, público ou privado, visa o lucro. Mas já agora, eu que sou pai não importava nada de pagar algum de propinas para o meu filho estudar numa escola gerida por privados, desde que eu tivesse a garantia que ele aprendia muito mais e melhor. E qualquer, qualquer pai deste país faria tal como eu, menos os pobres que não tem essa visão e possibilidade. E isso foi o que o Desidério defendeu: ensino de qualidade para todos e o ensino de qualidade para todos pode ser privado. Agora o exemplo prático: eu já trabalhei numa escola privada tutelada pelo Poder Político. Cada aluno era pago um racio pelo governo.A escola não podia ter mais de x alunos. A escola tem de contratar professores desempregados da lista dos desempregados, ainda que possa seleccionar quem quer como professores. Os alunos tem um máximo para pagar e, consoante o IRS familiar podem até estudar gratuitamente (tá a ver, até mais barato que no Público que pagam uma propina pequena que seja).Esta escola era e é tutelada pelo Governo Regional da Madeira e fica no Funchal. Todas as escolas privadas da Madeira funcionam assim, com um financiamento público. Em termos económicos é fácil ver a vantagem: as escolas tem rendimentos para se auto sustentarem (umas melhor que outras), tem de apresentar lucro zero ao final do ano (para garantir que todo o lucro é investido, sendo que algum lucro que apareça é devolvido à SRE) e é obrigada a seguir um conjunto de regras. Sabe uma coisa formidável? É a escola do Funchal que tem mais alunos de Cãmara de Lobos. O Funchal tem imensas escolas públicas, mas nenhuma tem tantos alunos do concelho pobre. Tá a ver? Tem aqui um optimo balão de ensaio.
abraço
Caro João
A sua posição é incoerente. Se admite que todo o ensino é ideológico, não pode haver problema com o ensino religioso, por exemplo, que você tanto teme (e que já existe, a par do público, e é precisamente no ensino religioso que as elites põem os filhos, porque em geral têm melhor educação). Se admite que todo o ensino é ideológico, então é melhor ter várias escolas diferentes com várias ideologias diferentes — e isso não é possível quando a maior parte das escolas são públicas e seguem a ideologia do momento, havendo depois algumas escolas de elites igualmente iguais umas às outras porque são poucas e quase todas religiosas.
O seu erro é pensar que se a ideologia transmitida for a estatal, estará tudo bem. Porquê este erro? Porque a partir do séc. XVIII começou-se a conceber o estado como uma forma superior de organização social, como a instituição neutra que seria a expressão das vontades de todos — isto é particularmente claro em Hegel, por exemplo. Mas isto é uma fantasia, e que desde então se tornou numa mentira política. Não há estado. Só existem as pessoas que usam o estado para impor as suas ideias sociais e políticas às outras: os políticos e burocratas. Tudo o que temos é um controlo mínimo sobre essas pessoas, através de três coisas: eleições, legislação e expressão pública de opiniões. Este controlo está longe de ser perfeito, pelo que quanto menos poder estiver nas mãos dessas pessoas que controlam o estado, melhor. Uma maneira de eles terem menos controlo sobre a educação dos seus filhos é você poder escolher escolas que fazem escolhas pedagógicas e cientificas diferentes, escolhas essas feitas não por burocratas boçais, mas por profissionais do ensino: professores.
Eu não quero tudo nas mãos dos privados. Mas quero o máximo que for possível nas mãos das pessoas que usam os serviços e não dos políticos. Afinal de contas, são as pessoas que financiam os serviços que usam, através dos seus impostos, e não os políticos. Pensar que o estado é o locus do bem público é cometer a ingenuidade de pensar que os políticos são igualmente o locus do bem público. Isto é um completo disparate: os políticos são apenas uma chatice que temos de suportar porque não temos outra maneira de fazer as coisas, mas quanto menos poder lhes dermos melhor para todos nós.
Viegas, não há qualquer razão para pensar que quando o estado legisla sobre conteúdos o faz melhor do que se forem os professores apenas a fazê-lo, de maneira diferente em escolas diferentes. As universidades não são reguladas, quanto a conteúdos ou metodologias, pelo estado. As escolas secundárias e básicas são-no. Porquê? Acaso as universidades são antros de iniciativas privadas que privam o estudante do seu direito ao ensino? Não. Então, como passa você da ideia de que se as escolas tivessem autonomia seria o fim do mundo?
O que você está a fazer sem se dar conta é a defender o controlo ideológico das mentalidades, através do controlo apertado dos conteúdos, currículos e métodos usados nas escolas públicas. Mesmo as escolas privadas têm de obedecer ao que alguém no ministério decidiu que são os conteúdos e métodos “correctos” da física ou da história. Isto não lhe parece descabido porque você aceita a ideia absurda de que tudo o que os órgãos públicos fazem está santificado pela democracia. Isto é falso e perigoso, pois pode-se ter uma ditadura com instituições democráticas. A democracia permite o domínio máximo do burocrata e do político sobre a vida das pessoas, o que significa que a democracia em si é insuficiente para garantir uma sociedade livre e plural. Se os jornais fossem todos do estado, isso não seria menos mau pelo facto de o estado ser democrático, Viegas.
O ensino secundário e básico poderia ser todo privado e no entanto haver legislação apertada que proibisse, por exemplo, o ensino religioso. Coisa que hoje é possível, e que me parece uma completa aberração.
Defender a escola pública, hoje, é defender ensino mau para os pobres e bom para os ricos. É defender o controlo das mentalidades por parte do estado, que decide o que se ensina e como se ensina e a quem se ensina. É defender a subalternização dos professores, que são os profissionais do ensino, mas não podem decidir por eles o que vão ensinar em história ou matemática, nem como vão ensinar, nem a quem vão ensinar. É defender um sistema absurdo no qual os ricos vão para escolas de elite e depois vão para universidades públicas, ao passo que os pobres andam 12 anos enganados em más escolas públicas e depois mal conseguem entrar nas piores universidades privadas. Defender a escola pública hoje é impedir o direito ao ensino de qualidade, e diversificado, dos mais pobres.
"Só existem as pessoas que usam o estado para impor as suas ideias sociais e políticas às outras: os políticos e burocratas."
Absolutamente.
Poderíamos deixar tudo na mão do governo, quando ele fosse um governo bom. Quando digo governo bom, refiro-me concretamente, a pessoas que querem o melhor para o seu povo e não para elas. Deixando, deste modo, de lado as suas ambições pessoais, para olhar para ambições do país.
Caro Desidério,
O que me espanta na sua resposta ao João (presumo que ao primeiro comnetador) ja me chocou nas suas posições a proposito do acordo. "Os politicos" são os maus, "as pessoas" é que são boas. Mas, meu Deus, os "politicos" são eleitos pelas "pessoas". A sua posição é de um populismo simplorio que não tem nada de inocente num pais que viveu 48 anos de ditadura. Não digo que a discussão não merece a pena (pelo contrario, veja o eu comentario) mas, por favor, faça-o com responsabilidade e sem demagogia. Em Portugal, temos o dever historico de não nos deixarmos embalar pelo discurso facilitista em que a culpa é sempre toda dos tratantes que nos governam (e que nos administram), como se não tivéssemos nada a ver com isso. A democracia merece-se.
Caro Desidério,
Eu não digo que a autonomia não seja possivel, nem que não tenha méritos. Também não digo que estabelecimentos privados não possam encarregar-se de um serviço publico (acho até que disse precisamente o contrario).
Apenas digo que o Desidério esta a colocar o debate em termos perfeitamente errados. Com efeito, se existe um serviço publico da educação e estabelecimentos publicos de ensino (primario e secundario), não é principalmente por se considerar que estabelecimentos privados não seriam capazes de ensinar, ou de ensinar tão bem. E antes para garantir que os meios dedicados à educação sejam distribuidos em condições de igualdade entre todos. E repare que o ensino durante o periodo de escolardidade obrigatoria (outra tirania, quem nos diz que os Portugueses não seriam mais felizes se permanecessem ignorantes ?) custa um bocadinho mais do que um jormal...
Um pouco de rigor na forma de colocar as questões parece-me o minimo que devemos exigir de um filosofo...
Evidentemente que no interior desertificado o factor concorrência como seleccionador natural dos melhores é completamente descabido. Esta ideia de que a livre concorrência resolve a qualidade do ensino é típica de quem vive em centros de abundância e se esquece do país periférico e empobrecido que ainda existe.
E aí, das duas uma, ou deixamos as populações ainda mais sem acesso a bens culturais, ou o Estado terá de assegurar o ensino. A não ser que se transfira toda a população para o litoral urbano.
A ideia de que com o sistema actual de escola pública os ricos vão para colégios para ser bem preparados e os pobres vão para as escolas públicas e para depois não conseguirem vagas nas universidades... anda um pouco longe da realidade. Então a universidade está cheia de ricos provenientes de colégios privados?
Obviamente que não! As Universidades públicas estão cheias de alunos provenientes das escolas públicas; provavelmente mais rapidamente são os alunos ricos dos colégios que procuram as Universidades privadas.
Em termos médios tenho muitas, muitas dúvidas que os colégios privados estejam a preparar melhor os alunos do que as escolas públicas.
Por vezes, olhando para um ou dois casos de ensino elitista que obtém muito boas médias à custa de muito dinheiro investido por aluno, passa-se a ideia de que a generalidade dos colégios privados por esse Portugal além paira acima da mediocridade. É uma ideia preconcebida.
Mais: os colégios privados leccionam o mesmo currículo das escolas públicas. Os professores dos colégios privados também não podem seleccionar as matérias que ensinam. Por aí também não há argumentos.
O sistema actual acaba por ser equilibrado, com o Estado a garantir educação para todos e a garantir um mínimo de liberdade de escolha. O que não faria, para mim, muito sentido era pôr o Estado a financiar duplamente: por um lado assegurando escolas públicas ao serviço de todos e, por outro, pagando aos privados para lhe fazerem concorrência. O que será necessário é promover uma real autonomia das escolas e, sobretudo, libertá-las da sobrecarga burocrática obrigatória mas inútil.
Viegas, repare no que diz:
“se existe um serviço público da educação e estabelecimentos públicos de ensino (primário e secundário), não é principalmente por se considerar que os estabelecimentos privados não seriam capazes de ensinar, ou de ensinar tão bem. É antes para garantir que os meios dedicados à educação sejam distribuídos em condições de igualdade entre todos.”
Basta olhar para realidade para ver que a educação não é distribuída em condições de igualdade entre todos, Viegas. Os ricos têm bom ensino, os pobres mau. Os ricos vão para as melhores universidades, os pobres para as piores. Os ricos têm os filhos nos colégios e escolas dos centros das metrópoles, os pobres em escolas degradadas dos subúrbios.
O meu argumento é que as razões pelas quais temos ensino público já não se aplicam. Não precisamos de ensino público para ter qualidade de ensino nem igualdade no acesso ao ensino de qualidade.
Quanto aos políticos bons ou maus, não é isso que está em causa. O que está em causa é compreender as consequências de uma trivialidade epistémica: somos todos falíveis e ninguém é omnisciente. Daqui segue-se que quanto mais distribuída for a decisão, mais se minimiza os erros inevitáveis. Repare que neste argumento nem sequer entra a boçalidade típica dos políticos, nem a sua ganância, que coloca os seus interesses à frente dos interesses das pessoas que governam. Mesmo que os políticos não fossem boçais (e têm de o ser para parecem bonitos e vendáveis na televisão), seriam ainda assim meros seres humanos como você e eu, e por isso sujeitos ao erro. Assim, é melhor termos várias escolas a explorar várias alternativas, sem ninguém que mande nelas centralizadamente, pois a qualidade acabará por se notar e por se transmitir às outras escolas. Precisamos de pluralidade porque não somos omniscientes nem perfeitos. O centralismo e o estatismo padecem do problema de pensar que há pessoas perfeitas, ou que há processos centralistas de decisão perfeitos. Não há tal coisa.
Se em vez de termos um único dicionário feito pelo estado tivermos vários dicionários a competir entre si pela qualidade, teremos melhores dicionários. A diversidade e pluralidade não garante a perfeição, mas garante que haverá menos erros do que no centralismo e no estatismo. Pense nas instituições científicas: os cientistas não são controlados centralmente, nem pelo estado. E é por isso que a ciência é pujante. Quando o estado põe a pata na ciência, esta definha. Daí nunca termos tido desenvolvimento científico em Portugal — porque em vez disso temos milhares de burocratas e um estado pesadíssimo.
João Filipe, o que está a dizer é falso: os melhores alunos das universidades públicas não vieram do ensino público dos subúrbios. Ou vieram de colégios privados de ricos ou vieram de escolas públicas de elite, aonde os pobres não chegam porque são escolas do centro das grandes metrópoles. Basta você ver algumas estatísticas sobre medicina, por exemplo, para ver quantos filhos das classes mais baixas são estudantes de medicina.
Mas você tem razão numa coisa: teoricamente, seria possível o Ministério da Educação financiar apenas as escolas e não pôr a pata em cima das competências dos professores. Só que isso é uma fantasia delirante: quanto mais o estado investe na educação, mais vai querer controlar. Daí que se controle hoje muito mais a universidade do que há 50 anos. Se as coisas continuarem como estão a caminhar, chegará o dia em que o catedrático de Matemática tem de fazer aprovar o seu programa de estudos por um burocrata qualquer semi-analfabeto do Ministério da Educação.
As pessoas parecem ter esquecido que a grande aposta da actual ministra da educação foi nos resultados porque ela olhou para um gráfico ao longo dos últimos 20 anos e viu duas coisas: a um investimento cada vez maior não correspondeu um sucesso escolar cada vez maior. E vai daí foi o que se viu. Isto é inevitável. Mas só pode acontecer porque os professores não têm qualquer autonomia científica nem pedagógica.
Dever-se-á distinguir claramente entre a universidade e ensino básico e secundário. O aluno no ensino universitário, chegado à maioridade, prossegue o seu programa individual de vida. A liberdade da universidade está estritamente ligada à responsabilidade dos seus frequentadores.
O ensino básico e secundário está ligado à querela do ensino da virtude cívica (cf. Platão, Protágoras). A modernidade, nomeadamente com Condorcet, pensou a conexão da instrução com o problema da soberania popular. É aqui que surge o problema da escola pública. O que faz ela? Ensina apenas? Transmite conhecimentos puros? Era o pretendido por Condorcet. No entanto, estes pretendem fornecer um instrumento de igualdade de direitos. Esta opção é já ideológica, insere-se na querela da igualdade perante a lei. O problema é o da legitimidade da fonte de legitimidade política, passe a duplicação. Com a legitimação pelo povo do poder, a fonte de legitimidade tem necessidade de uma legitimação que a torne credível. O inimigo é a concepção paternalista do direito absoluto dos reis por delegação divina. A nova legitimação é dada pela instrução pública. O papel da instrução pública não é ensinar, mas através da transmissão de saberes outorgar legitimidade à fonte de legitimação do poder (ela sabe o que está a fazer pois é instruída). É, por isso, que afirmo, na crítica que faço ao texto no blogue “A educação do meu umbigo” que a educação tem uma função transcendental: é a condição de possibilidade de um poder político fundar-se na soberania popular. Há aqui claramente uma torção ideológica, mas essa é inevitável, pois o que está em causa é um conflito político entre formas de legitimar o poder. Na minha óptica, aquilo que foi sentido como necessário no final do século XVIII continua a ser actualmente sentido como necessário. Isto, devido ao problema da natalidade (na perspectiva de Arendt). É por que há novas gerações que estas se devem instruir para que assegurem a legitimidade política que continua a fazer sentido a instrução pública.
A instrução pública e a escola pública pertencem à área da soberania. Ligam-se à soberania de duas maneiras diferentes: 1. Fornecem a legitimidade à fonte de legitimação do soberano; 2. Produzem nos indivíduos que a frequentam e a recebem a vontade de viver sob as mesmas instituições, através da partilha de um currículo e das experiências que a escola fornece.
É, neste âmbito, que me parece inaceitável um regime que entregasse a instrução pública aos interesses privados. Estes prosseguiriam os seus interesses privados o que acabaria por dissolver a intencionalidade com que a instrução pública foi instituída e é mantida.
Caro Desidério,
Como sabe, sou tudo menos dogmatico. Se conseguir demonstrar que ao abandonarmos os estabelecimentos publicos de ensino e ao deixarmos à initiativa privada a incumbência de desempenhar as mesmas funções, conseguimos ter melhores resultados (para todos) com menos custos, então não terei nenhuma hesitação em concordar consigo. Tal como o Desidério, estou cansado da esquerda ideologica e dos argumentos a priori.
Mas não é isso que o seu texto diz, nem os seus argumentos vão nesse sentido. O que diz (é mau ser estatal porque é contrario à liberdade de ensino, ou porque é uma forma de sordidos burocratas domesticarem professores e alunos) é tão dogmatico como a argumentação dos que querem escola publica porque sim (ou porque são de esquerda).
Um abraço
"Os ricos têm bom ensino, os pobres mau. Os ricos vão para as melhores universidades, os pobres para as piores. Os ricos têm os filhos nos colégios e escolas dos centros das metrópoles, os pobres em escolas degradadas dos subúrbios."
Isso não é completamente verdade Desidério. Conheço muita gente que veio de escolas públicas e está na Universidade do Minho.Se considere a Universidade do Minho uma má universidade, então tudo bem.
" Mais: os colégios privados leccionam o mesmo currículo das escolas públicas. Os professores dos colégios privados também não podem seleccionar as matérias que ensinam. Por aí também não há argumentos. "
Porque razão então, os alunos das privadas entram para o ensino superior com melhores médias, se os currículos são os mesmos ? Realmente, isto é um ponto que dá que pensar, será pelo seu esforço ? Duvido muito.
"os melhores alunos das universidades públicas não vieram do ensino público dos subúrbios. Ou vieram de colégios privados de ricos ou vieram de escolas públicas de elite, aonde os pobres não chegam porque são escolas do centro das grandes metrópoles. Basta você ver algumas estatísticas sobre medicina, por exemplo, para ver quantos filhos das classes mais baixas são estudantes de medicina."
Gostaria de ver tais estatísticas, quando tiver disponibilidade de as mostrar. E mesmo que seja verdade, o facto de os melhores, virem de escolas privadas, nada quer dizer. Não se fie, que boas médias, sejam proporcionais a bom conhecimento. Não se esqueça que o dinheiro compra tudo, até médias nessas ditas escolas privadas.
Rui.
Caro Jorge, uma coisa não se segue da outra! Do facto de ser necessário ter uma população instruída para que a democracia possa funcionar, o que concordo, não se segue que o ensino tem de ser ideologicamente controlado pelo estado. Na verdade, segue-se o oposto: se o ensino é ideologicamente controlado pelo estado, então as pessoas não têm realmente a autonomia necessária para legitimar as instituições políticas em que votam, pois limitam-se a pensar com a cabeça dos burocratas que decidiram o que elas devem pensar, controlando cuidadosamente a informação que lhes é transmitida.
Para que os poderes políticos tenham autonomia é preciso instrução de qualidade. E o estado falha completamente nisso e transforma o ensino em controlo de mentalidades. Espanta-me que não veja isso claramente; pense só no tipo de mentalidade patriótica que têm os países guerreiros como os EUA — sem a mentalidade fascista transmitida nas escolas, eles não teriam tanta carne para canhão. Pense na mentalidade patriótica transmitida no tempo do estado novo, em Portugal. E agora pense o seguinte: seremos hoje tão impolutos que não estamos a fazer exactamente o mesmo, a transmitir os preconceitos do momento, só que, por serem os nossos preconceitos, nem os vemos? Pois a verdade é que estamos. E eu desafio-o a pegar em qualquer programa do ensino secundário, da História à Filosofia, e a dizer-me que não encontra lá as ideologias do momento. Claro que encontra.
Solução? Deixar que os professores tenham autonomia. Diferentes professores e diferentes escolas poderão ter diferentes desvios ideológicos, mas se nenhum tiver preponderância nenhum poderá formatar toda a população da mesma maneira.
Finalmente, o seu argumento para diferenciar as escolas secundárias e básicas das universidades é uma falácia, pois o que conta não é o facto de os estudantes serem menores ou maiores de idade, mas o facto de os professores serem maiores ou menores de idade. Ora, tanto quanto eu saiba, e penso que concordará, ainda que talvez com alguma dificuldade, não é só no ensino universitário que os professores são adultos responsáveis; no ensino básico e secundário acontece o mesmo. Então por que razão não dar a esses adultos autonomia? Queremos proteger as crianças? Mas neste momento não podemos protegê-las porque todo o ensino é formatado pelas ideologias do estado. Ao passo que se as escolas tiverem autonomia, se os professores decidirem os currículos e os métodos, os pais poderão escolher as que considerarem melhores. Ou também considera que tal escolha não compete aos pais, mas sim ao Cavaco Silva? Ou à Maria de Lurdes? Ou ao Valter Lemos? Nossa senhora, basta invocar o nome destes ilustres políticos para se ver a borrada que é deixar nas suas mãos a instrução dos filhos dos outros. A estas pessoas eu não confiaria nem o meu pintassilgo, quanto mais um filho meu. E é irrelevante que eles tenham legitimidade política; a legitimidade política não confere direitos absolutos sobre todos os aspectos da nossa vida. Era o que faltava vir-me agora o Cavaco Silva dizer-me quantos filhos eu tenho de ter ou deixar de ter por causa dos desígnios nacionais! Mas, repare, isto é precisamente o que faz qualquer estado fascista ou comunista. O centralismo, ainda que numa democracia, é apenas menos evidentemente idiota. Mas é por isso mesmo mais perigoso. A pior prisão não é feita de betão, mas de ideias.
Olá, Viegas! Há duas questões diferentes. Numa delas concordamos: que se um sistema de ensino privado for melhor, que se dane o público. Na outra, que já vem das minhas posições quanto ao Acordo Ortográfico, é que discordamos. Compreendo que o Viegas pense que se trata de uma posição populista, pois o povo passa a vida a dizer mal dos políticos. E isto pode ser perigoso, pois foi com este tipo de discurso que Salazar conquistou o país.
Eu não quero acabar com os políticos assumindo-me eu como político único, como fez Salazar. Isso é uma contradição nos termos. Eu só quero dizer às pessoas que se tiverem uma mentalidade democrática e livre, têm de aceitar este princípio básico: devemos sempre desconfiar dos políticos e confiar-lhes o mínimo possível da nossa vida. Confiar na santidade dos políticos por causa da legitimidade democrática é apenas o mesmo tipo de mentalidade que confiava no Salazar para nos resolver os problemas da vida.
Temos de ser nós, os profissionais de cada área, a tomar o poder da nossa área nas nossas mãos. Taxistas, jornalistas, professores, médicos — nós é que sabemos da nossa área, nós é que sabemos servir os nossos semelhantes. Não por sermos mais sábios ou mais infalíveis, mas porque somos vários, com ideias e práticas diferentes.
Deve haver regulação legislativa? Sim. Mas o estado tem de controlar tudo directamente? Não. Quanto menos coisas o estado controlar directamente, mais dinâmica e livre será a sociedade. Pense só no disparate que são as televisões em Portugal (há anos que não vejo TV, mas presumo que não esteja melhor agora). Precisamos de uma televisão pública para garantir qualidade? Não. A televisão pública garante efectivamente qualidade? Nem por sombras, é a mesma tolice das outras. É possível fazer melhor? Sim: basta fazer legislação que proíba certas coisas, como a ingerência comercial nos serviços noticiosos, e que obrigue outras, como passar programação classificada como cultural a determinadas horas. E quem irá classificar tal programação como cultural? Uma comissão independente de intelectuais — o que significa que não nos livramos assim tão depressa de “iluminados” que mandam nos outros. Mas neste caso, justifica-se porque não há outra maneira de impedir que a televisão seja o lixo tóxico que é actualmente. A concorrência televisiva não produz qualidade, produz lixo. A outra solução seria proibir a televisão, como Chomsky chegou a defender…
Rui, não há muito tempo foram divulgadas estatísticas sobre os meios familiares dos alunos universitários de cursos considerados de elite. Surpresa: a percentagem de alunos cujos pais não tinham formação superior, ou mesmo doutoramentos, era exígua. Vai dizer-me que são todos filhos de cabeleireiras e taxistas doutorados? Não sei onde procurar essas estatísticas agora, elas foram citadas em vários jornais há uns tempos, mas estou certo que se as procurar as encontra. A mobilidade social portuguesa é mínima, e isso deve-se em grande parte ao facto de o ensino não dar aos mais carenciados as oportunidades que deveria dar.
Tenho impressão que o Rui está a confundir as classes médias e médias altas com as classes baixas. Os portugueses das classes médias e média alta têm tendência para pensar que são pobres, mas esquecem-se que há muita gente em Portugal com a quarta classe ou o ensino preparatório apenas e viver com 400 euros por mês. Poucos ou nenhuns dos filhos dessas pessoas vão para a Universidade do Minho.
Eu cheguei a conhecer uma pessoa, que recebia dinheiro suficiente de bolsa, para pagar as propinas e ainda ficar com 200 euros no bolso. Ora bem, isso dá para pagar o apartamento e ainda sobram cerca de 50 euros. Acredito bem, que ela não seja o único caso. Digo-lhe mais, ela chegou-me a confessar, que nem precisava de bolsa, mas que meteu os papéis e conseguiu.
Sim, mas é normal que haja mais alunos no ensino superior, com pais com formação superior. Até porque, a educação familiar difere bastante, entre pais com formação e com pais sem a mesma.
Não, Rui não "é normal que haja mais alunos no ensino superior, com pais com formação superior"! É apenas habitual, na mentalidade salazarista portuguesa, pensar que os filhos de pobres não têm vocação para a física quântica ou a música clássica. É isso mesmo que o actual Ministério está a fazer. Mas isso é injusto. Os filhos dos ricos não têm naturalmente mais vocação para serem doutores do que os outros, apenas têm acesso a melhor ensino precisamente por serem ricos! O que isto significa é que o ensino público não está a dar a essas crianças as oportunidades que os pais não lhes dão por ignorância. O que significa, como defendo, que o ensino público não está a funcionar como devia.
Caro Desidério,
1. Aquilo que diz dos Estado, pode dizer-se de qualquer outra instituição, inclusive dos professores. Curiosamente numa das «Memórias» o próprio Condorcet alertava para o assunto, para as congregações (corporações) de professores poderem perverter o ensino a favor dos seus interesses particulares. Contrapõe o peso do Estado ao peso das escolas isoladas para argumentar que os desvios ideológicos seriam menores nestas. Mas o problema é que a concentração será imediata e o aparecimento de redes escolares privadas ou confessionais asseguraria uma transmissão segura da ideologia que as orientaria.
2. Há de facto um problema de circularidade entre a necessidade da instrução popular para legitimar o soberano e o facto do soberano instaurar o processo de instrução, o dirigir e o fazer cumprir. Mas essa circularidade resulta das opções que fundaram a modernidade com Descartes, como muito bem sabe. O problema, e é um problema político muito interessante, joga-se no destino das instituições modernas, nomeadamente do Estado-Nação. Este é uma auto-criação contínua. Como sabe, a legitimação política medieval, mas também em outras formas tradicionais de sociedade, resultava da unção da autoridade espiritual ao poder temporal. Eliminada a autoridade espiritual e após o absolutismo a soberania passou a residir no povo através da circularidade atrás mencionada. Na minha leitura, a instrução pública e o desenvolvimento da virtude cívica pela escola tem um papel essencial na consolidação da soberania. Aquilo que o Desidério propõe faz parte de um processo que tende a minar o Estado-Nação e as soberanias populares. O curioso é que isso se inscreve num processo de crescimento do niilismo no Ocidente: não só a desagregação de todos os valores, mas também das instituições.
3. A separação entre os níveis de ensino faz todo o sentido. O que está em causa são os alunos e não os professores. Isto não significa que sejam aceitáveis patetices como o ensino centrado no aluno. O aluno no ensino não superior está a tornar-se cidadão e membro da fonte de legitimação da soberania. No ensino superior, como cidadão pleno segue a via que escolheu dentro dos parâmetros de uma instituição.
4. Sobre o Estado, recordo-lhe que ele antes de ser o palco do conflito entre ideologias é comunidade organizada para tomar decisões. Como não sou anarquista, defendo que o Estado deve promover a sua continuidade no tempo, pois isso significa a persistência da comunidade. A instrução pública faz parte dessa estratégia de persistência do Estado no tempo.
5. Aquilo que eu defendo é um estatuto para o ensino público que não o autonomize do Estado, mas não o submeta às idiossincrasias do governo do momento. Esse estatuto aproximaria a Instrução Pública da Defesa Nacional e da Magistratura, como os grandes pilares da soberania (eu sei, ou julgo saber, que ninguém defende isto). A autonomia dos professores deve ser idêntica à dos juízes e a das escolas à dos tribunais, por exemplo.
6. Sobre a presença da ideologia nos programas. Estou de acordo consigo, mas com uma pequena ressalva. Onde é que não há ideologia. Qual o filósofo que é ideologicamente isento de pecado? A ideologia não é irradicável. Pode-se seguir um programa crítico das ideologias, mas mesmo esse está ferido pela ideologia.
7. Não se trata de proteger as crianças. Trata-se de preparar cidadãos para exercerem o seu conjunto de direitos e de deveres. De resto, não consigo pensar um indivíduo sem uma comunidade e esta sem o Estado. Para ser mais insidioso: não há pessoas sem o Estado. É o leviatã que lhes confere direitos e as torna por isso pessoas.
8. O problema é então este: o que deve ficar dentro e fora do Estado? Na minha óptica, tudo o que se liga à soberania, incluindo a instrução pública. A forma centrada ou descentrada dependerá das tradições e das experiências particulares das comunidades políticas.
No comentário anterior onde disse:
« ideologia não é irradicável. » queria dizer o contrário: a ideologia é erradicável, e grafado com «e» e não com «i», como o fiz.
Eu não tenho as estatísticas, aliás seria para mim muito interessante vê-las. Mas conheço casos perfeitamente normais de alunos brilhantes em escolas públicas que nada têm a ver com os grandes centros urbanos, alunos que provêm de classes modestas e se posicionam entre os melhores dos seus cursos (não é necessário ser de medicina, pois não?).
Mesmo sem estatísticas, parece-me apressada uma generalização destas, segundo a qual provêm de colégios os melhores alunos da generalidade dos cursos do conjunto das escolas superiores (Universidades e não só). Por uma questão de simples probabilidades, desconfio desse postulado. É que a escola pública ainda tem muito mais alunos.
De resto, se os rankings de escolas servem como referência estatística bruta (o que está por demonstrar), não parece nada que a média dos colégios privados seja melhor do que a média das escolas públicas.
Aliás, retirem-se da comparação as escolas onde o investimento per capita é luxuoso, com tutorias, explicações in loco, turmas reduzidas, selecção de alunos, etc. e a excelência do ensino privado perde muito do seu fulgor.
A diferença não está na opção entre público e privado, está na qualidade dos recursos que são postos à disposição dos alunos e à motivação e expectativas de base que os mesmos têm face à educação.
Não me parece ter fundamento a ideia de que a competição entre escolas permitia ultrapassar os problemas mais fundos do nosso ensino: desmotivação dos alunos, falta de estudo, falta de investimento "imaterial" das famílias na educação, falta de exigência em geral. Será que, com a privatização generalizada do ensino, se regeneravam os delinquentes, cábulas e outros que povoam a escola pública? Ou será que as "boas" famílias iam para os colégios privados e os outros não iam para lado nenhum, porque os privados seleccionavam o seu público?
Infelizmente, o mundo da educação não é assim tão simples quanto a opção entre privados e públicos. Não basta olhar para umas escolas de ricos e dizer: "este é o modelo acertado, porque é privado", é preciso ver as práticas acertadas e aprender com elas, tanto no público como no privado.
"É apenas habitual, na mentalidade salazarista portuguesa, pensar que os filhos de pobres não têm vocação para a física quântica ou a música clássica. "
Eu quando disse o que disse, eu não impliquei que alunos menos favorecidos economicamente, fossem menos dotados intelectualmente. Eu apenas disse, que indivíduos, que tenham em casa pessoas que lhe digam que é útil ter um curso superior para ter um futuro melhor, faz a diferença. Com certeza, que o facto de ter pais sem curso superior, faz, muitas vezes, a diferença entre continuar a estudar, ou desistir.
Mas numa coisa concordamos, certamente: é deplorável que o Estado (isto é, o Ministério da Educação, ou mais concretamente um Secretário de Estado) chegue a definir um dia nacional de entrega de diplomas nas escolas secundárias. Isto só para dar um exemplo ridículo da novidade deste ano na organização do ano lectivo. Não é a 11 nem a 13, é a 12 de Setembro.
As escolas não são autónomas em coisa praticamente nenhuma, praticamente tudo é formatado centralmente, com excepção de um ou dois formulários que as escolas podem adaptar, desde que mantenham um certo número de itens.
Nada impedia o Estado de alargar a real autonomia das escolas. Mas isso é uma coisa diferente da dicotomia público/privado.
Seria interessante fazer uma investigação sobre o tipo de escolas existentes nos países que ficam por norma nos primeiros lugares no PISA. Talvez se ficasse de boca aberta.
Concordo com o João,
"Não me parece ter fundamento a ideia de que a competição entre escolas permitia ultrapassar os problemas mais fundos do nosso ensino"
Um professor, frustrado de dar aulas a quem não quer saber delas, chega a um ponto que estoura. Quer lá ele saber se escola X ou Y tem melhor média na disciplina que ele lecciona. Ele só quer chegar ao fim do mês e receber o dele. E eu, não o censuro nada por isso. É que para além do Estado e de Professores, não se esqueçam dos Alunos.
Rui.
Jorge, tudo o que diz é perfeitamente compatível com outras formas de o estado garantir a instrução de qualidade para todos os cidadãos que não o controlo directo. Em qualquer caso, registo com agrado que lhe desagrada a ideia de os professores não terem autonomia. Mas persiste em si a ilusão de que o estado alguma vez dará tal autonomia aos professores. Isso nunca acontecerá; veja bem que sempre que se fala em autonomia das escolas fala-se na verdade em entregar as escolas a políticos diferentes, e geralmente piores: os políticos locais. O que nem esta ministra tolinha nem qualquer outro ministro alguma vez fará é entregar o ensino aos próprios professores.
Note o seguinte: o estado, através de legislação cuidadosa, pode muito bem salvaguardar os interesses públicos da instrução sem ter ensino público. Tal como salvaguarda os interesses públicos da saúde sem ser dono dos talhos: legisla e inspecciona os talhos. Condorcet vê com razão os perigos da concentração da instrução nas mãos de poucos; mas isso pode facilmente ser controlado pela legislação que impeça a concentração da rede escolar. O mesmo se diga dos meios de comunicação — para destruir o que acontece hoje nos Estados Unidos, com poucos grupos a dominar a maior parte da comunicação televisiva bastaria que os governantes aprovassem legislação adequada, como fizeram quando quiseram quebrar as concentrações na indústria cinematográfica, nos anos cinquenta. O importante é: para combater os perigos que Condorcet via, e bem, basta legislação adequada. Não é preciso que seja o estado a contratar professores, desenhar currículos, fazer exames, impor metodologias, escolher conteúdos. ESTA concentração estatal é perigosa precisamente porque não permite o desenvolvimento das diferenças, formata todos os alunos por igual. Não compreendo como pode você temer a concentração do ensino nas mãos dos jesuítas (como nos tempos idos) ou de quaisquer outros e não temer a concentração do ensino nas mãos do estado. É um absurdo.
Quanto ao anarquismo e aos hinos ao estado, só preciso de sublinhar o que eu já disse, Jorge: nada do que eu digo implica a destruição do estado, mas apenas uma desconfiança saudável em relação à concentração de poderes nas mãos do estado. Raios, você não seria necessariamente um anarquista caso se opusesse ao quase monopólio da imprensa por parte do estado, pois não? Isto porque por mais benévolo que seja o estado você vê a vantagem da diferença, na imprensa, e vê a desvantagem da formatação por igual. Como raio não consegue ver o mesmo no caso da educação? Na verdade, é bem mais grave o caso da educação, precisamente porque as crianças são mais vulneráveis do que os adultos. Então como raio se concilia a ideia de que é mau o estado ser quase-monopolista da imprensa com a ideia de que é bom ser quase-monopolista do ensino?
Obrigado pela sua paciência em me aturar e por usar argumentos em vez de insultos!
Aliás, quero agradecer a todos, pois a discussão está a um excelente nível de civilidade.
É mais do que não querer saber delas (das aulas), é não poder saber delas... Um professor do ensino básico, quando chega de férias e recebe a distribuição de serviço, fica a saber quais as disciplinas que vai leccionar e em que anos: podem ser da sua especialidade, mas podem ser coisas marginais e difusas como Formação Cívica, Estudo Acompanhado, Área de Projecto; podem ser de 5.º ano, mas também podem ser de 12.º; podem ser de um programa em que já tenha experiência ou de um que nunca leccionou. Depois não sabe as características dos alunos, que podem ter Necessidades Educativas Especiais de toda a ordem.
As duas semanas que deveria ter para se preparar minimamente são ocupadas com reuniões, de conselho de turma, de directores de turma, de conselho pedagógico, de departamento, ou com tarefas burocráticas de vária ordem, na elaboração de horários, na elaboração de Projectos Curriculares de Turma, de Regulamentos e Regimentos diversos, de Plano de Actividades, etc.
Depois iniciam-se as aulas sem tempo para uma preparação adequada dos trabalhos e ao longo do ano nunca acaba por chegar a oportunidade de se sentar calmamente a estudar, porque o horário está sempre preenchido com inúmeros afazeres, e procedimentos burocráticos, parte deles completamente inúteis.
Mesmo que se queira navegar, o máximo que se consegue é equilibrar o barco, mais mal do que bem.
A dicotomia público/privado não coincide com a dicotomia escolas de elite/escolas de pobres. Isto porque basta uma escola estar no centro de uma cidade ou num bairro rico para ser de elite, ainda que seja pública, e nenhum pobre conseguirá lá entrar.
As pessoas acham normal que os filhos das famílias culturalmente favorecidas tenham melhores prestações escolares. Mas não deviam achar. Porque isso significa precisamente que a escola pública não está a cumprir o seu papel, que é dar boa instrução aos mais carenciados. A escola pública só consegue instruir quem já vem instruído de casa, mas quem já vem instruído de casa não precisava da escola pública porque seria instruído em qualquer caso. A burla que aconteceu com os exames é grave porquê? Porque é o sinal de que a escola pública decidiu que os pobres não são ensináveis; temos apenas de fazer de conta que aprenderam, mas fazemos perguntas no 12.º que um aluno médio do 10.º sabe responder. Quem está a ser prejudicado? Os filhos dos ricos, não, pois esses têm sempre bom ensino, em qualquer circunstância. Mas os filhos dos pobres foram atirados para o caixote do lixo da mentira política: transitam de ano e têm até notas bonitas, mas é tudo uma mentira. Na verdade, quase não sabem ler, nem calcular, nem pensar, nem sabem história nem geografia nem inglês. Apenas sabem fazer exames de fantasia. Era melhor proibi-los de ir à escola, porque se se fizesse isso seria um escândalo e ninguém o permitiria.
Gostaria de acreditar que seria possível o estado dar autonomia às escolas, mas não acredito nisso. O que está a acontecer nas universidades é exactamente o oposto, mas talvez o grande público não se aperceba disso. Porque a regra é esta: quanto mais o estado investe em algo, mais quer controlar cuidadosamente as coisas. O que até é compreensível. Note-se o seguinte: SE for possível dar autonomia aos professores, continuando as escolas a ser públicas, eu não tenho qualquer problema com isso. É apenas uma coisa disparatada, claro, pois nesse caso o estado não precisaria de ter a chatice de contratar professores, pagar-lhes o ordenado, fazer a gestão dos imóveis, etc. A consequência lógica de defender a autonomia das escolas (a genuína e não a fantasiosa que consiste em dar a gestão das escolas aos políticos locais) é o fim do ensino público.
Parece-me que as posições estão delimitadas e não é provável que o debate conduza à persuasão do outro. No fundo, a sua posição e a minha são ideológicas, não partidárias, mas ideológicas relativamente à conceçpão da comunidade política.
Só mais uma pequena coisa:
"Não é preciso que seja o estado a contratar professores, desenhar currículos, fazer exames, impor metodologias, escolher conteúdos."
1. Poderia dizer que estado não tem de contratar polícias, nem juízes, nem mercenários. Há razões muito estritas para o fazer, as quais eu estendo aos professores e que já argumentei. Só isso.
2. Quem desenharia o currículo? As escolas ad-hoc? Os professores como nas universidades? A Igreja? As entidades patronais das escolas privadas? O currículo tem uma função unificadora da comunidade nacional: todos possuem uma base comum. Até onse isso deverá ir é que me parece uma discussão proveitosa.
3. Só as metodologias devem ficar a cargo dos professores.
Mas isto são apenas pormenores de uma discussão mais ampla. Como certamente reparou, partimos de sítios diferentes: o Desidério fala de educação, eu falo de política e de Estado. Seja como for, julgo que o debate que se tem travado precisa de ser ampliado. O impacto da acção do actual ME tem levado os professores para uma reflexão sobre problemas mais imediatos, mas as questões de fundo, a concepção da teleologia e configuração do sistema, são mais importantes pois determinam «a priori» as opções. E essa discussão, do ponto de vista filosófico, está muito longe de estar feita. Na minha perspectiva, a filosofia da educação é um capítulo da filosofia política, como acontece na boa tradição platónico-aristotélica. Seria aí que se deveria discutir.
"Mas os filhos dos pobres foram atirados para o caixote do lixo da mentira política: transitam de ano e têm até notas bonitas, mas é tudo uma mentira. Na verdade, quase não sabem ler, nem calcular, nem pensar, nem sabem história nem geografia nem inglês. Apenas sabem fazer exames de fantasia."
Caro Desidério, estava eu convencido que era bastante sensato nas afirmações, mas generalizar desta forma, de sensato tem muito pouco. Então, por ter carências financeiras, faz dele carente intelectual ? Pode não ter acesso a escolas privada, nem poder comprar livros, mas se quiser, pode perfeitamente ir à biblioteca da escola instruir-se noutras áreas, pode perfeitamente aprender, também, as matérias que são leccionadas na sua sala de aulas. Agora é assim, não vamos confundir as coisas, é que além dos professores e do estado, também existem alunos e a educação em casa, também se irá reflectir na altura de se saber comportar numa sala de aulas e de querer aprender, ou não. Mesmo sendo carente, temos que observar bem, não generalizando claro, que a maneira de pensar dos pais vai, necessariamente, influênciar, o aluno. Enquanto que um aluno rico, pode ter pais com cursos superiores, que o poderão ajudar em determinadas áreas escolares, além de ter acesso a informação e outras regalias, o aluno pobre, terá mais dificuldades, mas se quiser consegue aprender melhor que um aluno rico, mas nem tenha dúvidas disso. Um aluno que esteja disposto a sacrifício, consegue isso perfeitamente. O Desidério, com a sua afirmação, quer me fazer querer que um aluno pobre, neste país, está condenado e isso não é verdade nem por sombra de dúvidas. Pode-me argumentar que muitos são assim e eu irei concordar consigo, mas também existe uma fatia que não será assim. Explique-me, porque é muitas vezes, um aluno com boa média saído de uma privada, em certos casos, sai a saber menos que um aluno de uma pública com média menor ? Se quiser, vou à Universidade do Minho, buscar-lhe alguns exemplos.Diga-me agora, como se eu tivesse 10 anos. Se a matéria a ser leccionada numa privada e numa pública são iguais, diga-me o porquê de nas privadas haver melhores resultados.
Rui.
Caro Desidério e comentadores,
Não li todos os comentários e espero não repetir informações, mas é conveniente dizer que as escolas públicas mais centrais seleccionam os alunos na entrada. Uma vez que existe muita procura, os alunos são seleccionados e toda a gente sabe que um dos critérios é já as classificações dos alunos. Para além de tudo, até urbanísticamente a selecção é feita: se os alunos forem seleccionados por razões de proximidade geográfica, os ricos são os que compram casas mais ao centro, e as escolas mais ao centro vão acolher os alunos filhos dos ricos. As escolas periféricas vão acolher os alunos dos bairros periféricos. Isso é literalmente o que se passa e qualquer professor é hipócrita se não o assume, uma vez que quando nós professores fazemos um concurso, por exemplo no POrto, colocamos a escola do Cerco em último lugar e a Carolina Michaelis em 1º. Os professores com mais experiência e mais instalados são os que ficam também nas melhores escolas. E isto é o ensino público pseudo socialista.
abraço
Também notei que a discussão esteve a um bom nível.
Caro Jorge
Acho que resumiu bem a nossa discordância, e agradeço-lhe a paciência e a civilidade. É um prazer discutir com gente racional.
O meu ponto de vista é que a escola não deve ser instrumentalizada politicamente. Penso que está do seu lado o ónus da prova e a comparação com os polícias e os juízes não colhe porque é difícil conceber outra maneira de fazer as coisas, neste caso, que fosse melhor. Mas no caso do ensino é muito fácil conceber as coisas de outra maneira: os professores teriam autonomia e seriam os professores de matemática, por exemplo, a determinar o que ensinam aos alunos e como ensinam, e diferentes professores poderiam escolher diferentes coisas, e depois os pais escolhiam as escolas que quisessem. Do meu ponto de vista, prostituir os programas de matemática para ter “unidade nacional” ou “identidade patriótica” é puro delírio estatista. Mas compreendo que se tenha esta posição, porque acho que muita gente absorveu os ideais estatistas do séc. XVIII sem pensar muito bem nisso. Podemos conceber uma sociedade mais livre, menos estatista, mais centrada no ser humano e não nas artificiais “identidades” nacionais, estatais ou comunitárias. Um ser humano é, antes de tudo, um ser humano autónomo, e não um membro de uma unidade política. É verdade que todo o ser humano é necessariamente um membro de uma comunidade cognitiva, mas isso é uma coisa completamente diferente: não há passagem lógica da epistemologia que nos caracteriza como humanos (a nossa racionalidade distribuída) para as identidades patrióticas, estatais ou comunitárias. O que isto quer dizer é que um ser humano pode estar muito mais intimamente associado a pessoas de países distantes e até de tempos históricos distantes, com as quais constitui realmente uma comunidade cognitiva, do que com as pessoas da sua aldeia. Mas isto dá pano para mangas!
Rui, estatisticamente os estudantes de meios culturalmente carenciados são os que têm piores resultados. Há excepções? Sim. Mas são estatisticamente irrelevantes.
Qual é o problema disso? O problema é que a escola não está a cumprir o seu papel social de dar oportunidades a essas crianças e jovens. Isso acontece porque a escola só sabe ensinar quem já vem ensinado de casa. Que são precisamente os que não precisavam que a escola pública existisse.
Claro que essas crianças oriundas de meios culturalmente desfavorecidos têm as mesmas capacidades cognitivas das outras crianças; apenas não se dedicam ao estudo porque no seu meio familiar a escola não é valorizada. E como o estado também não valoriza a escola — e nem a escola se valoriza a si mesma — elas não têm qualquer razão para se dedicar aos estudos. Isto provoca injustiças sociais e cognitivas gritantes. Mas o Ministério da Educação nunca se preocupou com isso, pelo contrário: só se preocupa em aprofundar a mentira política, fazendo essas crianças transitar de ano sem nada saberem. Em parte, esta opção resulta da percepção que há no Ministério, e até em muitas escolas, de que tais crianças não são ensináveis. O que é uma aberração biológica: o talento para o estudo não se transmite geneticamente, de arquitectos e médicos e professores para os seus filhos.
Nestes comentários vários intervenientes já mencionaram a maior parte dos argumentos que tornam o texto publicado pelo Desidério Murcho uma falácia. Vou de qualquer maneira resumir os pontos que acho mais importantes, entre os quais alguns ainda não mencionados.
Em primeiro lugar, é argumentado que o ensino público está eivado de ideologia. Como foi mencionado, todo o ensino, aliás toda a afirmação e acção, tem sempre uma sustentação ideológica. Portanto o ensino privado também será sempre ideológico. Para Desidério isso não é problema, pois entre uma "ideologia única pública" e uma "diversidade de ideologias privadas", é preferível o segundo caso. Não me deixa de espantar tal afirmação em alguém tão ferozmente anti-relativista. Será que Desidério acha que as escolas privadas podem ensinar a Criação Divina em vez da teoria da evolução, ou trocar o ensino da matemática pela olaria?... Não me parece. Deve portanto defender como necessária uma definição (obviamente ideológica) de programas mínimos a ser ensinados nas escolas. Quem o faz? Será o Desidério ou o tal "ministério da propaganda"?... E será que Desidério acha que é legítimo "ensinar" ciências da natureza associando fenómenos naturais a obra de espíritos?! Ou aplicando castigos físicos? Não?... Então tal provavelmente quer dizer que é necessário alguma definição de quais métodos pedagógicos são aceitáveis. Talvez pelo Desidério?... Para o Desidério tudo se resolveria porque os pais naturalmente escolheriam as "melhores" escolas para os filhos. Obviamente tal quereria dizer que, pelo menos, quase todos os pais sabem o que é melhor para os seus filhos. A falsidade de tal proposta é de tal modo evidente que me espanta como alguém inteligente como o Desidério nela pode acreditar. Só se for por razões... ideológicas. Os pais nem sempre, aliás quase sempre, não sabem o que é melhor para os filhos. Porquê? Porque eles não são especialistas em medicina, em pedagogia, em alimentação... Não existe problema se os pais estão conscientes disto, e consequentemente procuram a ajuda de especialistas que os possam ajudar na tarefa de apoiar o desenvolvimento duma criança. O problema existe quando os pais estão convencidos que eles é que sabem melhor. Têm o direito de prejudicar o desenvolvimento duma criança devido à sua ignorância? Os pais são donos dos seus filhos? Podem fazer-lhes o que bem entenderem? Não me parece que o Desidério seja dessa opinião. Então porque aceita que os pais possam decidir colocar os seus filhos em "escolas" da sua escolha, as quais podem afectar gravemente o desenvolvimento dos filhos? Suponho que deve saber que um ser humano não é continuamente "reprogamável". Existem etapas de desenvolvimento que nunca mais se repetem, e que se não forem respeitadas irão afectar aquele ser humano para o resto da vida. Os filhos não são propriedade nem dos pais nem do estado. A responsabilidade pelo seu desenvolvimento recai simultaneamente sobre os pais e a comunidade (sendo o Estado Nacional nada mais do que um tipo de comunidade), devendo por exemplo a sua educação resultar dum consenso entre as partes.
O Desidério parece também colocar a sua fé nos "professores". Mas, quem é professor? Quem define o que é um professor? Alguém que ensina? Quem confirma se ele realmente ensina o que diz ensinar? O Desidério? Ou dar "autonomia aos professores" implica dar autonomia a todos os que se dizem professores (e então não quer dizer nada) ou apenas àquelas pessoas que forem avaliadas como professores. Por quem?... Pelo Desidério? Bom, eu talvez preferisse o "ministério da propaganda" directamente, ou indirectamente através das universidades. Mas... isto abre a porta a um condicionamento ideológico dos professores!...
O Desidério, amirador do pensamento racional, afinal acredita em muitas coisas, como por exemplo "Gostaria de acreditar que seria possível o estado dar autonomia às escolas, mas não acredito nisso."
Prefere por isso acreditar que um sistema de ensino privatizado promove melhor o ensino do que o sistema público. Sem qualquer sustentenção empírica. Mas, a quem interessam os factos quando se acredita?...
"A consequência lógica de defender a autonomia das escolas (a genuína e não a fantasiosa que consiste em dar a gestão das escolas aos políticos locais) é o fim do ensino público."
Temo que a sua lógica precise dum banho de realidade. Sugiro-lhe que, por exemplo, se informe sobre o sistema de ensino norueguês aqui
http://www.norway.org.uk/education/education/facts/facts.htm
onde pode constatar que o sistema público é completamente hegemónico, e existe apesar de as escolas terem um dos maiores graus de autonomia na Europa, por exemplo no que respeita à contratação de professores, como pode verificar neste estudo comparativo (ver tabelas finais)
http://www.eurydice.org/ressources/eurydice/pdf/0_integral/090EN.pdf
Obviamente, que nem a autonomia das escolas origina um excelente sistema de ensino PARA TODOS como se constata pela triste situação nos EUA, nem um sistema centralizado resulta num péssimo sistema de ensino, como se pode verificar pelo sistema de ensino finlandês, um dos melhores do mundo e onde as escolas pouca autonomia possuem.
Mas será que a realidade acabará por alterar a opinião do Desidério Murcho, onde a ideologia será mais forte?...
O texto de Desidério tem a sua lógica, no entanto, carece de algo fundamental... A "experiência"...
Ora vejamos:
1-"Finalmente, note-se que do facto de o ensino ser privado não se segue que visa o lucro. Pode visar o lucro, mas não tem de o visar."
Qualquer negócio visa o "lucro". É de uma inocência atroz pensar que assim não acontece...
(O exemplo dos jornais que dá éum péssimo exemplo... Onde anda o jornalisto de investigação em Portugal?)
Já o último de Michael Moore? O que acontece com a "saúde privada" nos Estados Unidos?
2- A questão das bolsas do ensino privado é utópia portugesa, basta ver como são os concursos de professores e a bolsa de doutoramento para se perceber como funcionam os concursos.
3- O ensino privado pode ser bom.. É verdade sim senhor... Mas e o público? Curioso que os países com melhores niveís de educação da sua população são os países Nórdicos que têm um sistema baseado no ensino público.. Magia?!
Acrescento:
"Podem ser cooperativas de professores, que visam exclusivamente gerar o dinheiro necessário para se sustentarem."
A esta frase resta-me dar uma grande gargalhada... Desidério já pensou quem vai pagar ordenados elevados dos professores? Ou acha que numa instituição privada os professores vão ficar a ganhar o mesmo que ganhariam no Estado? Não basta o exemplo das clinicas e dos hospitais privados? Pois.. Médicos também deveriam ganhar o suficiente para se sustentarem...
Caro Desidério,
Algumas notas sobre o seu último comentário:
1. «A escola não deve ser instrumentalizada politicamente.» Estamos de acordo se o politicamente for entendido no âmbito semântico do conceito inglês «policy». Já não estamos de acordo se o âmbito for a «polity», entendida enquanto Estado como sociedade organizada. Neste caso nem se trata de instrumentalização: escola e estado requerem-se mutuamente, pois o Estado institui a escola e a escola forma a comunidade que se organiza em Estado. Esta dialéctica sempre esteve presente desde os gregos. No entanto, ela manifestou-se na sua plenitude com o Estado-Nação.
2. “O poder conceber de outro modo”. Diz que a Justiça ou a Defesa Nacional não se podem conceber de outro modo, enquanto o ensino sim. Eu posso conceber uma defesa nacional assente na contratação de serviços privados de mercenários, estrangeiros ou nacionais. Posso, inclusive, conceber uma magistratura privada que vende os seus serviços ao Estado ou às partes em conflito. O facto de eu poder conceber isso, não quero dizer que seja desejável. Nem tudo o que é pensável ou realizável é desejável. Há valores que são de preservar, como a independência, a submissão dos militares ao poder civil, etc., que estariam muito longe de ser defendidos pelos privados. Na minha óptica, o mesmo se passa com a educação. A educação instituída pelo Estado não visa tornar o aluno num marxista, ou num liberal ou num social-democrata, ou num democrata-cristão, num ateu, num muçulamo ou num cristão. Mas visa torná-lo cidadão, prepará-lo para querer viver nas instituições comunitárias e sob o império da lei. Na minha óptica, a educação pública, porque tem nisso um interesse específico, fá-lo melhor do que a privada. Esta só o faz devido ao enquadramento político e à concorrência da educação pública.
3. O currículo pessoal. Fala na liberdade dos professores fazerem o seu próprio currículo. Para mim isso é aceitável a partir de determinado grau de ensino. Devido aos bens políticos prosseguidos no ensino não superior, essa autonomia não é possível. Há que assegurar linguagens mínimas comuns. Entendo o conceito «linguagens» numa dimensão muito ampla, desde a língua materna até ao mínimo comum da linguagem matemática e científica. É a construção de um património comum que nos permite o entendimento e um senso comum mais ou menos ilustrado. Mas isto é para mim que, à maneira do velho Aristóteles, acredito que o homem é um animal político. Mais, o político faz parte da essência do homem, para falar à maneira da ontologia, como o racional, isto é, constituem ambos a sua diferença específica.
4. «Mas compreendo que se tenha esta posição, porque acho que muita gente absorveu os ideais estatistas do séc. XVIII sem pensar muito bem nisso.» Penso que este argumento não é justo nem correcto, pois não passa de um argumento ad homine. A questão do Estado interessa-me e o destino do Estado-Nação interessa-me particularmente, nomeadamente no Ocidente, onde ele está a ser bombardeado continuamente. É um facto que eu posso conceber outras formas de Estado que não a actual, mas não posso conceber, fora da esfera da utopia, a existência do homem fora do Estado. Os ataques ao Estado-Nação visam muito claramente criar condições para que os mais fortes se imponham sem reservas aos mais fracos. Muitas vezes são os próprios governantes que disparam contra o Estado-Nação. No entanto, enquanto isto se passa no Ocidente, as potências emergentes fortalecem e fortificam o seu Estado. Mas isso são contas de outro rosário.
5. «Um ser humano é, antes de tudo, um ser humano autónomo, e não um membro de uma unidade política.» Se pensar um pouco, descobre que o que diz não é verdade. Um ser humano é já pertença de uma comunidade política antes de ser autónomo. E é essa comunidade política que o protege através do império da lei. É na relação com a comunidade, medida pelas instituições (Estado) que o ser humano se torna racional, isto é, autónomo. Qualquer comunidade cognitiva ou qualquer Reino dos Fins pressupõe a existência de comunidades políticas. Se estas não existirem, essas entidades tornar-se-iam de imediato em comunidades políticas semelhantes às actuais.
No ponto 5, onde escrevi:
«medida pelas instituições»
queria escrever:
«mediada pelas instituições».
Há outros deslizes, mas este é o único de natureza semântica.
Caro Pedro, obrigado pelas críticas atentas. As dificuldades que levanta resolvem-se facilmente, e eu pensava que isso já era claro no meu texto.
1. Você pressupõe que todo o ensino é ideológico. Eu acho que isso é falso. Sei muito bem distinguir entre um ensino ideologicamente enviesado da filosofia e outro que o não é. Mas aceitemos que todo o ensino é ideológico. Eu aceitei isso para efeitos de argumentação, percebe? Ora bem, aceitando isso, o que se segue? Que a ideologia única do estado é boa porque é do estado? Isto é absurdo. E por que não a ideologia do Benfica? A ideia tola é que o estado tem uma ideologia que é partilhada por todos os cidadãos, o que é patentemente falso. Se fosse verdade, não haveria partidos diferentes. Assim, a minha resposta é esta: mesmo que o ensino fosse inevitavelmente ideológico, seria muitíssimo pior que só a ideologia do estado existisse. Numa sociedade plural deve haver vários pontos de vista diferentes, mas eu sei que na mentalidade salazarista portuguesa isto é um anátema. O Pensamento Único é ainda o Grande Ideal Civilizador Nacional. É o tal fascismo entranhado na mentalidade portuguesa. Mas continuemos o argumento: se fosse verdade que todo o ensino é ideológico, então o melhor a fazer seria não haver uma educação única, mas antes várias. E isso permitiria estabelecer limites, mesmo que o estado não interferisse noutros aspectos. As escolas poderiam ser obrigadas a leccionar Matemática, Física, Português — poderia haver um desenho curricular mínimo obrigatório. Mas eu penso que na prática isto é uma fantasia, pois nenhuma escola iria deixar de ensinar estas coisas. Nenhuma escola iria ensinar apenas o terço, ou o criacionismo. Mas quem está muito preocupado com a manipulação das crianças, como você, devia defender já a proibição do ensino religioso. Tem coragem de o dizer publicamente? Eu digo-o, e digo mais: é imoral os pais darem educação religiosa aos filhos, pois isso é a psicofoda máxima. Mas será que tudo o que é imoral deve ser proibido? Isso já é outra questão. Para quem sofre da síndrome da proibição, sim. Mas não é óbvio que esse seja um bom princípio de organização social.
2. O Pedro está obviamente irritado porque odeia a iniciativa privada e tem medo do ensino privado. Mas deve recordar que o ensino privado EXISTE. E existe assim: os ricos vão para os melhores colégios até à universidade, pagos a peso de ouro. Depois, vão para os melhores cursos das universidades públicas. Os pobres, andam nas piores escolas públicas, até à universidade. Depois, vão para as piores universidades privadas, pagas com imensos sacrifícios. Sente-se bem com esta situação? Não sente que algo está errado? Com certeza que sim. Mas, diga-me, o que pretende fazer? A resposta óbvia é: melhorar o ensino público. Estou consigo de alma e coração. E já dediquei muitas horas da minha vida a essa tarefa ingrata (ingrata porque não é academicamente reconhecida, nem socialmente). Mas é isso exequível? Conseguiremos realmente melhorar o ensino público? Talvez sim, talvez não. Por via das dúvidas, não será melhor legislar no sentido de garantir que os estudantes pobres tenham acesso aos colégios dos ricos, em função do seu talento? Não será melhor procurar incentivar um ensino privado de qualidade que responda às necessidades dos mais carenciados? A formação de cooperativas de ensino autónomas, genuinamente interessadas na excelência do ensino? Ah, claro, talvez o Pedro considere, como o Ministério, que todos os professores são uns idiotas que deviam ser presos. Mas isto é falso. Há muitos e muitos professores altamente profissionais que só não fazem um trabalho melhor porque a escola pública os afoga em trabalhos absurdos que nada contribuem para a qualidade do ensino: grelhas, formulários, reuniões, definição de estratégias que não se seguem, etc. Muitos desses professores têm consciência social e estão preocupados pelo facto de os alunos mais carenciados serem precisamente os que são mais prejudicados pela escola pública, que deveria ser para eles. Qual seria o problema de incentivar escolas independentes que oferecessem excelência a quem hoje não a encontra na escola pública? Ah, o problema é este: o ódio nacional à iniciativa privada, a ideia estranha de que só o estado pode ser o garante de tudo o que é bom e bonito, mesmo contra todas as evidências de novecentos anos em que o estado tem sido sistematicamente o garante de privilégios imerecidos e o principal promotor da desigualdade social. Mas fé é fé, Pedro.
3. Os exemplos que dá de países com sistemas de ensino público com autonomia são maravilhosos. Eu próprio os conheço, vivi sete anos no Reino Unido, onde os exames nacionais são feitos por privados, mas são públicos num certo sentido. Onde as escolas públicas têm muita autonomia e onde não há sequer currículos nacionais, em muitos casos. Mas o ensino é quase todo público. A questão, Pedro, é que as mesmas pessoas que ficam com os cabelos em pé quando se fala em ensino privado, ficam histerias quando se fala em dar esse tipo de autonomia às escolas e aos professores, e pelas mesmas razões: porque pensam que então os professores de Matemática vão passar a ensinar numerologia e os de Biologia, criacionismo. Portanto, decida-se. Não pode este tipo de argumento contra o ensino privado e depois usar exactamente o mesmo tipo de argumento a favor da autonomia das escolas. Se o fizer, sei que está só a contar lérias, e que não está realmente interessado na autonomia das escolas e dos professores: o que você quer é alguém no ministério a mandar nas escolas todas e nos professores, porque só isso garante seja lá o que for.
Em conclusão: repare que me estou nas tintas para a existência ou não de escolas públicas ou privadas, desde que tenham qualidade e desde que sejam autónomas. O meu argumento é só este: dado que não parece possível um sistema público de ensino de excelência, o melhor é repensar a sua necessidade.
Não se ofenda, por favor, com o humor da minha resposta. Agradeço as suas críticas e espero ter apresentado algumas ideias relevantes para si, ainda que no meio tenha gozado um pouco consigo. Você também gozou um pouco comigo e eu não tenho problemas com isso, não me ofendi nada.
O curioso disto tudo é que enquanto a melhores universidades (e não todas) norte-americanas são privadas, as piores universidades portuguesas são privadas... Acho que diz alguma coisa sobre o ensino privado nacional, não?
Caro Jorge, penso que temos uma discordância de fundo muito importante. Eu sou anti-estatista, você é hegeliano e vê no Estado, com maiúscula, a expressão máxima do ser humano. Isto é treta. Os seres humanos são inerentemente racionais e a racionalidade é inerentemente pública, distribuída, comunitária. Mas o estado não é a unidade que confere identidade aos seres humanos, é apenas uma mentira política para oprimir as pessoas sem poder convencendo-as de uma fantasia imaterial. Precisamos com certeza de estar organizados politicamente, mas a organização política pode e deve almejar à máxima liberdade das pessoas, ao respeito pelas pessoas e não à imposição de ideias aos outros. Hinos nacionais, bandeiras, fronteiras, alfândegas — tudo isto são mentiras políticas que fazem algumas pessoas pensar que esta é a única maneira de organizar sociedades complexas. É falso.
Mas isto é outra discussão. No que respeita ao ensino público você não pode defender 1 e 2 ao mesmo tempo:
1) Que todo o ensino é ideológico.
2) Que o ensino tem de ser publico para proteger as pessoas das ideologias.
Isto é absurdo porque significa que há algo na ideologia do estado que é bom para toda a gente e aceite por todos. Isto é falso. Muita gente não aceita muitas das ideias veiculadas pelo estado, este ou outro qualquer. As pessoas são inerentemente diferentes. Por isso, você tem de admitir claramente o seguinte: você quer educação para dar uma lavagenzinha ao cérebro das crianças, para minimizar as ideias “subversivas”. Isto, no meu entender, é inaceitável. Absolutamente.
Mas há algo que eu poderia conceder-lhe, se você não fosse tão radical ao defender que todo o ensino é ideológico. Se você começasse por defender que o ensino pode ser mais ou menos isento e que o papel do estado é garantir um ensino isento ao maior número de pessoas, e defender precisamente essa isenção, eu poderia aceitar — pelo menos em princípio. Eu aceitaria que, SE o estado garantisse tal coisa, como Condorcet desejava, e se a única maneira de garantir isso fosse através do ensino público (como Mill via que não é verdade e eu concordo), então eu aceitaria a necessidade do ensino público. O ensino público seria necessário porque estaria a garantir o direito à verdade das pessoas. Tal como os tribunais são necessários porque garantem o direito à justiça das pessoas.
Mas você não faz nada disto. Está tão obcecado com as ideias estatistas do séc. XVIII que quer o estado no ensino público não para garantir o direito à verdade, mas para garantir… a perpetuação do estado! Estranha posição esta, Jorge. Com o mesmo argumento eu cancelo as eleições depois de ser eleito, para garantir a minha perpetuação no poder.
Álvares, os médicos do privado ganham mais do que os médicos do público. Mas você argumenta como se fosse ao contrário.
O sistema americano é mau? Sim, péssimo. Segue-se que só um sistema público pode ser bom? Não. O sistema brasileiro é público e é péssimo.
O que precisamos é de mais imaginação e menos ideologia. O qaue nos interessa é ter sistemas de saúde e de ensino de excelência, e que esses serviços de excelência sejam acessíveis aos mais pobres. Tanto me faz se isso é público ou privado. O meu argumento é só que o sistema de ensino em Portugal não tem saída porque está asfixiado pelo estado. E espanto-me sempre ao ver como as pessoas em Portugal têm medo da liberdade.
Álvares, é verdade que alguma das piores universidades, em Portugal e no Brasil, são privadas. Mas muitas públicas também. E? Como raio argumenta a partir daí? Lembre-se, o meu argumento não é que o ensino privado é necessariamente melhor do que o público, mas antes que o ensino público não é necessariamente melhor do que o privado. Portanto, o facto de haver escolas privadas piores do que as públicas é irrelevante. Mas é relevante haver escolas privadas melhores do que as públicas, pois isso mostra que o ensino privado não é necessariamente pior. Na verdade, para pôr as coisas em pratos limpos, isto é assim: quando os serviços são para ricos, seja no ensino seja na saúde, são bons; quando são para pobres, que se lixe. E eu acho que é muito hipócrita defender o ensino público cegamente, enquanto os ricos vão tranquilamente para o melhor ensino privado, ou gastam recursos que deveriam ir para os pobres, enchendo completamente as escolas públicas de elite, no centro das cidades. Parece muito bonito defender o ensino público, porque parece que estamos ao fazer isso a defender o direito ao ensino dos mais pobres, mas isso é falso; o que estamos é a defender a manutenção da mentira política actual na qual os pobres são enganados com ensino de péssima qualidade, enquanto os ricos lhes passam à frente, consumindo ao mesmo tempo recursos do estado que deviam ir direitinho para os pobres. Mas, claro, quem anda nos blogues e nas televisões e nos jornais a falar não pertence às classes pobres e por isso não tem realmente qualquer tipo de interesse em defender os pobres; só tem interesse ideológico em mostrar que é de esquerda porque fica bem.
Bem eu tinha a intenção de ler os comentários, mas são demasiados. Se escrever alguma coisa aqui que já tenha sido escrita/refutada, peço desculpa.
Desidério,
Não concordo, de todo, com a sua perspectiva sobre a privatização do ensino por uma série de razões.
1. diz no seu texto que com um ensino público pode haver mudança de mentalidades. qual é a vantagem? quais são os motivos práticos que levarão um governante que governe 4 anos a mudar as mentalidades? não faz muito sentido. claro que pode colocar a questão das ditaduras, mas essa não interessa, porque em ditadura controla-se tudo, não só o ensino.
2. o efeito preverso da educação do Estado (presumindo que seja possível essa manipulação) ainda será mais acentuado no privado. vejamos. as escolas públicas, ou melhor, o ensino público não é apenas controlado por quem governa. existem observadores, pessoas que se opõem a determinadas políticas, o que permite que um partido esteja "apertado" para fazer tal coisa como manipular através das escolas. por seu lado, as escolas privadas não enfrentam qualquer controlo externo. quem decide o que se ensina e como se ensina são exactamente os donos das escolas (veja-se na américa como funcionam as universidades: ou são republicanas ou democratas, não há grandes misturas). ninguém exterior à escola pode ir contra o que lá se diz porque não é propriedade pública, ao contrário do que acontece hoje.
3. a questão da propriedade pública leva-me a fazer uma distinção numa coisa que disse no seu post. as escolas autónomas da alemanha não são o mesmo que as escolas privadas americanas e explico porquê. as escolas alemãs, apesar de toda a autonomia que tinham, eram públicas e, por isso, quem as dirigia não se podia dar ao luxo de educar de forma manipulatória porque tinha quem o controlasse, "lá em cima". as escolas privadas americanas não têm esta componente fundamental que é a questão do controlo daquilo que é lá dito e feito.
Concordo plenamente consigo que modelos de aprendizagem diferentes em várias escolas permitiria que se melhorasse o ensino, mas nunca com um ensino exclusivamente privado porque se há manipulação no ensino, essa existe no sector privado e não no sector público.
Caro Desidério,
1. «Os seres humanos são inerentemente racionais e a racionalidade é inerentemente pública, distribuída, comunitária». A utilização do conceito de inerência tem uma função ocultadora do que se passa. Todos, ou quase todos, os neonatos da espécie humana são potencialmente racionais. Mas a racionalidade só se torna “actual” pela relação com o outro e com as instituições. Estas estruturam o espaço relacional onde se desenvolve a racionalidade de cada um de nós. Foi aquilo que se passou comigo, consigo e com qualquer um (o estado regula a família, a escola, o espaço social. Em todo o lado há um império da lei). Não é Hegel que vê. É a pobre realidade empírica que teima em ser assim.
2. «Mas o estado não é a unidade que confere identidade aos seres humanos…» Pois, mas… Até o seu nome, essa etiqueta vazia que os seus pais lhe deram para preencher com a vida, foi autorizada pelo leviatã, que a registou, datou e localizou, para além de lhe fornecer a documentação para você acreditar que existe. Nem estou a fazer um juízo de valor. Constato um facto. A identidade é-lhe dada pela biografia, mas esta biografia inscreve-se no registo civil, hélas.
3. «organização política pode e deve almejar à máxima liberdade das pessoas.» A organização política apenas deve almejar persistir na existência, assegurar a sua continuidade. As pessoas é que devem almejar à máxima liberdade. É na confluência destas duas intencionalidades que se faz o jogo político. Mas este jogo só se faz porque a estrutura política e os jogadores lhe pré-existem. E este é um dos enigmas do político: o desse primeiro momento em que há estrutura e jogadores do jogo político.
4. Sobre a questão da ideologia e do ensino e de eu querer duas coisas antagónicas. Um exemplo: as sociedades democráticas assentam ao mesmo tempo no consenso e no conflito. Por exemplo, o conflito ideológico que funda os partidos. Mas o consenso também ele é ideológico (por vezes rompe-se e conduz à guerra civil ou ao estado de excepção). Mais uma vez, o Desidério não toma em consideração a distinção entre polity e policy. A educação é o fundamento do consenso, ao mesmo tempo que funda e permite o conflito (isto é, cada um pensar por si). O facto de as pessoas serem diferentes, não implica que não possam consensualizar um conjunto de regras e de instituições.
5. Sobre a isenção do ensino público. O ensino público só pode ser isento até a um certo ponto: não pode aceitar que a comunidade que o instituiu deva desaparecer. Mas se o fizer é porque está a preparar a instauração de outra (talvez o caso espanhol não seja desinteressante, nomeadamente na Catalunha). Este limite não significa que o ensino se torne propaganda político-partidária.
6. O Desidério vê o Estado de uma forma muito curiosa: como se ele fosse o mal absoluto. A minha opinião é que o Estado é o lugar do mal por excelência, mas não por ser Estado. Há que distinguir duas camadas: por um lado, o Estado é apenas a comunidade organizada para tomar decisões e que permite que os seus membros se defendam de modo cooperativo. A questão está na colonização do estado por interesses privados que desviam a instituição para os seus fins particulares. Mas aqui estamos ao nível do governo, do príncipe. O Estado por ter o monopólio da violência legítima presta-se a derivas que o afastam da isenção. Esse é o risco de não podermos viver no estado de natureza.
7. «quer educação para dar uma lavagenzinha ao cérebro das crianças, para minimizar as ideias “subversivas”». Não me parece que isto seja sério. Qualquer educação é transmissão de valores. Mesmo na Matemática e nas Ciências da Natureza há uma selecção de valores. Também elas não são bactereologica e ideologicamente puras. Resultam de determinadas opções racionais que não estão inscritas na natureza das coisas. Quando se escolhe ensinar Darwin e não o criacionismo bíblico nas ciências da natureza estamos a optar por valores. Quando se valoriza a decisão baseada na razão em detrimento da baseada no sentimento estamos a fazer uma escolha ideológica. Todo o currículo resulta de escolhas que não estão inscritas na natureza das coisas (é ideológico). Não há volta a dar. Um imã fundamentalista dirá que os ocidentais ao valorizarem a razão inscrita na ciência estão a fazer lavagens ao cérebro. Não estou a dizer que é tudo igual. Estou a dizer que não há um lugar que não seja o resultado de uma decisão. Onde é que uma comunidade se organiza para tomar decisões, nomeadamente naquilo que deve ser comum a todos os membros futuros? No Estado.
8. Caro Desidério, tudo isto sem qualquer animosidade. Apesar da diferença há coisas que para nós parecem consensuais: a civilidade, o uso da razão, a superioridade da argumentação sobre a violência, o interesse por aquilo que é o melhor. O resto faz parte do conflito.
Jorge, a racionalidade não existe apenas quando existe estado, camandro! A racionalidade é distribuída e comunitária, mas o estado é apenas uma maneira particular de organizar as comunidades. Podemos discutir se é a melhor ou não, mas não podemos argumentar que o ser humano é produto de um estado. Isto é absurdo. Mas todo o ser humano é produto de uma comunidade racional. Logo, a identidade mais profunda de todo o ser humano é com a comunidade racional e não com o estado. Você pode acreditar na mentira política de que o estado é a forma superlativa de organização das comunidades humanas, mas não pode com certeza acreditar que sem estado não há seres humanos.
No pensamento da direita, no qual penso que se inscreve (perdoe-me se estou enganado), é verdade que o estado tem por único fim persistir e impor-se a tudo, incluindo os outros estados. Mas do meu ponto de vista isto é insustentável. O estado é um instrumento humano como outro qualquer, como os garfos. Usamo-los quando são úteis, e mesmo que não possamos viver sem eles, limitamos cuidadosamente o seu uso para não andarmos por aí a tirar olhos com garfos. O estado não tem, do meu ponto de vista, a mística hegeliana que você lhe confere, a mística que a direita confere ao estado (e nisto o pensamento soviético ou chinês ou cubano é marcadamente de direita, hélas). O estado é apenas um instrumento que inventámos. Se pudermos viver melhor sem ele, vivemos. Se não pudermos, vivemos com ele, mas tentamos limitar cuidadosamente o seu poder.
Não há hipótese, Jorge. Se você aceita que todo o ensino é transmissão de valores (e você parece pensar, erradamente, que transmissão de valores é necessariamente transmissão ideológica de valores, o que eu penso que é totalmente falso), tem de defender que o estado quer o ensino precisamente para transmitir os seus valores em vez de outros. Mas por que raio havemos de aceitar tal coisa? Por que raio haverá alguém que discorda dos valores do estado português de querer aceitar tal coisa? E não é preciso ser muito esquisito para não aceitar os valores de um qualquer estado particular: basta ser lúcido. Isto porque entre os valores de todos os estados está a ideia patentemente ridícula de que o nosso estado é melhor do que todos os outros e que é legítimo eliminar qualquer outro estado ou roubar as pessoas de outros estados se isso for bom para o nosso estado. O estado é apenas a epítome da tolice xenófoba humana, e serve para as pessoas do estado A olharem para as pessoas do estado B e em vez de verem as pessoas vêem apenas nacionais de outros estados. O estado é desumanizador precisamente por isso, e é por isso que é importante limitar ao máximo o seu poder, e o seu mais perigoso poder é o poder de controlo das mentalidades.
Felizmente concordamos no modo como devemos discordar! É um prazer discutir assim.
Caro Desidério,
A discussão vai longa, mas não tem sido para mim perda de tempo. Pensar com o outro, mesmo que seja contra o outro, é uma forma de descobrir o que se pensa. Assim:
1. «O estado é apenas uma maneira particular de organizar as comunidades». A entrada de uma comunidade na história foi sempre a transição de formas rudimentares de organização política para a organização estatal. Eu não conheço seres racionais fora do Estado. Posso imaginar que sim. O anarquismo imaginou-o e decidiu-se pelo terrorismo para acabar com o leviatã, o comunismo também pretendia ser essa comunidade racional sem estado e não foi mais do que a colonização do estado pelo terror, o próprio liberalismo mais duro acaba por fragmentar as comunidades e criar condições para um despotismo doméstico disseminado. Repare que sempre que se imagina o fim do estado o que temos, historicamente, é o terror. Isto dá que pensar. Por outro lado, eu não conheço nenhuma comunidade de seres racionais que não se organizem em estado ou sob a alçada do estado. Isto nem é uma ideia. É a constatação de um facto empírico.
2. Eu já dei a entender a minha filiação na tradição clássica dos gregos. É curioso que para Aristóteles este animal que é o homem se diferencia especificamente pela racionalidade mas também pela política. Esta percepção não ocorre por acaso, mas por que ambas as diferenças parecem requerer-se mutuamente. Hegel, aliás como toda a tradição do ocidente, percebe isto. Onde eu não acompanho Hegel é na totalização e no Estado como manifestação do absoluto. Porque a razão é sempre fragmentária e a universalidade, que parece ser a sua essência, é uma pretensão ao universal, mas não mais do que isso. O que significa que os estados não devem ser absolutos, as totalizações que os estados fazem são sempre abertas e como tal limitadas e eles devem conformar-se com esta sua natureza (o que muitas vezes não acontece). Porque há uma coisa que esquecemos nesta discussão, ou que recalcamos. Voltando a Aristóteles: o homem é o animal racional e político. A dimensão animal que não é pensada politicamente tem um papel fundamental. A animalidade dá-nos a dimensão do transitório. Uma razão que se inscreve na transitoriedade precisa de uma estrutura institucional que permita a sua persistência e transmissão. Já percebeu como chamo a essa estrutura institucional, o Estado. Mas este estado é também ele contaminado pela dimensão animal dos racionais que o constituem. Por isso, deve ser limitado no exterior (por outros estados) e internamente (pela divisão de poderes e pelas pretensões dos indivíduos). Ele é por isso imagem da fragilidade do animal. É por tudo isto que eu não o posso acompanhar na proposição: «Logo, a identidade mais profunda de todo o ser humano é com a comunidade racional e não com o estado.» A identidade mais profunda do ser humano resulta da dialéctica de três termos: a animalidade (sou corpo vivo), a racionalidade e a instituição. Também não o posso acompanhar nisto: “Você pode acreditar na mentira política de que o estado é a forma superlativa de organização das comunidades humanas, mas não pode com certeza acreditar que sem estado não há seres humanos”. A existência do Estado não é uma questão de mentira. Ele existe. Como tal dá que pensar. Não conheço seres humanos fora dos estados, por mais rudimentares que estes sejam. Se um grupo de seres humanos se separasse para um espaço não estadual, de imediato organizar-se-iam em relações de poder que seriam o prenúncio de um estado.
3. “O estado é apenas a epítome da tolice xenófoba humana”. Mas o problema não é o da moralidade do estado, mas da sua natureza ontológica, digamos assim. Mas aqui também há uma confusão: entre a comunidade e a instituição na qual a comunidade se organiza. Não são estados que são xenófobos, são as comunidades constituídas por indivíduos. Tornar os indivíduos e as comunidades mais razoáveis torna o estado mais razoável. Mas aqui há também uma circularidade, como se a razão, na sua fragilidade, precisasse de tempo para se afirmar através de um tactear.
4. «Por que raio haverá alguém que discorda dos valores do estado português de querer aceitar tal coisa?» Pela mesma razão que aceita a protecção que ele lhe dá e usufrui os direitos que ele lhe outorga. Caso contrário, bate-se pela sua alteração, dentro das regras do jogo, ou expatria-se. Mas aquilo que eu defendo sobre a determinação ideológica do ensino passa por coisas muito consensuais: bom conhecimento da língua e literatura materna, de línguas e literaturas estrangeiras, história (nacional e universal), desenvolvimento da dimensão estética e as disciplinas da razão (a matemática, as ciências e numa fase mais avançada a filosofia como propedêutica ao uso da razão crítica e da autonomia da pessoa). A ideologia do Estado que eu defendo para o ensino é aquela que produz seres racionais e críticos, porque esta é a essência do próprio estado. Talvez aqui, nos fins do ensino, nos possamos encontrar.
5. Ah, não sou de direita, mas não me ofendeu. Também não sou lá muito de esquerda. Reconheço-me, em política, na justa medida dos gregos, no equilíbrio e na harmonia das comunidades como base para projectos de vida individuais e livres. Dito de outra maneira: num certo cruzamento das tradições liberais com as social-democratas, melhor na vigilância que as correntes políticas fazem umas às outras. Detesto tanto como o Desidério que me imponham ideias. Mas não faço utopias e aceito o Estado como uma condição da nossa natureza. O meu problema é torná-lo mais razoável.
Como seria de esperar, dado o fraco nível de argumentação demonstrado, Desidério optou por evitar responder à maior parte das críticas que levantei, desviando o assunto com considerandos despropositados. Ardil de quem se sabe enredado em contradições, que JCM tem por demais desmontado de modo, reconheço, mais elegante do que eu.
"Você pressupõe que todo o ensino é ideológico. Eu acho que isso é falso. Sei muito bem distinguir entre um ensino ideologicamente enviesado da filosofia e outro que o não é."
Humildade é algo que notoriamente lhe falta. Não vou estar agora a discutir consigo o conceito de ideologia. Acho apenas que é preocupante que alguém que se acha filósofo seja incapaz de aceitar que qualquer escolha (por exemplo sobre o que e como ensinar) necessita de postulados, que no seu conjunto, por definição, constituem uma ideologia (pessoal, mas que resulta fortemente da exposição a ideologias do domínio público).
"Que a ideologia única do estado é boa porque é do estado? (...) A ideia tola é que o estado tem uma ideologia que é partilhada por todos os cidadãos, o que é patentemente falso. Se fosse verdade, não haveria partidos diferentes."
O Desidério gosta muito de argumentos faliciosos, sem dúvida. A ideologia que se encontra por detrás dos conteúdos programáticos do ensino público resulta sempre, em sociedades democráticas, dum largo consenso público (com talvez a excepção de sociedades fortemente polarizadas como a dos EUA). Vejamos o caso de Portugal. Em mais de 30 anos de Democracia, quais foram as grandes mudanças ideológicas que ocurreram nos conteúdos programáticos do ensino público? Houve alguma situação em que esses conteúdos foram alterados significativamente como resultado da mudança de partido de governo? A ideologia que se encontra por detrás do ensino público não precisa de unanimidade, precisa apenas de ser consensual, de ser aceite, e reconhecida como a melhor, pela larga maioria da população. E, repito, tal acontece, pelo menos em todos os países europeus, inclusivé Portugal.
"Assim, a minha resposta é esta: mesmo que o ensino fosse inevitavelmente ideológico, seria muitíssimo pior que só a ideologia do estado existisse. Numa sociedade plural deve haver vários pontos de vista diferentes"
Na terrível ideologia de estado que permeia o ensino público um dos aspectos que é mais valorizado é o método científico e a discussão de pontos de vista diferentes. Mas para o Desidério todas as ideologias são igualmente meritórias... por isso ele prefere ver alguns alunos a aprender criacionismo em vez de todos a aprender ciência. Efectivamente, para Desidério, algumas crianças devem ser sacrificadas para que através dela todas as crenças, por mais preneciosas, possam premanecer vivas na sociedade.
"(...)poderia haver um desenho curricular mínimo obrigatório. Mas eu penso que na prática isto é uma fantasia, pois nenhuma escola iria deixar de ensinar estas coisas. Nenhuma escola iria ensinar apenas o terço, ou o criacionismo."
Como já antes disse, o Desidério tem muito em comum com os religiosos fundamentalistas que aparentemente diz que detesta: ambos gostam de acreditar em coisas que são abertamente contraditas pela realidade - ora leia por exemplo http://www.guardian.co.uk/uk/2002/mar/19/politics.raceineducation
O ensino de crenças religiosas por si só não é suficientemente negativo para ser proibido, desde que simultaneamente as crianças aprendam a pensar partindo dum ponto de vista céptico.
Quanto ao ponto 2, expremida tão longa diatribe, basta relembrar-lhe que os países ocidentais cujos sistemas educativos produzem alunos com melhor classificação nos testes PISA são claramente a Finlândia e o Canadá. Ambos com sistemas públicos de ensino hegemónicos, possuindo a Finlândia para além disso um sistema altamente centralizado. Podia-lhe chamar a atenção para o facto da "excelência" de meia dúzia de escolas privadas em Portugal ser na sua grande maioria devida ao elevado nível social dos seus alunos, não sendo portanto de todo assegurado que o mesmo grau de "sucesso" seria atingido com alunos com diferente proveniência social. E podia-lhe também chamar a atenção para o facto óbvio que as condições existentes nessas escolas não serem reproduzíveis em massa, como suponho ser o que pretendia com a privatização do sistema de ensino. Mas, para quê? A lógica e os factos não parecem interessar muito ao Desidério Murcho. Apenas a sua cega crença que privatizando o sistema de ensino, este necessariamente melhora.
Quanto ao seu ponto 3, o que eu dei foi um exemplo de como é possível obter uma autonomia elevada dentro dum sistema público hegemónico, o caso da Noruega, coisa que o Desidério, mostrando ignorância sobre o que fala, dizia que não era possível. No entanto, tal autonomia não é total. Há um currículo nacional extenso que é imposto a todas as escolas, as quais apenas possuem autonomia para adicionar matérias extra-curriculares. Essa autonomia acho desejável. Quanto ao Desidério, ainda não percebi o que quer. Por vezes parece que aceita tudo, outras fala num currículo nacional mínimo, depois diz que autonomia (extra?)curricular apenas se consegue num sistema de ensino privatizado, mas que também afinal conhece sistemas públicos com larga autonomia. Decida-se.
"Em conclusão: repare que me estou nas tintas para a existência ou não de escolas públicas ou privadas, desde que tenham qualidade e desde que sejam autónomas. O meu argumento é só este: dado que não parece possível um sistema público de ensino de excelência, o melhor é repensar a sua necessidade."
Quão autónomas? Quanta ideologia está disposto a aceitar através dum currículo nacional mínimo? A afirmação de que não é possível um sistema público de ensino de excelência é empiricamente falsa. E é inclusivé falso que a existir tal sistema tivesse de ser fortemente descentralizado. Repito: a Finlândia possui o melhor sistema de ensino ocidental, testado internacionalmente, sendo praticamente todo público e altamente centralizado. Inclusivé, oh heresia total, na Finlânida ninguém reprova!... Quando é que vai começar a rever a sua fé dados os factos empíricos que tem à sua frente?...
E, já agora, não me deixa de fazer impressão que alguém, como o Desidério, que é um forte crítico da ascensão recente dos "especialistas auto-didactas" que se acham capazes de discutir em igualdade de circunstâncias com especialistas com provas académicas dadas, caía exactamente no mesmo padrão: faz recomendações sobre o sistema de ensino quando não é de todo um especialista em educação. Pior, demonstradamente nem sequer se deu ao trabalho de se informar sobre o que existe em termos de sistemas educativos por esse mundo fora, e qual o seu grau de sucesso em termos comparativos. Recomendo-lhe que da próxima vez faça o trabalho de casa antes de se pôr a opinar com base em preconceitos.
Mas afinal, quem é que já demonstrou que as escolas privadas são em Portugal melhores do que as públicas? Ninguém.
Há por aí uns rankings anuais que comparam o incomparável e por uns cálculos mirabolantes colocam dois ou três colégios privados em lugares de todo. De resto a par de escolas públicas. Depois ninguém vai ver que posição ocupam os restantes colégios e ninguém vai medir se em média têm melhores indicadores. E tira-se como conclusão um lugar-comum indemonstrado.
Outro pressuposto não demonstrado é que as universidades públicas estão cheias de alunos do ensino privado e as universidades privadas cheias de alunos do ensino público. Até ver os números, acho completamente improvável em Portugal. Até porque a totalidade dos alunos de colégios privados não conseguiam alimentar nem um terço das universidades públicas.
A escola pública não entrou em falência. Isso é falso. Dela saem brilhantes alunos com médias de 19 e 20 valores. Mas também há muito insucesso e concordo que a burocracia intervencionista do Estado atrapalha em muito (e cada vez mais) o papel da escola. Mas isso não se resolve acabando com a escola pública, porque o Estado intervém também no privado. Isso resolve-se com mais liberdade para as escolas, tanto públicas como privadas.
E para cortar a argumentação, não é por ódio à iniciativa privada. E acrescento que conheço de experiência profissional tanto o público como o privado, porque já dei aulas em ambos os sistemas.
Caro Tiago, obrigado pelas objecções. Eis as minhas respostas:
1. O controlo ideológico do ensino por parte do estado acontece porque a) tanto os políticos como os burocratas gostam de deixar a “sua marca” e b) trata-se de pessoas que não distinguem o rabo das calças, ou seja, não conseguem ver a diferença entre um ensino isento da história e um ensino instrumentalizado da história — em parte porque acreditam, como o Jorge que todo o ensino é inevitavelmente ideológico. Portanto, toca de enfiar na cabeça dos estudantes as nossas ideias preferidas, desde tolices ecológicas até palermices sobre a cidadania. Além disso, o controlo estatal exerce-se também ao escolher leccionar determinadas matérias em vez de outras: alguém decide que precisamos de mais contabilistas e menos dentistas, e pronto, mete-se certas áreas de estudos na escola e tira-se outras. Isto é mau mesmo que as pessoas que controlam as coisas não estejam de má-fé, mas porque não podem evidentemente ser perfeitas. Porque não podem ser perfeitas cometem erros. E é porque os seres humanos cometem erros que é bom descentralizar sempre que possível as decisões, pondo várias decisões em campo, várias “experiências de vida”, como lhe chama Mill, para vermos pela experiência quais resultam melhor. Por exemplo, se tivéssemos liberdade no ensino a sociedade poderia ver que projectos pedagógicos e científicos resultam melhor: quais são as escolas que melhor preparam os alunos para diferentes tipos de coisas. Assim, nada se pode ver, porque todas as escolas têm de seguir mais ou menos a mesma cartilha. E espanta-me que as pessoas tenham tanto medo que uns alunos aprendam matemática de uma maneira e outros de outra, e que uns aprendam uns conteúdos de matemática e outros outros. Porquê ter medo desta diversidade? Talvez mais pessoas devessem ler mais atentamente o livro Sobre a Liberdade, de Mill, para compreenderem os fundamentos epistémicos da descentralização das decisões e da liberdade de expressão e de opinião.
2. Não, Tiago. Se você tiver uma só ideologia a ser transmitida, isso é mau. Muito mau. Se tiver várias, elas como que se anulam entre si. Nenhuma delas poderá ter predominância. E o estado serve para isso: para garantir que nenhuma delas terá predominância, legislando quer sobre a necessária independência dos professores face aos donos das escolas, quer sobre a impossibilidade de constituição de grandes grupos tendencialmente monopolistas (como hoje acontece com a informação). Espero ter-me explicado; se você tiver uma pessoa apenas a falar num só canal de televisão defendendo que Deus existe, isso é mau. Mas se tiver várias outras a falar em vários outros canais, ou no mesmo, defendendo que Deus não existe, isso é bom. E eu, sendo ateu, não defendo de modo algum que o estado vá para as escolas infiltrar o ateísmo na cabeça dos alunos. O que quero é que os alunos sejam expostos à diversidade de opiniões, e expostos da maneira mais imparcial possível a todas elas.
3. Eu admito que o estado, em alguns países, possa constituir-se como garante da imparcialidade do ensino. Mas isso nunca aconteceu em Portugal e não estou a ver maneira de isso acontecer. Mas não sou contra esse modelo: se for bem efectivado, não tenho qualquer problema. Contudo, em Portugal isso parece-me uma miragem. Leia as leis que regulam o ensino secundário, incluindo os programas das disciplinas, e verá: o espaço dedicado à formatação das mentalidades do aluno é muito maior do que o espaço dedicado a explicar como se obtém excelência educativa, ou que matérias se leccionam e porquê.
«Não conseguem ver a diferença entre um ensino isento da história e um ensino instrumentalizado da história — em parte porque acreditam, como o Jorge que todo o ensino é inevitavelmente ideológico»
Caro Desidério, só a decisão de ensinar história depende de uma concepção ideológica que valoriza o ensino da história. O mesmo se passa com a matemática, a física, etc. Isto é um nível de ideologia inultrapassável. Quando se escolhe escolhe-se segundo certas razões.
O Desidério coloca-se num grau zero de ideologia. Mas esse sítio não existe. Outra coisa é ensinar história distorcendo o que a investigação nos diz, para acomodar a narrativa a uma ideologia particular.
Não distinguir estes dois níveis ideológicos é fazer batota e acusar os outros de não perceberem sabe-se lá o quê.
A sua escola livre do braço do Estado não teria ideologia? Claro que teria, a ideologia da emancipação do Estado, entre outras.
É muito mais perigoso não reconhecer a presença da ideologia, como você o faz, do qe assmir que ela está presente e é preciso vigiá-la.
Agora vou dormir, boa a noite a quem estiver por aí.
Jorge, brevemente:
1. É falso. Comunidades de seres humanos já existiam há milhares de anos quando se formaram os primeiros estados. Veja as pinturas rupestres e pergunte-se como era possível fazer aquilo sem estado. Mas não era possível fazer aquilo sem outras pessoas porque a racionalidade é gregária, se quiser exprimir-se deste modo colorido.
2. Concordo que quando as comunidades humanas atingem uma certa complexidade, precisamos do estado. Mas daí a dar ao estado a mística que você lhe dá vai uma grande distância. O poder do estado deve ser cuidadosamente vigiado, tal como o poder dos governantes, dos juízes e dos polícias.
3. Nos fins do ensino podemos encontrar-nos, mas não na razão de ser das opções que apresenta e com as quais concordo. Para você, a literatura, a matemática, a física ou a história só são transmitidas aos seres humanos para que estes possam identificar-se com o estado. E isto é intolerável para mim. Considero que é um direito de todo o ser humano a conhecer os produtos cognitivos de outros seres humanos, só porque isso e intrinsecamente importante e de valor, e não por contribuir para não sei que propósitos superlativos do estado. Pondo as coisas em pratos limpos: estou-me nas tintas para o estado, mas interessa-me a física. O estado é apenas meio e não fim. É um meio para muitas coisas, e entre elas poderá ser um meio para assegurar ensino de qualidade (mas não assegura). Mas o estado jamais será um fim. Não tenho essa adoração pelo estado, que me parece pura confusão. Talvez Aristóteles tivesse a mesma adoração pelo estado, não sei bem; tinha-a, como outros intelectuais gregos, pela vida pública. Mas as duas coisas não coincidem exactamente. Mas o Jorge deve conhecer melhor o pensamento político do velho Aristóteles do que eu, que quase nada sei.
4. A questão é mesmo esta: tornar o estado mais razoável. E penso que um empecilho para isso é a sua deificação do estado. Se encarar o estado como um mero meio para obter os fins que queremos — uma vida boa — deixará de ver como problemático o estado abrir mão da lavagem ao cérebro das crianças porque deixará de sentir que o estado tem de mentir para se auto-sustentar. Um estado razoável não pode ter medo de cidadãos críticos, nem de experiências de vida diversificadas. Entre essas experiências de vida diversificadas, talvez uma das mais importantes, é a diversificação das experiências de ensino (dentro de padrões de rigor científico e isenção que podem ser estabelecidos publicamente).
Olá, Pedro, obrigado pela paciência, mas não se safa. Leva mais uma saraivada de falácias. Gosto particularmente de usar falácias depois do jantar, para ajudar a digestão.
Começando pelo meio: o que é possível em países com largas tradições de liberdade não é possível em países com largas tradições de falta dela. O paraíso finlandês, se for genuíno, nunca será possível em Portugal porque ou o centralismo finlandês é sábio — e em Portugal basta ler qualquer documento do ministério da educação para ficar com os cabelos em pé de tanta ignorância — ou na Finlândia há imensa autonomia como no reino unido — e em Portugal nunca os políticos vão abrir mão do controlo das escolas. É por isso que me parece que o ensino público de qualidade em Portugal é uma contradição nos termos. Mas, repito: se me mostrar que na prática é possível efectivar isso em Portugal, eu aceito, homem. Desde que o ensino seja de excelência, e não seja de excelência apenas para os ricos, eu aceito. Apenas acho que pessoas como o Pedro, bem- intencionadas, andam há mais de 30 anos a tentar fazer isso em Portugal e não conseguem. É tempo de tentar outras saídas.
Para você todo o ensino é ideológico, mas depois há ideologias boas e más. Bom, explique-me com que critérios se sabe que uma ideologia é boa e outra má. Eu sei que muitos autores defendem que todo o ensino é ideológico; na verdade, defendem que tudo é ideológico. Acontece apenas que eu não aceito acriticamente o que dizem os autores que afirmam essas coisas. Desculpe lá o mau jeito. De qualquer maneira, Pedro, isso é irrelevante. Porque se você aceita que há “ideologias boas”, então o que eu quero é um ensino com “ideologias boas”. Agora mostre-me como garante que só essas ideologias estão presentes nos documentos do ministério da educação e eu mostro-lhe imediatamente que isso é falso. Nos documentos do ministério está toda a tolice, lugar-comum dos bem-pensantes das classes altas que fazem esses documentos e põem neles as coisas mais desconexas do mundo. Legitimidade política? Quem deu legitimidade para acabar praticamente com o ensino da literatura? Quem deu para acabar com o ensino da geografia? Quem deu para aniquilar quase todos os conteúdos cognitivos centrais da humanidade, substituindo-os por inanidade que nem os professores sabem o que são? Você votou para isso, pôde manifestar-se? Pôde impedir tal coisa? Não.
Finalmente, tenho eu alguma legitimidade profissional para falar nestas coisas? Não. Tem o Pedro? Não faço ideia e estou-me nas tintas. O que conta é que os seus argumentos não funcionam e a sua visão é beatífica, mas fantasiosa. Tenho muitos anos de experiência na tentativa de melhorar o ensino no meu país. Sabe qual é o maior obstáculo que eu sempre encontro, tal como muitos outros profissionais de filosofia que procuram fazer o seu melhor? O ministério da educação. Você pode argumentar que é apenas este que é mau, mas há 30 anos que é mau. Tem esperança de ver melhores cabeças no ministério? Já tivemos boas cabeças lá, mas eles não conseguem controlar a própria máquina ministerial imensa, que faz o que quer, mesmo contra a vontade dos ministros. É com estes gatos que você ter de ir à caça, e eu desconfio que com eles não dá para caçar, Pedro. Assim, quando eu digo que as maravilhas do ensino público não são possíveis é porque estou a pensar no meu país e não na Finlândia. Na Inglaterra eu também podia comprar uns sapatos e chegar a casa mudar de ideias, ia à loja e pedia o dinheiro de volta e eles davam-me sem perguntar porquê. Em Portugal, entro na FNAC ou em qualquer outra loja, com um saco, e sou logo tratado como criminoso, fecham-me o saco e se eu protestar olham-me como se fosse marciano. Coisas que funcionam numas sociedades, como o civismo e o respeito pelas pessoas, podem não funcionar noutras. Sistemas de ensino que funcionam numas sociedades podem não funcionar noutras.
Normalmente, a eficácia da psicofoda depende de não ser percepcionada como psicofoda. No caso da ideia segundo a qual tudo é ideológico a arte é levada ao grau de requinte acima: ao afirmar que todo o conteúdo cognitivo é psicofoda (ideologia) procura-se garantir que o teor ideológico da ideia segundo a qual tudo é ideologia não seja percepcionado como tal. É o pico da autodelusão.
O que é curioso é que este tipo de ideias nem sequer é uma coisa original dos pós-modernos, foram desenterrá-la aos muito anteriores breviários do marxismo-leninismo, de G. Politzer a O. Kuusinen (o finlandês que foi mentor de Iuri Andropov) e outros sacerdotes do hegelianismo soviético. Os pós-modernos limitaram-se a verter esta curiosa mistura de dogmatismo e relativismo em qualquer coisa de mais "chique" e digerível, digamos, num chá social para intelectuais progressistas.
Escusado será lembrar que foi este tipo de abortos da inteligência que deu lugar a ideias peregrinas como a "biologia socialista" de T. Lysenko - baseada na incompreensão dogmática que a esquerda ainda hoje tem da genética e do darwinismo e que consiste basicamente em aceitar a leitura que a sociobiologia fez de Darwin), um produto da ideia infeliz segundo a qual a ciência é apenas uma "ideologia". (portanto, vamos lá construir a ciência da "nossa" ideologia, para opor à ciência "dos outros"). Os resultados desastrosos deste tipo de impensamento aparentemente não bastam para as pessoas largarem este tipo de palermices que se repete acriticamente ao longo dos anos, sem se levar a sério os contra-argumentos às mesmas.
A ideia de que tudo é ideologia corresponde à ideia de que é impossível ser-se imparcial. Esta ideia faz eco da mesma bibliografia dogmática a que fiz referência e pode-se confirmar no facto de todas as vulgatas do marxismo-leninismo intituladas "fundamentos de filosofia" (Rakitov) ou "histórias da filosofia" (Oizermann), tão desesperada e mecanicamente iguais em prosa e retórica, conterem sempre um subcapítulo intitulado "espírito de partido em filosofia", no qual se expunha a infame doutrina de que "tudo é ideológico". Claro que qualquer pessoa lúcida percebe que este tipo de coisas eram uma resposta às necessidades e conveniências políticas, a necessidade de inculcar uma certa imagem do mundo como "natural". Há aqui um sentido em que todos os partidos, da direita à esquerda, são leninistas - o mesmo sentido em que Hobbes não é de direita nem de esquerda, está onde quer que esteja a teoria do estado. De um modo similar, Lenine está onde está a teoria do partido moderno: a ideia de uma máquina de guerra para conquistar o poder. Indícios desta ideia são o vocabulário militarizado dos partidos políticos: há "militantes", "vitórias", "derrotas", "campanhas", defender certas ideias (por exemplo, que nem tudo é ideologia) é "mau" não por ser falso mas porque isso é "ceder terreno ideológico" ao "inimigo", etc, etc, etc, etc. Todos estes disparates se perpetuam através das tretas pós-modernas acerca da ideologia, embora com um sotaque e um léxico mais aburguesados e anódinos, assim uma coisa mais "sem órgãos" ou mais "devir-animal".
Se todas estas teorias acríticas, dogmáticas e descerebralizantes tivessem um pingo de verdade, então seria impossível que uma possoa tivesse a capacidade cognitiva de defender uma posição, por exemplo o ateísmo, e a capacidade de discernir entre bons argumentos a favor do ateísmo e maus argumentos a favor do ateísmo. Se estas psicofodas fossem verdade, a mente do ateu seria incapaz de discernir este tipo de coisas e tudo aquilo que vagamente lhe parecesse ir ao encontro da posição na qual ele está interessado - deus nao existe - seria automaticamente "bom" por mais merdoso que fosse enquanto argumento. Isto não é verdade, contudo.
Se temos a capacidade cognitiva de discernir um bom argumento de um mau argumento, então podemos ser imparciais mesmo quando estamos interessados pessoalmente numa conclusão. Só numa cultura onde se cultiva o desprezo pela argumentação / contra-argumentação como único modo de elaborar e justificar ideias pode deixar-se encantar por semelhantes psicofodas. Este tipo de coisa é compatível com o ensino filosófico que temos nas nossas universidades, onde o importante não é a justificação argumentativa da crença mas apenas a genealogia da crença, o seu lugar numa "tradição" de crenças, a sua relação com as autoridades comentadoras e outras parvoíces infilosóficas.
(um marxista da nossa praça chamou a estas "manias" analíticas "meras logomaquias", dando a entender talvez que o mais importante não é a justificação das crenças mas sim os conteúdos acriticamente aceites antes da argumentação e que supostamente definem o nosso "lugar" nas "trincheiras")
Vitor Guerreiro
Desidério diz "Mas é relevante haver escolas privadas melhores do que as públicas," e então quando há melhores escolas públicas que privadas? Deixa de ser relevante?
Em Portugal isso acontece... Mais, nos países Nórdicos isso acontece de uma formal geral... É preciso uma criatividade, certo... Então porque não olhar para o sistema de ensino dos países do Norte, que é público e apresenta as melhores taxas de sucesso do mundo?
Falou em liberdade... Então que liberdade existe quando um aluno só pode frequentar uma escola de qualidade se tiver poder economico para o fazer? Quem não tem, vai pedir a um banco e pagar um empréstimo.... Desculpe que lhe diga, mas o seu conceito de liberdade é muito diferente do meu...
A autonomia que escolas e universidades também eu a defendo, agora demonstra-se que não é preciso ser "privado" (pelo menos ao ´nivel de financiamento) para ela existir. Quer ser criativo? Então proponho-lhe que estude os sistemas universitários da Finlândia e Suécia. Dois sistemas públicos, sem propinas e que funcionam... Em Portugal não poderia ser assim?
Caro Desidério,
1. Não atribuo qualquer mística ao Estado, nem o deifico. É o Desidério que a atribui em meu nome. Olho para a coisa e tento compreendê-la, pensar como opera, quais os fins que persegue, etc. Sobre as limitações do Estado já disse o suficiente anteriormente.
2. «Considero que é um direito de todo o ser humano a conhecer os produtos cognitivos de outros seres humanos, só porque isso e intrinsecamente importante e de valor, e não por contribuir para não sei que propósitos superlativos do estado». Comovente. Mas quem lhe outorga esse direito? Mais uma vez não há nos seus argumentos uma tentativa séria de perceber o que o outro está a dizer: não sei se vale a pena explicar de novo o que é o Estado (comunidade organizada para tomar decisões que assegurem a sua existência e continuidade). Entre os mecanismos que a comunidade se dota há uns que são políticos, outros judiciais, outros que usam a força (visam a segurança) e há uns outros que visam o consenso mínimo que permite a comunidade entender-se na sua existência. São este que produzem, no seu entender a psicofoda. Ok. São esses mesmos. Porque no lugar da psicofoda, o que tem que assegura a persistência da comunidade? A violência legítima e a ilegítima. Sempre que se analisa o angelismo anti-estatal descobre-se sempre a violência por detrás do anjo. É um anjo com uma espada de fogo.
3. «O estado é apenas meio e não fim.» Claro. É o meio que permite a comunidade persistir na existência e que os indivíduos que a compõem possam também existir com certa segurança na sua vida privada e pública. Quando se fala de instrução pública é da mesma coisa que se fala. Se você quiser ser físico é um problema seu. Mas terá de seguir o percurso institucionalmente determinado. Não pensa por certo que chega ao pé do Carlos Fiolhais e lhe pede para ele o transformar num físico? Ele até pode dar uns conselhos privados, ensiná-lo, dar-lhe bibliografia. Mas no dia que você quiser ir brincar para o acelerador de partículas lá está o maldito leviatã a impedir a sua bela vocação. Eu percebo aquilo que quer. Por isso distingo os níveis da instrução. Até determinado momento ela é determinada pela comunidade (tal e qual os seus pais determinaram as regras da sua educação pessoal) para dotar os seus membros futuros de uma linguagem comum, para evitar a babelização da comunidade. A partir de determinada altura você segue o que entender e até pode abandonar a comunidade ou propor alterações ao seu funcionamento.
4. Sobre a questão da ideologia e de um comentário feito, deixando de lado o foguetório sobre o pós-moderno e o marxismo e outras coisas do género, só a seguinte nota: qual o lugar em que me posso colocar para estar fora da acusação da ideologia? Quando me decido por enveredar pela argumentação sobre um determinado assunto, não está pressuposto previamente uma tomada de posição sobre como devo tratar esse assunto? Há uma convicção de que argumentação é um caminho melhor do que outro, por exemplo o recurso à autoridade ou à revelação. Esta convicção não está inscrita na natureza das coisas. Ela é uma convenção que uma longa tradição veio legitimar ao mostrar a sua eficácia e a sua civilidade. Isto faz parte da esfera ideológica. Também o exemplo do Lyssenko não colhe. A ciência organiza-se segundo um conjunto de processos e regras racionais e experimentais. O problema ideológico da ciência não se encontra no processo de conhecimento dos objectos de que ela trata. A ideologia encontra-se a montante na convicção de que a ciência é um caminho mais válido para conhecer a realidade do que, por exemplo, a magia ou a revelação bíblica. Sobre essa decisão prévia do que é o melhor eu não consigo perceber como a posso retirar da esfera ideológica. Eu tomo partido pela ciência e tomo partido pela argumentação de que ela é mais pertinente do que a magia. Mesmo argumentado, esse tomar partido nunca deixa de ser a expressão de uma convicção justificada. Mas quem sabe um pouco de retórica, sabe também que essa convicção é mais ou menos verosímil. Se a argumentação produzisse proposições evidentes, o entendimento universal estava concluído. Mas, lamentavelmente, os homens tendem a discordar sobre todos os assuntos, até sobre aqueles que nos parecem evidentes. Este blogue tem dado um exemplo notável de compreender isto: toda a crítica feita ao criacionismo é um exemplo de que o darwinismo não é evidente por si mesmo e que é preciso argumentar a seu favor, i. é, tomar partido por ele. Este esforço é ideológico, gostemos ou não. Por outro lado, a imparcialidade é uma ideia limite da qual eu me aproximo mais ou menos, mas devido a não ser Deus estou submetido à minha condição meramente humana que não me permite ter mais do que um mero ponto de vista ou uma perspectiva melhor ou pior argumentados. Só isto. Eu não partilho com outras pessoas a condição divina que me assegure de que a minha imparcialidade é completamente imparcial, lamentavelmente.
5. Isto já vai muito longo. Um abraço par todos os que têm pensado sobre a escola pública, mesmo que seja para dizer que ela se deve privatizar.
O texto apesar de "conceptualmente" válido tem lacunas para a sua implementação...
1- Fala que o ensino privado pode não visar principalmente o lucro. A experiência da lógica de mercado diz-nos que isto é falso. Qualquer "negócio" visa o lucro, quer seja através da distribuição de dividendos quer seja através de salários.
Se assim fosse, o actual ensino privado em Portugal seria "excelente" mas não o é. O superior privado criou cursos "baratos" a garnel, maximizar o lucro, minimizar o prejuizo. O ensino não superior privado ou atribui notas cosoante o valor da propina ou promove a educação da "cunha" e não do mérito.
Seria interessante fazer um estudo sobre o percurso dos ex-alunos de alguns colégios portugueses...
2- Diz que poderia existir uma sistema de bolsas para os "mais carenciados". Basta observar como decorrem os concursos a professores ou a bolsas doutoramento, para perceber que este tipo de concursos nacionais falham redondamente, na sua organização e no seu critério.
"Defender a escola pública, hoje, é defender ensino mau para os pobres e bom para os ricos. É defender o controlo das mentalidades por parte do estado, que decide o que se ensina e como se ensina e a quem se ensina."
Desiderio, como assim? As escolas publicas na Finlandia, na Alemanha, em Franca funcionam bem. So' para dar alguns exemplos.
A questao relevante nao e' a dicotomia publico/privado. O que e' importante e' discutir quais sao os parametros dentro dos quais se considera que uma dada escola e' boa. E como se pode la' chegar.
Um modelo plural em que coexistam escolas publicas com privadas e' preferivel.
Ate' porque a escola nao se reduz a um local onde se adquire um conjunto de conhecimentos. Tambem e' um local de socializacao e, caso acabemos com as escolas publicas, e assumindo o melhor cenario (algo irrealista) que dai' resultariam escolas de elite 'a la Harvard, o resultado seria uma fortissima estratificacao social. Os francamente ricos (com uma franja numericamente desprezavel de alunos muito talentosos, muito acima da media, de camadas de camadas desfavorecidas) iriam ocupar os lugares todos dessas escolas de elite. Basta ir aos EUA, passear pelas cidades, e de seguida ir a Princeton, ou a Cambridge Ma., comparar e salta 'a vista a estratificacao social. Nem sao precisos indicadores estatisticos. E' evidente. Nas cidades: gordas, baixas, disformes, de todas as cores; em Princeton: louras, tez clara e bem tratada, esbeltas, frescas .... E' alias um passeio agradavel do ponto de vista estetico! ;)
So' faz bem aos mais ricos e mais cultos conviverem com os menos desfavorecidos, e vice-versa. Os mais ricos ganham empatia e uma valiosa experiencia; os mais pobres teem a oportunidade de alargar os horizontes. Todos teem um pouco a ensinar e a aprender uns com os outros.
Se tivermos uma caracterização tão liberal de "ideologia" que para se ter ideologia basta pensar qualquer coisa, ter um conteúdo mental ou manifestar uma atitude qualquer, então realmente tudo é ideológico, mas isto acaba por saturar o conceito e não dizer coisa alguma. Tenho de compreender a ideologia contra o pano de fundo do que não é ideológico. A relevência do caso Lysenko está em depender de uma cultura política para a qual tudo é ideológico. As pessoas que fizeram esta cultura não pensavam que a ideologia estivesse apenas a montante, estavam convencidas de coisas perfeitamente estúpidas como esta: qualquer afirmação que eu faça acerca de um problema metafísico releva da minha "consciência de classe". Para esta malta, uma teoria acerca de por que vemos a cor verde ou a preferência pelo nominalismo reflectia os nossos interesses sociais e económicos. É de loucos.
Mas vamos considerar que a ideologia está "a montante": o que quer isto realmente dizer? Que a opção pela ciência é ideológica? Mas não é. Onde fomos buscar a convicção de que a ciência é um meio melhor para obter conhecimento sobre o mundo? Ao facto de ela sistematicamente produzir conhecimento sobre o mundo, ao passo que as magias e os misticismos andam a repetir as mesmas ladaínhas há milénios. Será que o conceito de "verdade" também é ideológico? Mas isto impedia-nos sequer de pensar e de comunicar coerentemente. Toda a afirmação é uma pretensão de verdade, mesmo a afirmação segundo a qual a verdade é ideológica. Mas isto significaria apenas que essa posição é tão ideológica como outra coisa qualquer e vale o mesmo que a sua contrária.
A simples capacidade que temos de destrinçar entre um argumento forte e um argumento fraco, ambos sustentando uma tese na qual estamos interessados por algum motivo, é suficiente para mostrar que nem tudo é ideológico. Se isto fosse verdade, seríamos incapazes desse estado cognitivo. Tudo o que parecesse afirmar aquilo de que gostamos seria imediatamente sentido como "bom". Isto é falso. Eu posso ser ateu e no entanto ser capaz de reconhecer argumentos fracos a favor do ateísmo. O que me faz concordar com o modo de escrutinar a verdade ou a falsidade das proposições (ciência) e a consistência e solidez dos argumentos (filosofia) não é uma vontade ou capricho, mas o próprio mundo. É o mundo que torna as proposições verdadeiras e os raciocínios consistentes.
Abraço
E o argumento da tradicao, Desiderio, nao e' ele proprio falacioso?
Onde e' que existia uma tradicao de 'research universities' de excelencia nos EUA finda a II Guerra? Mas construiram-na com sucesso e para cada caso privado de excelencia eu aponto-lhe um publico: Berkeley, Maryland, NYU, Wisconsin, UCLA, Sta. Barbara, ...
Miguel: Concordo consigo... Especialmente quando diz: "So' faz bem aos mais ricos e mais cultos conviverem com os menos desfavorecidos, e vice-versa. Os mais ricos ganham empatia e uma valiosa experiencia; os mais pobres teem a oportunidade de alargar os horizontes. Todos teem um pouco a ensinar e a aprender uns com os outros."
Esta talvez seja a grande lição de um sistema de ensino público. É que existem "ricos" e "pobres" e não apenas "ricos" ou apenas "pobres".
"So' faz bem aos mais ricos e mais cultos conviverem com os menos desfavorecidos"
ERRATA: e' claro que nesta frase dever-se-a' ler "com os mais desfavorecidos" ou "com os menos favorecidos".
Gostaria de felicitar todos os intervenientes pela qualidade deste contraditório. Dá vontade que não acabe.
Proponho um exemplo que poderia ser um teste a alguns argumentos apresentados - em particular a derivação público/privado na relação com a qualidade do que se ensina.
O contexto é o do programa Novas Oportunidades, implementado nas escolas públicas (sejam CNO´s ou Efa´s em regime RVC) e centros privados de RVCC. No primeiro caso, os formandos obtêm certificações de equivalência (9º ou 12º ano) em sensivelmente 18 meses. No segundo caso, é possível fazê-lo em 4 meses.
Eu avanço uma hipótese explicativa. É que no caso da escola pública, apesar de existir a pressão para "captar" formandos, eles estarão no sistema durante aquele período (18m.), por força das exigências legais e contratuais que as escolas têm com os formadores/professores. Não é a melhor razão, é certo.
Já no caso dos centros privados, essas exigências não existem e quantas mais inscrições melhor. Pelo que quantos mais Certificações melhor. Se fazem verdadeiramente alguma coisa nesse período, isso não interessa e a qualidade...
A diferença público/privado, aqui exposta, serve à discussão?
Que vos parece?
Saudações,
Luís Vilela.
Luis,o exemplo que apresenta é um excelente exemplo do que pode ser uma "mau ensino privado" em função do "lucro". Alguns poderão dizer, "bem isso algumas isso acontecerá, noutras não". No entanto, não posso deixar de colocar a questão: será que uma sociedade pode correr o risco de ter um "mau ensino" em função do "lucro"? Esta para mim é que a questão fundamental do ensino (e da saúde) privadas. Deverão e/ou poderão estes dois pilares de uma sociedade estar à mercê do "capital"? Do "lucro"? Não interessa que um aluno aprenda ou que um doente se cure mas sim que dê "lucro"....
Ola a todos,
Este debate ja vai longo e também eu aprecio a qualidade da argumentação de muitos comentadores. No entanto, não sendo nem professor, nem técnico de educação, nem especialista, nem nada que o pareça, não deixo de ficar espantado com a capacidade que temos para discutir de forma abstrata, no ar, sem procurar perceber as questões praticas envolvidas.
Ninguém combate eficazmente a burocracia recusando ver que existem questões praticas que devem ser resolvidas pela administração e reduzindo tudo a uma polémica de café.
O Desidério resolveu defender, em nome da diversidade e da qualidade do ensino, que deveriamos admitir o ensino privado. Mas isto não é ja o caso ? Não existem estabelecimentos de ensino privado em Portugal ? Como disse no meu primeiro comentario, a investida contra o monopolio publico da educação é uma investida contra moinhos. Não existe em Portugal (nem em França, e presumo que também que não exista nos paises nordicos) monopolio publico da educação. Mais, mesmo em França (pais que é suposto ser o baluarte do ensino publico), quando um governo ameaça restringir as facilidades concedidas ao ensino privado (que são enormes, lembro que em França é o Estado que paga os professores de muitos estabelecimentos de ensino privado) põe mais de um milhão de pessoas (!) na rua aos berros.
Dada a situação acima, o que é que o Desidério pretende na pratica ? Que deixe de haver estabelecimentos publicos ? Ele acha mesmo que se fosse o caso, haveria um acesso facilitado à educação, especialmente para os mais pobres ? So se estiver a brincar...
Então o que é que ele pretende na pratica ? Que algumas verbas publicas sejam dadas aos estabelecimentos privados (como é o caso em França no dominio da lei de 1959)? Mas então sempre seria necessario estabelecer critérios, condições, etc. E esses critérios teriam de ser definidos e controlados pela administração ! A menos que o Desidério defenda que deveriamos subsidiar estabelecimentos desde que eles se autoproclamem "de ensino" sem que ninguém controle a qualidade dos professores, dos programas, etc.
Portanto o argumento que diz que o ensino publico é mau porque é controlado pelo Estado não faz sentido nenhum...
Ha depois uma defesa da liberdade de ensino e uma apologia da autonomia dos estabelecimentos de ensino. Ora, mais uma vez, estamos a reinventar a polvora. A liberdade de ensino existe, tem consagração juridica, mesmo no ensino publico. Não é suficiente, pode ser melhorada, ou traduzir-se por medidas mais efectivas ? Sem duvida, somos todos a favor. Mas como ? Que medidas concretas é que o Desidério propõe ? Isto é que merecia ser debatido, não o principio abstrato, com que estamos todos de acordo.
Ora, nessa perspectiva, penso que é irresponsavel defender-se que essa autonomia so pode ser plenamente alcançada em escolas privadas. Isto é esquecer que as escolas privadas não têm exactamente os mesmos imperativos e que, se os tivessem, provavelmente não fariam melhor (ou pelo menos não temos nenhuma forma de medir o que fariam, na verdade trata-se de uma questão teologica). Quando falamos de autonomia, o que é que entendemos : os concursos publicos para o ensino devem ser abandonados em beneficio de contratação local, sem critérios nacionais ? O custo dos edificios da educação deve ser suportado pelos pais ? ou pelos contribuintes regionais, locais ? Os salarios dos professores devem ser deixados à livre negociação ? Não sou "em principio" contra nenhuma dessas medidas, mas desconfio sempre das pessoas que se batem pela "autonomia" e que não querem ver que a autonomia não é um remédio milagroso, mas antes uma politica com consequências praticas... nomeadamente do ponto de vista da distibuição dos recursos dedicados à educação. E não me digam que a iniciativa privada tem soluções para todos os problemas. A iniciativa privada tem soluções para as pessoas que têm meios (ou, no caso da Igreja, para as pessoas que têm vocação). Nada mais. Se fôr necessario a iniciativa privada ter soluções também para os outros, então a iniciativa privada vai pedir mais meios, e vai pedi-los ao Estado...
Para perceber melhor o problema, de facto ha que ir ver o que se passa na realidade. Eu conheço (relativamente) bem o caso da França. Ora, contrariamente ao que muitos supõem (é esse o problema da conversa de café, de repente estamos a raciocinar no ar, como se nos Estados Unidos não houvesse escolas publicas, como se não houvesse escolas privadas na Escandinavia, como se a realidade fosse uma simples luta do bem contra o mal, por amor de Deus, saiam do cinema !!!), a França é simultaneamente um pais que se orgulha muito do seu sistema de ensino publico (embora tenha falhas evidentes, também elas reconhecidas) e um pais onde o ensino privado tem um grande peso, com muitas escolas religiosas (outra caricatura : privado = empresa que visa o lucro, nada mais falso no dominio da educação, onde o ensino esta muitas vezes nas mãos das Igrejas, pessoas privadas que não procuram o lucro, pelo menos em principio). E com que resultados ? Maus em geral, sem que haja uma grande diferença entre estabelecimentos publicos e estabelecimentos privados. Ou seja, de entre os estabelecimentos privados alguns são excelentes, com resultados perfeitamente extraordinarios, mas a grande maioria nem por isso, situa-se na média (que de resto tem tido maus resultados nas comparações internacionais). Passa-se rigorosamente a mesma coisa com os estabelecimentos publicos...
Portanto a discussão da alternativa entre publico e privado não me parece ser o essencial no dominio da educação.
O que é essencial, é procurarmos melhorar a qualidade. Mas eu pergunto, a maior falha do nosso ensino não esta precisamente à vista numa discussão em que o que conta é bater nos "tecnocratas" e nos "governantes", como se o nosso dever não fosse compreender os problemas antes de criticar a forma como têm sido resolvidos. E se o Desidério tem remédios para la chegar, porque não os põe directamente à discussão, em vez de armar uma discussão teologica sobre a escolha entre publico e privado ? Sabe, os tecnocratas vão buscar as suas ideias aos jornais, aos blogues, etc. Assim é que se mudam as coisas, com serieddade e com responsabilidade.
Um abraço a todos.
Lá está, o problema aqui é que a família, muitas vezes não valoriza a escola. Como é que quer, que um aluno que não quer saber da escola, queira saber da aprendizagem ?
Rui.
Caro Vítor,
1. «Toda a afirmação é uma pretensão de verdade, mesmo a afirmação segundo a qual a verdade é ideológica. Mas isto significaria apenas que essa posição é tão ideológica como outra coisa qualquer e vale o mesmo que a sua contrária.» Numa coisa tem razão: no paradoxo de Mannheim: a afirmação de que tudo é ideologia acaba por cair sobre a própria afirmação. Há tentativas de sair do paradoxo. Penso que Geertz e Ricoeur tentam-no pela análise dos processos de simbolização. Mas eu, confesso, duvido da possibilidade de saída do paradoxo. Este tipo de paradoxos mostram-nos os limites da discursividade e da capacidade representacional da espécie humana (como o paradoxo do relativismo). Por isso, também o conceito de verdade é ideológico. Não há um conceito de verdade, mas vários e todos eles argumentáveis e gerando dissensão entre pessoas razoáveis e de boa-fé.
2. Mesmo no caso da ciência há um limite. Poderemos dizer que as proposições validadas são verdadeiras. A lei da gravidade é verdadeira pois descreve adequadamente o comportamento dos corpos. Aqui o limite foi assinalado por Kant na distinção entre fenómeno e coisa-em-si. Por muito que a posteridade tenha disparado conta a coisa-em-si kantiana ela é um espinho cravado nas nossas pretensões ao conhecimento da realidade tal como ela é em si e à exposição da sua verdade. Estamos encerrados num mundo de fenómenos. É a descoberta kantiana o que mais me modera no optimismo cognitivo. Cá para mim, o Kant foi um sacana da pior espécie. Lançou uma suspeita e depois teve o atrevimento de morrer deixando a suspeita a pairar no ar. Como sabe, há uma longa história de ataque à suspeita, desde as ultrapassagens dialécticas de Hegel e do par Marx/Engels à acusação furibunda de niilismo de Nietzsche passando pela má-fe, isto é, fingindo que Kant não disse nada. Mas ela aí continua a assediar as nossas pretensões à verdade.
3. Mas isto já se desvia demasiado daquilo que nos trouxe aqui: a escola pública e a escola privada.
Caro jcm,
a) quem afirma que a verdade é ideológica nunca o afirma como quem debita mais uma ideologia para decorar o panteão das ideologias. Fá-lo como quem afirmar uma proposição acerca do mundo que no limite será verdadeira ou falsa. Mas isto é auto-refutante. Não ha paradoxo algum, apenas uma afimação auto-refutante. A falsidade da proposição "A verdade é ideológica" não implica a sua verdade. Um paradoxo é algo cuja falsidade implica a verdade e vice-versa. Não é o caso com a tese de que tudo é ideologia. A tese de que tudo é ideologia é simplesmente uma afirmação auto-refutante, que portanto é falsa, e cuja falsidade é perfeitamente inteligível sem precisar de análises simbólicas e derrapagens dialécticas.
2) as frases auto-refutantes não mostram o limite de coisa alguma a não ser a ingenuidade de quem faz sobre elas assentar uma visão das coisas. Do facto de tudo se poder argumentar não se segue que tudo o que é afirmado é verdadeiro. A propósito de qualquer afirmação, pode-se sustentá-la com toda a panóplia de bons e maus argumentos, mas em ultima instancia, o que decide da solidez desses argumentos é o modo como o mundo é. A validade formal é apenas um meio de procurar a verdade, não é garante da verdade.
3)A tese kantiana é tanto um espinho cravado na pretensao de conhecimento como outra coisa qualquer cravada noutro sítio qualquer. Esta afirmação, sem mais argumento, vale tanto como a afirmação contrária, que diz que Kant não tem espinhas, a vingança póstuma do peixe, ou seja lá o que for.
4) A dialéctica hegeliana e marxista não ultrapassou coisa alguma. A afirmação tonta de que já nao há metafísica e de que a realidade é dialéctica é ela pópria uma afirmação metafísica, logo é auto-refutante e não ilumina qualquer paradoxo nem qualquer mistério ensosso da razão.
Caro Vítor,
1. “A verdade é ideológica” não é, obviamente, auto-refutante. Se eu afirmo essa proposição, se ela for verdadeira, então é ideológica. Não estamos perante proposições como a que constitui o paradoxo do mentiroso. Não está implicada a autocontradição.
2. «A validade formal é apenas um meio de procurar a verdade, não é garante da verdade.» A validade formal é apenas uma convenção ancorada na estrutura do pensamento duma espécie particular: o homem. Exorbita-se quando se pretende estabelecer uma conexão, ainda que limitada pela necessidade de acordo com o mundo, entre a análise lógica da linguagem e a verdade.
3. «O que decide da solidez desses argumentos é o modo como o mundo é». E como é que o mundo é? Como sabe que ele é assim? Foi-lhe revelado por Deus ou o mundo é o conjunto de representações que possui? O que deveria enunciar era o seguinte: o que decide a solidez de um argumento é a sua adequação com as minhas representações. Você pode acreditar que as suas representações lhe dão a realidade. Eu duvido das minhas. Servem para me orientar na vida, mas não mais do que isso. Daí até dizer que são verdadeiras vai um passo que eu não dou. Mas como disse, Deus a mim não me revelou os seus arcanos.
4. A verdade é uma velha rameira que vende os seus serviços a quem lhe paga. Eu sou como Pilatos, lavo daí as minhas mãos e estou velho para me deixar seduzir pela marafona. Mesmo quando se diz que as proposições sobre o mundo são no limite verdadeiras ou falsas está-se a dizer mais do que se pode. Se a realidade é incognoscível, se apenas tenho acesso a representações dos fenómenos, como é que eu posso saber da verdade ou falsidade das proposições sobre o mundo? Podemos acreditar que um sistema cognitivo particular (o do homem) está desenhado para lhe dar a verdade do mundo. Eu não acredito. No máximo, dá-lhe uma certa capacidade para se adaptar ao ambiente e recolher informações e organizar um conjunto de proposições sobre esse ambiente para nele se orientar, mas essas proposições têm tanto de verdade como as que teriam a de uma amiba que fizesse proposições a partir das informações que recolhe, seriam apenas mais complexas.
5. «A tese kantiana é tanto um espinho cravado na pretensão de conhecimento como outra coisa qualquer cravada noutro sítio qualquer. Esta afirmação, sem mais argumento, vale tanto como a afirmação contrária». Parti do pressuposto de que conhecia a distinção kantiana entre fenómeno e coisa-em-si e a respectiva argumentação, e que percebia de imediato a argumentação implícita no contexto onde falei de Kant.
6. O problema é que partimos de pontos de vista diferentes, nomeadamente sobre a potência das nossas faculdades, e entre elas a da razão.
caro jmc:
1) do simples facto de kant distinguir "fenómeno" de "coisa em si" nao se segue que a metafísica de kant seja um espinho cravado no pé de metafísica alguma. Voce toca na mouche ao falar em "pressupor" estrutura argumentativa de outro filósofo. Kant inscreve-se numa tradiçao onde o simples facto de elaborar um argumento sofisticado é sinal suficiente de que as afirmaçoes sustentadas por esse argumento sao legítimas. O exemplo maior disto é a sua teoria do juízo estético - se a beleza é a forma da finalidade ficamos com duas coisas complicadas: elementos como o timbre e a cor nao podem fazer parte do valor estético; nao temos como distinguir entre obras de arte segundo o valor - até um cagalhao tem a "forma da finalidade" logo é tao belo como a "arte da fuga". Mas Kant provavelmente nao viu isto porque se inscreve numa tradiçao na qual a prática sistemática de opor contra-argumentos aos nossos próprios argumentos é vista como "mera logomaquia" sem interesse. Dito isto, nao estou a desfazer da importancia de Kant na filosofia moderna. Estou apenas a defender uma leitura inteligente dos autores. Por exemplo, os marxistas nao sao livres de aceitar algumas proposiçoes de Marx e rejeitar outras, com base nos argumentos que as sustentam. Estao condenados a aceitar bovinamente ou todas as proposiçoes em bloco ou nenhuma. É a bovinice da ideologia e é isso que a separa do estudo atento do mundo e dos argumentos. Na medida em que podemos nao comportar-nos desta maneira, nem tudo é ideológico.
b) como disse o meu professor de metafísica (na altura ainda chamada "ontologia I") a um aluno: e depois queimam-se as pessoas nos fogoes.
Voce pode ter esse discurso mas quando sente febre, tonturas e outro tipo de sintomas mais graves provavelmente nao vai recitar mantras nem rezar à frente do penico (se o relativismo é ontologicamente verdadeiro, qualquer uma destas podia resultar aleatoriamente de uma vez e de outra nao. Mesmo que epistemologicamente nao pudessemos saber fosse o que fosse acerca da estrutura deste mundo relativista). Voce vai direitinho ao medico e a farmácia, seguir os melhores indícios do que ciencia vai produzindo (embora com o negócio das farmácias seja provavel que pelo caminho tome muita coisa de que nao precisa além daquilo que precisa, sobretudo se for ao centro de saúde e nao ao privado.)
d) nao recomendo a posiçao de pilatos a nao ser para políticos. O lavar as maos nada tem de interesse epistemológico, é apenas um dispositivo para recolocar na verdade quem tomou uma decisao vil. A razao de estado: colhe-se os frutos de uma decisao que vai agradar a muitos, transferindo a culpa para os que lhe sao imediatamente inferiores. O velho Maquiavel documentou tudo isto.
Também Lutero disse que a verdade é a puta do diabo e St Inacio de Loyola fez afirmaçoes semelhantes. Já estamos fartos de saber que tipo de visao do mundo, da verdade e da ciencia tinham estes homens e o tipo de coisas com que eram capazes de transigir e até fomentar. Eram todos muito humildes, no fundo.
Agora pergunto-lhe eu uma coisa: Se nada sabe, como sabe que a realidade é incognoscível, foi Deus que lhe disse? É que aqui há uma distinçao importante a fazer - do facto de haver verdades que lhe estao cognitivamente fechadas a si nao se segue que essas verdades sejam incognoscíveis em geral. Parece também estar certo de que o único modo de superar a incognoscibilidade local é através da verdade revelada.
Na verdade o Kant nao se lembrou de uma coisa tao simples que até envergonha: é possível descobrir verdades necessárias de um modo a posteriori. É deste modo que conhecemos a composiçao química da água. Mas voce nao engole esta ilusao... acha que metafisicamente, tanto a química tem razao quanto a estrutura da água como um xamane a tripar no deserto. Claro que quando vai pintar a parede está-se nas tintas para isto. O esmalte aquoso mistura-se com água, independentemente do que dizem os espíritos da montanha alada.
Infelizmente, isto é o que a academia portuguesa nos ensina a fazer: mencionamos o nome de um filósofo ou um outro tipo de sinal que refira este e aquele pensador, o interlocutor imediatamente "pressupõe" a argumentaçao genial e intocável do Grande Superfilósofo da Tradiçao e por sua vez vai citar outro sinal, fazendo com que o interlocutor pressuponha, por sua vez, uma argumentaçao infalível de outro Superfilósofo da Tradiçao, como... como num jogo de computador com dois bonecos à traulitada. Em vez de bastoes, temos Kants e Descartes e Marxes e Nietzsches. É esta a miséria franciscana da psicofoda continental.
O problema desta prática é que nos torna herdeiros acríticos de todos os erros cometidos pelos nossos objectos de estudo. Um marxista é alguem que se condena a pensar eternamente na questao da natureza humana como se a biologia tivesse parado no tempo na altura em que o Marx escreveu a 6a tese sobre feuerbach e como se aquilo que Marx entendeu ver em Darwin fosse a ultima palavra sobre Darwin. Se nao formos totós, vamos tentar ler estas pessoas de um modo que tenha algum interesse e utilidade para nós. Mas isto implica parar de recitar historia de filosofia e fazer filosofia.
Por vezes compreendemos mal a caracterizaçao da filosofia analítica como sendo o privilégio do argumento. A tradiçao continental também privilegia o argumento, nao é por aí que a porca torce o rabo. Só que o mero facto de se tecer uma argmentaçao nada diz acerca dessa argumentaçao. A mania de arremessar aforismos como se isso fosse uma forma superior de pensar, sem outra base a nao ser a ideia parva de que os aforismos sao "fixes".
Nao basta ter um argumento qualquer, é preciso testar essa argumentaçao com contra-argumentos e isto é algo que nao se pode fazer só a decorar calhamaços ou a fazer citaçoes eruditas. Há que fazer a filosofia em primeira pessoa e nao por procuraçao. Temos de pegar nos argumentos dos filósofos e testá-los, e nao apenas aceitar as ideias que vem do gramofone da tradiçao, sob o pressuposto de que somos uns gajos tao humildes e tao incapazes que nao valemos a ponta de uma borbulha no rabo de um Kant ou de um Marx. Se o nosso pensamento nao vale a ponta de uma borbulha no rabo de um filósofo qualquer é algo que só podemos saber a posteriori, fazendo filosofia.
«Na verdade o Kant nao se lembrou de uma coisa tao simples que até envergonha: é possível descobrir verdades necessárias de um modo a posteriori. É deste modo que conhecemos a composiçao química da água.»
Kant diria que o juízo «a água é um composto de hidrogénio(2) e oxigénio» é um juízo a priori, pois é um juízo analítico. No conceito de água penso necessariamente a conexão H2 e O.
Depois, caro Vítor, você tem uma tonalidade de escrita que hesita entre o acinte e a catequese. O seu último comentário é todo ele muito catequético como se tivesse uma missão na terra e que por vezes parece qerer usar a espada. Há coisas que não me pode acusar: é utilizar a tradição como autoridade. Fui argumentando melhor ou pior. O que utilizei, no caso de Kant, foi uma argumentação que julguei pertinenente e que me dispensava de dar longas voltas sobre o assunto. Veja uma coisa: você fala sobre leituras inteligentes, mas depois não detecta um juízo analítico e confunde-o com um juízo a posteriori. Peço-lhe desculpa de lhe ter feito notar o assunto desta maneira um pouco deselegante, mas a sua pesporrência na escrita é desagradável. Já num comentário anterior tinha afirmado que determinada proposição era auto-refutante, o que não era verdade. Mas se ler a forma como o escreveu verá bem o acinte no tom.
Sobre o aforisma. Você pode esconjurar a prática do aforisma. Chamar-lhe parva, etc. Seja como for, ela existe. Podemos meditar o que ela significa. É mais interessante. Podemos pensar que um aforisma é a conclusão de um raciocínio, onde as premissas estão ocultas. Podemos ainda pensar que o aforisma é um desafio ao leitor para que pense a partir dali. Fácil e ingénuo é dizer que é uma coisa parva. Nem estou a defender os autores aforismáticos. Embora goste de alguns, como o Cioran.
Há muitos caminhos e muitas estratégias retóricas do pensamento. Platão usava o diálogo, Descartes e Rousseau utilizaram, por vezes, uma espécie de escrita diarística, o Espinosa escrevia à maneira dos geómetras, o Fichte fazia nuvens de obscuridades, o Hegel dialectizava, outros fazem análise lógica da linguagem. Mas tudo isto é estratégia retórica para persuadir o auditório da verdade que ali se vai revelar.
Estou-me nas tintas para a tradição continental e para a insular. Há uma coisa que as une: a retórica como caminho para a persuasão. A filosofia é um imenso exercício retórico. Mas deixando de lado a propensão para estar na verdade e partilhá-la com os outros, a filosofia é um bom exercício intelectual e que, por vezes, diz coisas que me fazem pensar. Mas não mais do que isso.
Abraço
Pense outra vez, nem sequer o Kant cometeria o erro de pensar que "a água é h2o" é um juizo analítico. Nem sequer temos de conjecturar o que ele pensaria disso, basta ver o que ele escreve. Se a estrutura química da água se inferisse a partir da extensao semantica de "água" entao era desnecessária a investigaçao científica. Penso que está a confundir a posiçao do Kant com a do Leibniz.
Nao sei a qual das duas afirmaçoes que acusei de autorefutantes se refere, mas creio que nao me enganei em ambas. A primeira é a tese de que tudo é ideologia. É de facto auto-refutante. A ideia de que a metafísica acabou porque a realidade é dialéctica (a palermice da vulgata marxista) é auto-refutante porque ela própria é uma afirmaçao metafísica.
Quanto ao aforismo, concordo precisamente com a ideia de que um aforismo é a conclusao de um argumento ao qual se esconderam as premissas. Contudo, acho que esta prática de esconder as premissas é epistemologicamente desonesta. Podemos fazer esse exercício claro, tal como podemos borrifar-nos para o autor do aforisma e pensar outra vez a questao.
Nao acho que a acidez na minha escrita fosse assim tao excessiva. Pelo menos nao ao ponto de ser catequética e missionária. Se há coisa que detesto sao as posiçoes missionárias, excepto uma, que nao é epistemológica nem metafísica.
Vamos lá enterrar o machado e fumar o cachimbo da paz que eu nao o quero converter a nenhuma tradiçao. No limite, tambem me estou nas tintas para o bairrismo entre insulares e peninsulares ou continentais. O que interessa é fazer filosofia em condiçoes. Simplesmente tenho acerca desse assunto uma posiçao incompatível com aquilo que os defensores da vertente continental, na sua maioria, defendem ou gostam. Só nao penso que tudo o que há para dizer acerca do assunto seja ideologia.
A diferença entre uma afirmaçao ideológica e uma afirmaçao que nao o é é simples: Uma afirmaçao filosófica genuína, tal como uma afirmaçao científica, é um convite permanente à sua refutaçao. As afirmaçoes ideológicas sao convites permanentes à aceitaçao e ao mesmo tempo recorrem à sugestao, mexendo com as susceptibilidades do auditório, com a sua vontade de "fazer parte de algo maior" e outros afrodisícos autoritários do género. A ideologia procura por todos os meios naturalizar uma certa imagem do mundo, criar na pessoa incentivos a nao procurar investigar a imagem geral ou o outro lado da questao, os detalhes, nuances, e, acima de tudo, lança o anátema sobre a prática sistemática da contra-argumentaçao como teste dos argumentos que se constrói: lembra-se o que alguns chamam a isto? "Revisionismo". Se eu disser de alguém que apenas está a opor contra-exemplos e contra-argumentos para testar o poder explicativo de um argumento, nao estou a implicar qualquer "vício" na natureza do meu interlocutor nem a instigar o auditório que no fundo já concorda comigo mas nao pensou no assunto, a desconfiar e a execrar o contra-argumentador. Mas se o qualificar de "revisionista" o efeito psicológico é outro.
O que me interessa é a investigaçao da realidade e nao a lavagem ao cérebro para que os outros gostem das mesmas coisas que eu.
Apesar de este comentário vir quase com 2 anos de atraso, queria só deixar os parabéns pela excelente exposição.
Li 2 ou 3 comentários que acusavam de parcialidade. Sinceramente creio que quando nos debruçamos sobre o tema "educação" é impossível ser-se imparcial.
Referências literárias e opiniões à parte, facto é que com este texto conseguiu fazer-me pensar. E isso sim, creio que é educar.
cumprimentos.
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