quinta-feira, 20 de setembro de 2007

O Corpo vivido por Frederico Fellini

Mais um post convidado, do nosso habitual colaborador, Rui Baptista.


“Era num estúdio vazio , o Plateau 5 da Cinecittá,
que Frederico Felinni fazia concorrência ao Pai Eterno,
e como um 'demiurgo', organizava o caos.”
Vasco da Câmara (Público, 1. Nov. 93)


Prisioneiro de uma má recordação por ele próprio confessada numa entrevista publicada no prestigiado diário italiano La Stampa -- “eu sempre me senti bastante distante do meu corpo; era a única forma de escapar àquela marca da educação física fascista e à obsessão católica com as questões carnais” --, em seu leito de enfermo, diminuído fisicamente e em sofrimento psíquico por um acidente vascular cerebral de que viria a falecer poucos dias depois, Frederico Fellini (1920-1993) deu um impressionante testemunho que merece ser revisitado por fazer parte de um comovente texto de remorso pela sua desagradada relação com o Corpo.

Nesse testemunho não se esquiva, esse monstro sagrado de uma cultura cinematográfica sem pátria, a uma contrição sobre o distanciamento que sempre manteve como o seu Eu corporal: “Mas depressa me arrependi. Se eu houvesse sido o Super-Homem, teria sido capaz de intervir em inúmeras injustiças monstruosas”. E prossegue, num leito de sofrimento que se viria a tornar antecâmara da morte: “A minha relação com o meu corpo mudou. Eu costumava considerá-lo um servidor que me devia obedecer, funcionar, dar prazer. Na doença apercebemo-nos de que os senhores não somos nós, mas sim o nosso corpo que nos mantém prisioneiros”. Aliás, deve-se a Platão a progenitura destas grilhetas quando considera “o corpo túmulo em vida da alma”.

Estranhamente, assume o corpo uma inesperada dignidade quando matéria pútrida, sem sopro de vida ou nobreza d’alma. Logo, parece-me que a pompa das cerimónias fúnebres se assume como tardio remorso pelo desprezo que lhe é votado em vida. Em resumo, para o corpo rejeição em vida e homenagens fúnebres que perduram na memória civilizacional.

Em contrapartida, o corpo humanizado, que ri e que chora, que se movimenta e expressa corporalmente, personificado na figura dum Atlas, ajoujado ao peso de falsas convicções e preconceitos sem fim, tarda em libertar-se duma funesta sombra que a contemporaneidade se esforça em dissipar: “O nosso século apagou a linha divisória entre o corpo e o espírito e vê a vida humana como espiritual e corporal ao mesmo tempo e sempre apoiada no corpo” (Merleau-Ponty, 1908-1961).

Perante uma angústia que se lhe estampa no rosto, à pergunta do que sente mais a falta, a resposta surge sem qualquer hesitação: “De mim próprio. Daquilo que eu era”. Na verdade, a doença e a velhice com os seus achaques e decrepitudes fazem o espírito incapaz de manter uma ilusória tutela sobre o corpo que nunca chegou a ser efectiva. Unicamente alimentada pelo ledo e doce engano de que a juventude e a saúde são eternas porque somos jovens e saudáveis.

E, quando em infortúnio, o espírito deseja o corpo forte, rebelde e combativo, qual Espartaco, a doença, a velhice, a fealdade, depois de combates perdidos, vencem-no em batalha final. Sem honra, nem glória!

11 comentários:

Anónimo disse...

Meu Caro Rui Baptista
Um homem não morre sozinho ele mesmo, sozinho nos seus anos maduros. Morre todo, todo desde menino, desde criança de chuchar e brincar, morre adolescente e adulto, que essa é a grande tragédia da sua morte: estão todas nele, as várias idades. É ainda o menino que ouve chamar “meu querido”, mas a voz é outra, agora dói, dói muito. Essa a tragédia, esse o destino: todas as idades e todos os sonhos a morrerem num só momento e num só homem.

Graça disse...

Lembro-me de, há muiiiitos anos, ter lido uma frase proferida por S. Tomás de Aquino no seu leito de morte: "Agora compreendo que deveria ter tido mais cuidado com o meu irmão corpo"...

Anónimo disse...

Meus Caros Graça e Daniel:

Sinceramente vos digo: aquilo que muito valoriza os textos que escrevo são os comentários que lhes fazem (mesmo aqueles menos agradáveis que, por vezes, me ajudam a repensar as minhas ideias ou, até, as minhas convicções). Em consequência, duplamente grato a ambos, por eles e pela lhaneza como foram redigidos.

Quanto à frase de S. Tomás de Aquino,minha cara Graça, não há uma identificação plena entre matéria e espírito, apenas os irmana. O que para a época foi muito e de muita coragem.

Freud (bem sei que a época foi outra), diz-nos que "o Eu é, antes de tudo, um eu corporal". Ainda em época mais próxima dete milénio que acaba de bater à porta das nossas existências, Gabriel Marcel, não se exime m declarar: "Eu não tenho o eu corpo, eu sou o meu corpo".

Meu caro Daniel,na verdade, num breve exalo se morre. A acompanhá-lo toda uma vivência e a tragédia ou não de um destino. Esta temática não se esgota aqui, entre mim e vós. Vai bem para além de nós! Essa, a sua riqueza.

Cordiais saudações
Rui Baptista

Gisele Secco disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Gisele Secco disse...

Seria bom seguir conversando sobre isso, aqui do De rerum. Andava pensando eu, outro dia (induzida pela leitura de José Gil, que faço às vezes, devagar, para tentar conpreender mais e melhor que quer dizer ele sobre o corpo, a dança), bem, pensava eu em como os cientistas e filósofos deste blog responderiam a uma proposta de pensar o corpo.
Me incomoda um pouco o teor de certos discursos e falações filosóficas sobre o corpo, e quanto mais eu penso e (con)vivo, vejo que são meus amigos do teatro é que entendem mesmo do que estamos nós tentando tocar conceitualmente.
E a "ciência do corpo" seria mesmo dada na arte (como o teatro e a dança).

Anónimo disse...

Cara Gisele:

Serão bem recebidas todas as considerações sobre o Corpo vindas, como escreve, dos "seus amigos do teatro". E, claro está, as suas também.

Elas enriqueceriam uma temática que, como fiz questão de deixar expresso, "não se esgota aqui, entre mim e vós" [isto é, entre mim, que subscrevi o texto, e os dois comentadores iniciais: Graça e Daniel].

Se reparar bem, o testemunho sobre a relação com o Corpo emana de uma figura genial do mundo da Arte (havida como a 7.ª Arte, como sabe), Frederico Fellini, e é tanto mais comovente por ser um testemunho vivido de uma personagem à beira da morte em que , por via de regra, se assumem os erros em vida e deles se faz a penitência. Ou seja, em que cai a máscara para nos assumirmos como nós próprios e não como personagens a querer parecer aquilo que não somos na realidade.

Plenamente de acordo consigo:"Seria bom seguir conversando sobre isso, aqui do De rerum" (sic.). Será uma conversa de que muito terei a ganhar em concordância com Karl Popper: "Igualmente importante é o princípio que podemos aprender muito a partir duma discussão, ainda que se não chegue a acordo, porque a discussão pode-nos levar a compreender alguns pontos fracos da nossa posição". E este princípio será tanto mais válido por se tratar de uma discussão académica entre vários intervenientes que estudam o Corpo numa perspectiva que deve ser o mais abrangente possível.

Cordiais cumprimentos
Rui Baptista

Anónimo disse...

Por lapso, e porque tem interesse para esta temática,transcrevi o pensamento de Gabriel Marcel da forma seguinte: "Eu não tenho o 'eu' corpo, eu sou o meu corpo". Obviamente a frase é: "Eu não tenho o meu corpo, eu sou o meu corpo".

Gisele Secco disse...

Obrigada pela resposta, Rui.
Acredito que tua referência ao Fellini vem para fortalecer a idéia que às vezes me passa sobre a noss (má)compreensão do corpo. Um grande artista como Fellini pode ter se dado conta do "desprezo" ou falta de atenção para como corpo no final de sua vida, e nós, pensadores, professores (penso especialmente na minha área, a filosofia, da qual dificilmente parte um discurso razoável sobre o corpo, esse irrazoado), o que pensamos nós sobre tais incompreensões? Como poderíamos tematizar nosso corpos (nós mesmos) sem que o discurso se transformasse em "falação" (como chamei antes)?
Estava pensando, outro dia, que os pós-modernos (mesmo sem saber quanta gente caberia nessa classificação!) gostam muito de falar do dorpo, desde uma perspectiva não-cartesiana, não dualista, etc, e mesmo os artistas do teatro (os que eu conheço, com os quais trabalho e vivo), tem todo um discurso sobre o corpo que é ofensivo à tradição da filosofia ocidental... Seriam tais discursos desprovidos de alguma razão?

O que (e como) podemos pensar sobre o corpo, nós, filósofos de hoje?

Anónimo disse...

Olá Gisela: É do Homem que falamos cujo mistério intrigou Blaise Pascal (1623-1662) quando se interroga: “Que quimera é o homem? Que novidade, que monstro, que caos, que prodígio, juiz de todas as coisas, verme imbecil, cloaca de incerteza e de erro, glória e nojo do Universo. Quem deslindará esta embrulhada?”.

Mas porque, segundo Peter Medawar (Prémio Nobel, 1960), “a Ciência não pode responder às questões últimas sobre o sentido da vida”, a Filosofia que atravessou a bruma dos milénios, a Biologia hodierna apenas com pouco mais que dois séculos de vida, porfiam, desesperadamente, e cada uma por seu lado, em encontrar resposta ao grande enigma do “animal racional” de Lineu (1707-1778) - que geneticistas nos dizem hoje diferenciar-se de um simples rato, apenas, por um escasso número de genes - , rejeitado pelo fervor religioso do literato Chateaubriand (1802) quando se revolta: “Se nos é permitido dizer, é, parece-nos, uma grande pena encontrar o Homem mamífero classificado, depois do sistema de Lineu, como os macacos, os morcegos e os pássaros”.

Para Edgar Morin, uma das melhores cabeças do Pensamento hodierno que viaja pelos mares da interdisciplinaridade (muito falada mas pouco cumprida!), a idade da Terra ascende a 5 biliões de anos, a Vida a 2,5 biliões, o “homo sapiens” de 100 a 50.000 anos, a Filosofia a 2.500 anos, e a Ciência do Homem está apenas no seu ano zero! Facto este que torna desejável que as Ciências Humanas, para mais, segundo ele, “um pequeno ghetto”, não virem as costas à Biologia na sua tarefa de Sísifo em desvendar os segredos da “humilhação zoológica” do animal racional apeado do criacionismo. E se, ao debruçarmo-nos sobre a história da humanidade, temos dados que nos permitem avaliar as consequências do passado, para Jean-Michel Rey (1972) “a Metafísica e a Religião nos seus esforços conjugados lançaram uma proibição sobre qualquer ciência do corpo”.

Demais, e ao contrário do que vulgarmente se pensa, pelo apogeu atingido nas práticas atléticas gregas e valioso legado estatuário de apolíneos heróis com as cabeças coroadas de louros, a filosofia helénica deverá, também ela, ser responsabilizada por este “statu quo”. Assim, no legado platónico, praça forte do pensamento contemporâneo, o corpo foi tido como “um companheiro mau no caminho que leva à verdade. E porque a Gisela falou de Teatro e Dança e eu de Cinema, recordo o que Nietzche (1884-1900), sem a carta de mareante da Ciência da Vida, escreveu sobre o abstracto conceito de Arte: “ A fim de haver arte , para que existam um fazer e um olhar estético, é indispensável uma condição biológica: a embriaguez; primeiro, a embriaguês deve intensificar a excitabilidade de toda a máquina: antes a nenhuma arte se chega”.

O estudo do Homem na sua imensa complexidade tem sido “fatiado”(se me é permitida a expressão)“ em estudos parcelares devárias disciplinas científicas e artísticas (como a Gisela bem referiu quando fala do teatro e da dança) como se o todo não fosse maior que a soma das partes.

Pacientemente, vai-se conseguindo juntar as peças de um imenso puzzle que espera que por ser devidamente montado. Por isso, volto ao princípio: “Quem deslindará esta embrulhada?”

Gisele Secco disse...

Rui, obrigada pelas referências.
Um pouco sem tempo, quero apenas dizer que a citação de Nietzsche me faz pensar no estado físico ideal para o ator entrar em cena (depois de horas de preparação da "embriaguez", que eles costumam dizer que os faz ficar "inteiros" em cena), e se insisto na referência à arte é porque me parece que qualquer um que se interesse por "deslindar a embrulhada" deve poder pensar de modo interdisciplinar ou, como diria meu caro mestre, transversalmente pedestre, para não deixar "fatiado" esse assunto de todos nós.

Anónimo disse...

Gisele: Foi um prazer manter este frutuoso diálogo consigo pela elevação que soube imprimir-lhe e a que fiz os possíveis por corresponder. Trocar opiniões não deve ser, de modo algum, uma espécie de circo romano em que o sangue esguiche de feridas profundas. Se possível mortais, para gáudio de plateias boçais.

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