sábado, 5 de julho de 2008

Revolução cultural à portuguesa


Novo post de Rui Baptista sobre o estado da educação nacional:

“O que em sociedade desagrada aos grandes espíritos é a igualdade de direitos e, portanto, de pretensões, em face da desigualdade de capacidades” , Schopenhauer.

Em meados do século passado (1966), a República Popular da China, o maior e mais populoso território do planeta, vivia o agitado período de uma revolução cultural que fez ruir os pilares do conhecimento científico e o arquétipo do ensino universitário. Desta forma, em substituição de médicos de formação universitária, surgiram os chamados médicos de pés descalços, de formação rudimentar, também referenciados como médicos camponeses.

Em Portugal, em finais desse mesmo século, tem de se responsabilizar a tutela ministerial da altura por ter consentido, ou mesmo promovido, a formação de docentes deficientemente preparados para leccionar o 2.º ciclo do ensino básico, através de diplomas de licenciatura “à la minute” obtidos em escolas superiores privadas por antigos professores do ensino primário com o antigo 5.º ano dos liceus e um curso médio de 2 anos. Diz a sabedoria popular, “cada roca com o seu fuso, cada terra com o seu uso”. Sendo Portugal um pequeno e democrático país, como aceitar o mesmo fuso para rocas tão diferentes e o mesmo uso para terras tão distintas?

No findar de cada ano civil, as casas comerciais fecham, por dias, as respectivas portas para balanço, ou seja para avaliar os “stocks” de mercadorias existentes, assim como providenciar e programar as necessidades futuras. O sistema educativo nacional tem prescindido desses úteis balanços. Anos atrás, na opinião de Manuel Isidro Alves, reitor da Universidade Católica, “o poder político não conseguiu programar o sistema, foi ao sabor das ondas e, assim, resolveu problemas em lugar de programar politicamente um sistema”, tornando-se, assim, prosélito da “mão invisível”, descrita por Adam Smith em “A Riqueza das Nações”.

Desta forma, os erros acumularam-se de ano para ano. Estando até então a ensinança do 2.º ciclo do básico a cargo exclusivo de licenciados universitários, não pode deixar de surgir a inevitável pergunta: Será justo que os direitos sejam repartidos agora entre estes e aqueles antigos professores do ensino primário ou diplomados por escolas superiores de educação sobejando os deveres para os licenciados universitários? Será justo o desrespeito pelo princípio sagrado de iguais deveres para iguais direitos, defendidos em sociedades democráticas e consagrados nos Estados de direito?

Dito de uma forma mais simples: Será possível melhorar o ensino pela diminuição da exigência na formação de um quadro docente? Fará sentido o ensino politécnico preparar professores para ministrarem simultaneamente, por exemplo, Matemática e Ciências da Natureza, no 2.º ciclo do básico, quando a universidade entende que estas duas licenciaturas por si outorgadas devem ser diferenciadas cabendo a cada uma delas, apenas, a leccionação de cada uma dessas matérias?

E porque, como se trata de melhorar o estado do ensino, o que dizer das “Novas Oportunidades” que, em meia dúzia de meses, se substituem ao ensino convencional, que exige uma aprendizagem que demora anos e anos, para fornecer diplomas do ensino básico e até secundário? Ou que dizer do acesso ao ensino superior, em que foi substituído o sério exame “ad hoc”, feito a nível nacional, que exigia dos candidatos uma apreciável cultura geral e, de certa forma, específica do curso superior a frequentar, por um simulacro de prova de acesso para maiores de 23 anos levada a cabo por escolas superiores privadas e até oficiais carentes de alunos que lhes mantenham as portas abertas para não entrarem em falência?

Os cábulas que frequentaram o ensino normal anos a fio sem conseguir o simples diploma do ensino básico e, muito menos, o diploma de estudos secundários, são bafejados pela sorte de trabalhar (ou melhor, fingir que trabalham) nas empresas dos seus progenitores e esperar pelos festejos dos 23 anos de idade para entrar no ensino superior. Ou seja, a simples data de nascimento passou a substituir diplomas escolares de acesso a este grau de ensino que, em grande parte, se mediocrizou.

Aliás, em inícios deste século, manifestava-se, nas colunas do jornal “Público”, onde é colunista com assento habitual, o professor de Direito da Universidade de Coimbra Vital Moreira contra o facilitismo de que enfermava já então o ensino superior e o respectivo acesso da forma expressiva de que aqui quero dar conta: “A ideia de democratizar o ensino superior pela via da banalização do acesso pela crescente degradação da sua qualidade não é somente um crime contra a própria ideia de ensino superior, é também politicamente pouco correcta”.

Em presença de um ensino degradado para níveis de pouca credibilidade pedagógica, humanística e científica, é licito que o país ou mesmo qualquer simples cidadão recriminem o actual poder político por não levar em linha de conta a boa doutrina de uma figura de peso na vida académica portuguesa e, também, no Partido Socialista que está no governo.

4 comentários:

Musicologo disse...

O efeito é dominó, mas não teria grandes consequências, se, chegado ao nível universitário este mantivesse o seu nível regular. Os mal preparados cairiam que nem tordos chumbando consecutivamente (não deve ser por acaso que as cadeiras de matemática mais exigentes do técnico têm índices de reprovação à primeira na ordem dos 90%). O problema é que as universidades parece que têm acompanhado o facilitismo, e vindo os alunos mal preparados do secundário ou do exame 23, baixam a fasquia para conseguirem transitar esses alunos.

E é assim que hoje em dia temos licenciados e mestres à bolonhesa que nem sequer português sabem escrever. Onde nos leva isto?

Donagata disse...

Este post contém incorrecções que convém esclarecer.
Emprimeiro lugar "os professores do ensino primário com o antigo 5º ano dos liceus e um curso médio de 2 anos" (que quase já não existem no activo), mesmo que tenham concluído alguma licenciatura "à la minute" não podem exercer docência no 2º ciclo. Apenas lhes confere o grau de licenciado em termos de reposicionamento na carreira.

Em segundo lugar, se é verdade que a "ensinansa" já não é exclusiva de licenciados universitários, é contudo ainda exclusiva de licenciados. Os anos necessários para obter uma licenciatura que permite leccionar no 2º ciclo numa ESE (Politécnico), são os mesmos que são necessários em qualquer faculdade.
Da qualidade das mesmas já não posso dizer nada uma vez que agora há tal dispersão entre públicas e privadas que promove o facilitismo. E em relação a isso bem como ao teor geral do post que fala da diminuição mais ou menos generalizada da exigência com vista a elevar as estatísicas estou absolutamente de acordo.

Rui Baptista disse...

Reportemo-nos a tempos anteriores ao chamado Processo de Bolonha pois é essa época que versa o meu texto.

A formação dos professores do 1.º ciclo do ensino básico, levada a efeito nas Escolas Superiores de Educação, com o grau de bacharel, tinha a duração de 3 anos lectivos. Nessas mesmas escolas, a preparação dos professores do 2.ºciclo do básico constava do acréscimo de um quarto ano lectivo a esses estudos, concedendo o grau de licenciado. Ou seja, a formação específica para o ensino conjunto das disciplinas de Matemática e Ciências da Natureza (exemplos apresentados no meu post) processava-se, APENAS, num único ano lectivo, enquanto que no ensino universitário eram exigidos, para esse mesmo ensino, 4/5 anos lectivos de formação para leccionar ou Matemática ou Ciências da Natureza. Nunca as duas em simultâneo.

No caso dos professores diplomados pelas antigas escolas do Magistério Primário foi-lhes concedida equivalência a bacharelato para continuação de estudos e tendo eles prosseguido mais um ano de estudos superiores em escolas privadas era natural que lhes tivesse sido concedido idênticos direitos aqueles outorgados pelas escolas oficiais.

Diz-me agora, que assim não sucedeu. Se assim for (e apenas com essa condição "sine qua non"), nada me custa rectificar a minha informação.
Aliás, nunca foi minha intenção apoucar, ou sequer beliscar o seu mérito. Os professores do ensino primário formaram gerações e gerações de indivíduos que cometeriam uma injustiça grave que pusesse em causa a sua dedicação e competência no ministério do ensino das primeiras letras.

“Vade retro, Satanas!” A minha intenção foi unicamente lamentar que se tivesse retrocedido (ou andado de cavalo para burro) no aspecto formativo dos professores do 2.º ciclo do ensino básico, até a essa altura a cargo exclusivo de licenciados universitários. Aliás, considerei (e posso prová-lo com artigos de jornal por mim subscritos) uma evolução a preparação dos professores do 1,º ciclo do básico através do ensino superior. E uma involução a duplicidade na formação dos professores do 2.º ciclo do ensino básico.

Isto por me parecer difícil a defesa da tese que a qualidade do ensino está na razão inversa da qualidade da formação dos professores! Julgo que nem os próprios maoístas chineses nisso acreditaram quando passaram a formar médicos de pé descalço!

Rui Baptista disse...

ADENDA AO MEU COMENTÀRIO ANTERIOR:

No comentário de “donagata”, que transcrevo “ipsis verbis”, foi lançada a seguinte prosa: “Em primeiro lugar ‘os professores do ensino primário com o antigo 5º ano dos liceus e um curso médio de 2 anos" (que quase já não existem no activo), mesmo que tenham concluído alguma licenciatura "à la minute" não podem exercer docência no 2º ciclo. Apenas lhes confere o grau de licenciado em termos de reposicionamento na carreira’”.

"Ad exemplo", do boletim de informação da extinta Associação Nacional de Professores Licenciados - ANPL (mês de Janeiro, ano 1992, n.º zero), organização que viria a ser extinta para dar lugar ao actual Sindicato Nacional dos Professores Licenciados (SNPL), com a chancela responsável do respectivo Executivo Distrital de Lisboa, reza o seguinte: “A Lei 50/90 da Assembleia da República, publicada em 25 de Agosto, vem equiparar ao grau de Bacharel os antigos professores primários e educadores de infância e, não só!!! Confere-lhes direitos para prosseguimento de estudos com vista à obtenção da Licenciatura. A obtenção deste grau académico está a ser adquirida com a frequência dos ‘Cursos Complementares de Formação’das ESEs que também se ministram, em escolas de pseudo-ensino superior privado, criadas recentemente, ainda não homologadas, mas já a funcionar, e cujo nível dos cursos ministrados nada tem a ver com o de um 4.º ano de ensino superior”.

Mais adiante (id.,ibid.), são formuladas as perguntas seguintes: “Onde é que há coerência nestas FALSAS Licenciaturas? Não estará este processo a ser uma ‘fraude’ para quem frequenta escolas particulares desembolsando centenas de contos? ‘Para quem’, com estes diplomas PODERÁ VIR A EXERCER A DOCÊNCIA NO 2.º CICLO (as maiúsculas são da minha autoria) sem ter uma preparação científica credível, o que conduzirá à frustração de docentes e alunos? ‘Para os professores provisórios’, à espera, há muito, da sua profissionalização, ao verem-se ultrapassados por estes FALSOS Licenciados que, em breve, começarão a invadir as suas Escolas? Face a todo o exposto, a ANPL não pode aceitar que esta situação se mantenha porque, a mesma, acarreta todo um rol de prejuízos para o ensino, para os professores com formação científica e pedagógica adequada e para o País”.

“Statu quo” que teve como consequência, anos passados, uma minha intervenção noticiada no “Público” (1.Nov.96): “Inédita, em assembleias magnas, foi a intervenção de um sindicalista. Rui Baptista, presidente da assembleia geral do Sindicato Nacional dos Professores Licenciados, solidarizou-se com as causas dos universitários e alertou para o facto de, hoje em dia, ‘toda a gente’ querer ir para o 3.º ciclo e o 1.º ciclo estar a ficar ‘sem professores’”.

Aliás, esse êxodo de professores do 1.º ciclo do ensino básico (antigo ensino primário) já se vinha a verificar com a possibilidade de, através de um curso de complemento de habilitações, poderem passar a leccionar no 2.º ciclo do ensino básico. A titulo de esclarecimento, discutia-se na altura a possibilidade dos indivíduos formados pelas ESEs poderem vir a leccionar neste ciclo do ensino básico com a discordância dos licenciados universitários, como prova a seguinte intervenção, na referida Assembleia Magna, também relatada na notícia do “Público” : “Nós [universitários] suamos mais e trabalhamos mais do que os do Politécnico. ‘Setenta por cento marxista’, Cristina, originária de Bragança, estudante da Faculdade de Ciências e Tecnologia, subiu anteontem à noite ao palanque da Assembleia Magna da Associação Académica de Coimbra (AAC), dissertou sobre as túnicas de Cristo. E, às tantas, a propósito das alterações à Lei de Bases do Sistema Educativo, conseguiu arrancar a primeira chuva de aplausos da sessão.”

Pelo exposto, documenta-se que aos antigos diplomados pelas Escolas do Magistério Primário, com o discutível complemento de formação de escolas superiores privadas, foi facultado o ensino no 2.º ciclo do ensino básico, com prejuízo, mais que evidente, para o ensino das primeiras letras, Primeiras letras que, dessa forma, se viram privadas de seu necessário e precioso contributo, como tal por todos reconhecido. Mesmo em discursos de ocasião, por parte de entidades oficiais que o tutelam e têm o dever de providenciar pelo seu bom estado de saúde e, nem sempre, o fazem. Ou seja, como diz a “vox populi” , “não bate a bota com a perdigota”!

E aqui está como um simples comentário, feito pela “dona gata”, em boa hora e com a melhor das intenções, segundo penso, me deu a feliz oportunidade de um extenso (e concedo, até maçudo) esclarecimento meu em que me vi obrigado a espraiar no cumprimento de um contraditório que não se compraz com uma simples opinião pessoal necessitada de uma rectificação futura.

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