quarta-feira, 30 de julho de 2008

Einstein e Picasso

Revisito aqui o tema das relações entre ciência e arte, já abordado num capítulo do meu livro "Curiosidade Apaixonada" e no post "Imaginação, Arte e Ciência":

O aparecimento da arte moderna é praticamente contemporâneo do aparecimento da teoria da relatividade. Atendendo a essa contemporaneidade (e não só...) alguns historiadores de ciência encontram paralelismos entre a teoria da relatividade restrita de Albert Einstein (1879-1955), que considera o tempo e o espaço ligados entre si e com medidas dependentes do observador, e o cubismo, movimento artístico que convencionalmente se inicia com “Les Demoiselles d’Avignon”, de Pablo Picasso (1881-1973), o quadro de 1907 patente no Museum of Modern Art (MoMA) de Nova Iorque. É decerto possível encontrar convergências entre a relatividade e o cubismo. Ambos convergem no sentido em que vieram alterar radicalmente os conceitos estabelecidos nos respectivos domínios. Mas a convergência entre eles não se encontra apenas na transgressão das fronteiras estabelecidas. Arte e ciência, apesar de serem actividades humanas bem diferentes (a primeira associada ao subjectivo e a segunda ao objectivo), têm mais em comum do que normalmente se pensa: o processo de descoberta científico é normalmente favorecido quando ele se orienta por critérios de natureza estética. Pode dizer-se que “se é bonito, então deve ser verdadeiro” .

Vale a pena aprofundar o paralelismo entre a relatividade e o cubismo como um exemplo do paralelismo entre os processos criativos na ciência e na arte. Einstein e Picasso nunca se encontraram pessoalmente apesar de terem aparecido juntos na peça de teatro “Picasso e Einstein”, do norte-americano Steve Martin, que foi representada no Teatro da Trindade em Lisboa em 2005, quando se comemorou o centenário da teoria da relatividade restrita e de outos trabalhos de Einstein. O que têm em comum Einstein e Picasso, para além de terem sido contemporâneos e de serem os dois grandes génios?

Como via Einstein o mundo? Através de imagens. Einstein via o mundo físico com os olhos da sua mente antes de formalizar essa visão através de fórmulas matemáticas e de palavras. As imagens mentais precediam, segundo o próprio declarou, outras imagens. O jovem Einstein procurou responder à questão “como é o mundo visto por uma pessoa sobre um raio de luz?”, ou, uma vez que o próprio Einstein propôs no mesmo ano de 1905, que a luz é formada por um conjunto de grãos, os fotões, “como é o mundo visto por uma pessoa que acompanha um fotão?” Esta pergunta relaciona-se com outras, como por exemplo: “Se não se pode ir instantaneamente de um sítio a outro mas apenas, e na melhor das hipóteses, à velocidade da luz, o que significa dizer que dois eventos em sítios diferentes são simultâneos?” Einstein procurou responder a esta e a outras questões do mesmo género realizando experiências mentais (em alemão, “Gedankenexperimente”), isto é, experiências impossíveis de realizar na prática mas que se podem realizar mentalmente e cujo resultado deve ser unicamente determinado por um conjunto de axiomas de partida (os axiomas de Einstein eram apenas dois: “Todos os observadores devem reconhecer as mesmas leis da física” e “A velocidade da luz é constante”) e pela lógica matemática. Foi assim que nasceu a teoria da relatividade restrita, que veio resolver as contradições existentes entre mecânica e o electromagnetismo, duas teorias físicas que só aparentemente estavam bem estabelecidas. Einstein, para reter a teoria electromagnética dos britânicos Michael Faraday e James Clerk Maxwell, teve de rever a mecânica de Galileu e Newton. Foi a unidade das leis da física para todos os observadores – o hoje consagrado princípio da relatividade (na forma "As leis da física, incuindo tanto as do electromagnetismo como as da mecânica, são as mesmas para todos os observadores") – que esteve na base da revolução einsteiniana. Na ciência como na arte um princípio de concordância, ou, se se quiser, de harmonia é, muitas vezes, a mola impulsionadora. Se é bonito...

Mas saberia Picasso, o jovem nascido em Málaga, Espanha, que foi em 1895 estudar para Barcelona, alguma coisa acerca das imaginações do jovem Einstein nascido em Ulm, na Alemanha, e que foi em 1896 estudar para a Escola Politécnica de Zurique, na Suíça? Decerto que não directamente, mas talvez sim indirectamente através dos escritos do francês Henri Poincaré (1854-1912), um dos maiores matemáticos do século XX, que teria sido autor, ou pelo menos co-autor, da teoria da relatividade se tivesse sido mais ousado (embora não tão claro e completo como o artigo seminal de Einstein sobre a relatividade, um artigo de Poincaré sobre a dinâmica dos electrões precedeu, na sua versão abreviada, o artigo de Einstein por escassos três meses; porém, a versão longa, que não cita Einstein tal como Einstein não cita Poincaré, só apareceu cerca de um ano depois). Segundo o historiador de ciência norte-americano Arthur Miller, Poincaré seria a chave para compreender a eventual ligação entre Picasso e Einstein, entre a relatividade e o cubismo. No seu livro “Einstein, Picasso: Space, Time and the Beauty That Causes Havoc”, esse autor defendeu que os trabalhos de Poincaré, que já continham algumas reflexões sobre o conceito de simultaneidade e que já reconhecia a relevância das geometrias não euclidianas para descrever o mundo físico, terão estado na origem da primeira obra cubista. Foi um amigo de Picasso, o actuário francês Maurice Princet (1875-1973), que tinha bons conhecimentos de matemática, quem teria providenciado essa ligação. Um livrinho francês de divulgação do conceito da quarta dimensão (o tempo), já presente aliás no livro “Ciência e Hipótese” de Poincaré, saído em 1902, teria sido útil. A acreditar nesta tese, as ideias científicas sobre o espaço-tempo tiveram uma influência não desprezável sobre a criação de Picasso.

Contudo não se sabe ao certo se foi assim e provavelmente nunca o saberemos. Curioso é que “Les Demoiselles d´Avignon”, uma obra de arte fragmentada na qual parecem coexistir vários pontos de vista (o quadro, inspirado também por arte ou fotografia de mulheres africanas, representa cinco prostitutas não de Avinhão, mas da rua de Barcelona que tem o nome dessa cidade francesa) tenha aparecido dois escassos anos depois do artigo de Einstein que permite relacionar os pontos de vista de vários observadores físicos. Pode-se aqui com propriedade falar de “Zeitgeist”, o espírito do tempo. Ao contrário do que fantasia a referida peça teatral, os jovens Picasso e Einstein não se encontraram em 1904 ou noutro ano qualquer no café “Le Lapin Agile”, em Montmartre (Einstein visitou Paris em 1913 e 1922, mas não consta que tenha encontrado Picasso). Dizer se houve ou não uma interacção forte à distância entre Einstein e Picasso, através das interpostas pessoas de Poincaré e Princet, é por isso especulação. A criação artística tem os seus mistérios, que serão porventura ainda maiores do que os mistérios, já de si grandes, da criação científica...

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