sábado, 19 de julho de 2008

O regresso de Carlos Queirós


Novo post de Rui Baptista sobre professores e futebol:

“Os processos da ciência são característicos da acção humana, porque se movem pela indissolúvel união do facto empírico e do pensamento racional” (J. Bronowski )

Começo por destacar o papel desempenhado pelo treinador de futebol brasileiro Otto Glória, formado em Educação Física, na estruturação da equipa e conquistas de títulos nacionais do Sport Lisboa e Benfica (1954-59) e na obtenção do 3.º lugar no Campeonato do Mundo de Futebol (1966), que o 2.º lugar conquistado no Campeonato Europeu de Futebol (2004) quase fez cair em injustificado esquecimento.

Na recente nomeação de Carlos Queirós para seleccionador nacional de futebol, no êxito internacional de José Mourinho e no excelente percurso de Jesualdo Ferreira no Futebol Clube do Porto, encontro motivo para me debruçar sobre o papel de professores de Educação Física no treinamento de equipas de futebol.

Anos atrás, Carlos Miranda, director de A Bola, deixou escrito que Carlos Queirós era um caso de predestinação comparável ao de Mozart (que aos quatro anos já tocava cravo e aos cinco ensaiava os primeiros passos da composição). Esta era uma acha mais na fogueira de uma controvérsia que está longe de estar extinta.

Quase se pode dizer que se nasce poeta e escritor, mas não se nasce médico, advogado ou professor. Daqui encontro justificação para na proliferação de licenciaturas, a que se tem assistido na Universidade Portuguesa, não haver cursos universitários de Poesia e os melhores escritores não serem licenciados em Letras (v.g., José Saramago e António Lobo Antunes, o primeiro habilitado com o curso das antigas escolas industriais e o segundo médico de formação). Idêntico princípio pode ser aplicado no domínio do futebol: “nasce-se” predestinado para a prática de um futebol de eleição (Carlos Queirós, José Mourinho e Jesualdo Ferreira não passaram da mediania como praticantes), mas não se nasce treinador de futebol; e é esta confusão que tem e continua a alimentar os “mentideros” do futebol nacional. Mas esta discussão tem raízes profundas.

No mundo das actividades corporais da Grécia Antiga chega-nos a polémica entre práticos e teóricos. Segundo Galeno (célebre médico grego, tido como pai da medicina desportiva moderna), os treinadores troçavam das teorias dos professores de ginástica e dos médicos sob o pretexto de não se ter o direito de discutir sobre coisas desconhecidas quando se não tem a prática do ofício.

Escrevi na década de 60: “Severiano Correia, treinador e antigo jogador de futebol, defende este princípio quando subscreve, no jornal ‘A Bola’, parte da entrevista de Balmanya, então treinador do Bétis de Sevilha, e em que este ‘se mostrava sumamente surpreendido com o facto do Sporting, além de ter um treinador, também utilizar um preparador físico [julgo que se tratava do professor de Educação Física e treinador de atletismo de renome internacional Moniz Pereira, hoje doutor honoris causa pela Faculdade de Motricidade Humana], sistema que não compreendia, uma vez que o técnico deve ser o único responsável por toda a orientação da equipa’” (Tribuna, Lourenço Marques, 5.Março.64).

Reacendia-se, assim, uma polémica protagonizada novamente por treinadores e professores de Educação Física. Ao ler um dia nos jornais que numa reunião do Sindicato Nacional de Treinadores de Futebol fora levantada a questão da legitimidade dos professores de Educação Física orientarem a preparação técnico-táctica das equipas de futebol ( a preparação física era já então matéria de consenso), não pude deixar de tomar posição: “Claro que a partir desta premissa é pertinente a conclusão de considerar exercício ilegal de profissão o facto de um licenciado em Educação Física treinar uma equipa de futebol ”(Jornal Novo, 15.Janeiro.77).

Em artigo publicado no Jornal de Coimbra (28.Agosto.91), com o título “Futebol, uma ciência sem cientistas”, escrevi: “Contrariando os que defendem a vantagem dos antigos jogadores de futebol – agora treinadores – serem os seus teorizadores, evoco a evolução de outros domínios do Conhecimento que ao ascenderem ao estatuto de pré-ciência (ou mesmo ciência) impuseram uma formação académica superior aos seus agentes”.

Assim, numa fase que chamaria de empírica, o treinamento do futebol esteve entregue a práticos, antigos jogadores alguns apenas com cursos reduzidos de treinador de fim-de-semana, merecedores do nosso respeito porque cabouqueiros do actual futebol português e de que é da maior justiça destacar o nome de José Maria Pedroto, jogador e seleccionador da Selecção Nacional de Futebol e treinador do Futebol Clube do Porto na conquista do primeiro título europeu nacional. Numa fase pré-centífica apareceram os bacharéis (antigos instrutores de Educação Física) meios práticos, meios teóricos, vg., Henrique Calisto e Hernâni Gongalves. Na fase científica surgem os chamados teóricos (por vezes em sentido depreciativo), os licenciados em Educação Física Jesualdo Ferreira, Nelo Vingada, Norton de Matos, Carlos Peseiro, Carlos Queirós, José Mourinho, etc.

Está novamente o nome de Carlos Queirós nas páginas dos jornais justificando a opinião categorizada de Joseph Blatter, secretário-geral da FIFA, quando disse em título de entrevista que “Carlos Queirós e os seu jogadores praticam o verdadeiro…futebol do futuro” (A Bola, 23.Junho.91). Figo e Cristiano Ronaldo assim o vieram confirmar.

Em Portugal é tradição passar-se do oito ao oitenta, do mais negro pessimismo à mais cor-de-rosa esperança, do acorde dorido da guitarra portuguesa à alegria contagiante do Bailinho da Madeira. Seja como for, o messianismo é carga demasiado pesada para os frágeis ombros humanos, ainda que fortalecidos por valioso diploma académico e escorados em provas dadas entre as quatro linhas de dois campeonatos mundiais de futebol de sub-vinte e ao serviço do reputado Manchester United.

Razão teve Otto Glória a quem se atribui a frase (há quem a atribua a Cândido de Oliveira): “O treinador de futebol quando ganha é bestial, quando perde é uma besta!”. Não é a bola redonda e o futebol sujeito à sorte ou aos azares da fortuna? Seja como for, Carlos Queirós merece bem um voto de confiança a longo prazo pelo seu passado de grandeza. Como diz o ditado, “Roma e Pavia não se fizeram num dia”.

1 comentário:

Rui Baptista disse...

No 9.º§, 9.ª linha, onde escrevi Hernâni "Gongalves", devia ter escrito Hernâni Gonçalves.

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