quarta-feira, 26 de setembro de 2007
A Crise da Química
Uma questão diversas vezes abordada no De Rerum Natura tem a ver com a (má) imagem pública da Química. Para nos ajudar a explicar porquê, pedimos uma contribuição a Luís Alcácer, do Instituto de Telecomunicações/Instituto Superior Técnico. O químico que foi pioneiro em Portugal na área de «Electrónica Molecular», respondeu prontamente com este post convidado, que, dada a sua actualidade e centralidade, será desenvolvido num próximo número do boletim da Sociedade Portuguesa de Química.
A química tem actualmente uma má imagem pública. Os cursos de química não atraem alunos. A química não está na moda. Porquê?
A revista Nature de 3 de Agosto de 2006 (vol. 442, pags. 486 e 500-502) analisou essa questão e publicou os resultados de um inquérito junto de alguns dos químicos mais eminentes do planeta. Todos concordam que a palavra "química" continua a ser a melhor, se quisermos referir-nos às ciências da matéria e das suas transformações. Longe de ser uma espécie em vias de extinção, a química é vítima do seu próprio sucesso. De facto, a química deu-nos as ferramentas e os conceitos para, por exemplo, investigar o misterioso processo a que chamamos vida. Os químicos conseguem criar estruturas (materiais) a partir de átomos, quer trabalhem em departamentos de engenharia química, quer em departamentos de engenharia de materiais ou de polímeros. Intervêm nas nanotecnologias e na electrónica, e poderão mesmo vir a criar, por auto-organização (self-assembly), circuitos e memórias, não apenas programáveis, mas também, capazes de "aprender".
Um dos problemas é que os créditos não são, muitas vezes, atribuídos à química.
O desenvolvimento da ciência e da tecnologia no século XX, levou a uma grande especialização e à separação dos saberes. Só assim, foi possível tirar proveito económico da ciência. Muitas das áreas científicas e tecnológicas, inicialmente do domínio da química, separaram-se, criando muitas novas disciplinas. É o caso da metalurgia, que faz agora parte da "ciência de materiais", e da bioquímica agora estilhaçada numa grande variedade de subdivisões. Esta evolução levou a que muitos departamentos, originalmente de química, tenham mudado de nome para "química e biologia", "química e materiais", etc. As mudanças de nome não são apenas uma questão de moda. Reflectem também uma mudança de ênfase genuína. Esta tendência já é evidente nas organizações e nos nomes de muitos departamentos universitários, desde Harvard até, por exemplo, ao nosso Instituto Superior Técnico. Tal reorganização não é a melhor maneira de assegurar a posição da química como uma disciplina independente.
Com os departamentos de química das universidades a fechar ou a mudar de nome e o número de alunos interessados pela química a diminuir, conseguirão os químicos manter a sua disciplina como uma "ciência básica"?
A revista Nature perguntou aos químicos quais são as grandes questões que se colocam ao seu domínio científico, e se, de facto, a química precisa de se apoiar em grandes questões para manter a sua coerência e identidade.
O eminente carácter sintético da química coloca-a num plano diferente das "ciências baseadas na descoberta" como a física, a astronomia, a biologia e as ciências da Terra. A química cria o seu próprio objecto, como escreveu Berthelot em 1860. E embora esteja a emergir agora a biologia sintética, como uma disciplina genuína, para muitos químicos, esse não é mais do que um ramo da química aplicada, assente em técnicas químicas como a síntese do ADN e o "design" de proteínas. A química é a única ciência que permite fazer coisas que nunca foram feitas. É a ciência que alimenta a indústria, não apenas a petroquímica, mas também a indústria farmacêutica, a indústria de semicondutores e a biotecnologia.
Algumas das grandes questões que se colocam à ciência actual são do domínio da química. É o caso da essência da vida. Só a química terá capacidade de abordar problemas como o da auto-organização (se assim se pode chamar) que levou o Universo a gerar uma entidade que é capaz de reflectir sobre a sua própria origem, diz o prémio Nobel Jean-Marie Lehn. A química precisa de se reafirmar como uma disciplina básica. Não como uma simples ferramenta. É talvez altura de os departamentos de química repensarem a sua estrutura interna. A divisão tradicional em química-física, química orgânica e química inorgânica tornou-se há muito inadequada.
A grande questão diz respeito à natureza e às regras que governam o processo de organização de átomos em novas moléculas e estruturas de um modo previsível e efectivo. Se a química se decompuser em outras disciplinas não haverá base de aprendizagem e treino para conseguir tal domínio sobre a matéria. Note-se que se podem considerar cerca de 1040 (1 seguido de quarenta zeros) moléculas, de tamanho comparável ao de um fármaco típico, que podem ser feitas a partir dos elementos químicos comuns. O mundo químico conhecido, incluindo a expansão do mundo natural que os químicos conseguiram, não atinge sequer 1% desse número.
As grandes questões que se colocam à química:
• Qual é a base química da célula viva?
• Qual a base química do pensamento e da memória?
• Como começou a vida na terra, e como e onde poderá começar noutros mundos?
• Como poderemos fazer o "design" de moléculas com funções e dinâmicas específicas?
• Como poderemos fabricar os materiais necessários para o futuro, nas áreas da energia, da indústria aeroespacial e da medicina?
• Como poderemos explorar todas as possíveis combinações de todos os elementos químicos?
Luís Alcácer
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19 comentários:
"Como poderemos fazer o "design" de moléculas com funções e dinâmicas específicas?"
Será que os IDiotas vão ter, no futuro, um químico para adorar, rezar e louvar? :)
Tenho de discordar logo com a imagem: Física como parte da Química?
Bem, ambas as ciências estão bem definidas há muito tempo, e a hierarquia do desenvolvimento mostra que, quanto muito, se coloca a Química dentro da Física.
Mas isto dá para discutir durante horas...
Olá Miguel:
Nem o Direito nem a Medicina «são parte» da Química e figuram igualmente nesta ilustração que pretende mostrar algumas interfaces da Química. O tamanho das letras - maior em Bioquímica, em farmacêutica e (química) forense - reflecte a maior sobreposição das áreas indicadas, algumas, como a bioquímica e é referido pelo Luís, que foram « áreas científicas e tecnológicas, inicialmente do domínio da química, separaram-se, criando muitas novas disciplinas».
Sobre a questão que referes dar para discutir umas horas já o foi em Agosto :-), por exemplo, no post «Filosofia da química e atomismo»
Eu gostava de ser investigador de Química!
Poderei apontar um outro problema, mais estrutural. As escolas, segundo me parece, fazem pouca "publicidade" à química. Enquanto estudava no 8º ano, vi uma pequena demonstração dos alunos de quimicotecnia do 9º ano (tal como o sistema funcionava na altura). Essa demonstração, laboratorial, convenceu-me a enveredar pela quimicotecnia pelo fascínio que em mim exerceu. Depois, com as aulas de laboratório que tive na disciplina, fiquei agarrado para a vida.
Com a diminuição da componente laboratorial em química, os alunos perdem facilmente o interesse na disciplina. A química, como o Luís Alcácer diz indirectamente, é uma disciplina que vive do "fazer". Pode ser feita química teórica, mas necessita sempre de uma vertente laboratorial. Já a física ou a matemática sobrevivem perfeitamente, de forma apelativa, sem um laboratório. A biologia, por exemplo, já não. Mas a biologia, tal como também é referidono post, está hoje intrínsecamente ligada à química.
Uma curiosidade: em holandês, a química recebe o nome de "scheikunde". Ainda na mesma língua, "scheiden" significa "separar" e "-kunde" é o sufixo que indica ciência. Especulativamente, "scheikunde" poderia significar literalmente "ciência da separação", o que é o oposto daquilo que, hoje, a química implica. Talvez por isso os holandeses também tenham dificuldade em atrair estudantes para os cursos de química e afins.
Só ficou a curiosidade
«Criar o próprio objecto»? Isso fazem (por vezes...) os escritores, não é? Ainda assim, as consequências são bem diferentes num caso e no outro. E... será somente «objecto», quando se mete a biologia ao barulho? Presumo que os filósofos têm também muito a dizer sobre este assunto.
Adelaide Chichorro Ferreira
Quanto à Scheidkunde (atenção, não confundir com uma eventual Scheisskunde, ou escatologia...), não me parece nada insensato! Toda a «filosofia» (?) actual na maneira de lidar com os materiais está assente na mistura de componentes (eis o caso dos chamados «materiais compósitos»). Mas não estará na hora de pensar cientificamente nas estratégias de recuperação de *cada componente dos materiais*, para futura reutilização em novos produtos? O consumidor agradecia, assim como aqueles que têm de arcar com as consequências nefastas da infinita composicionalidade, *após consumo*. O espírito (a criatividade!) é fantástico, mas não menos fantástica é a matéria. Fantástica demais para se lidar com ela como se fosse ilimitada a nossa capacidade para absorver e processar aquela com que depois mais entramos quotidianamente em contacto. Creio que muito do que é a verdadeira criatividade exige uma atitude de sóbria parcimónia, e até uma certa lentidão.
Adelaide Chichorro Ferreira
Estava a brincar, se bem que se trate de assunto bem sério e importante! E aliás faltou-me o Eszett, porque a nova ortografia alemã já entrou em vigor (a palavra alemã para Scheidkunde seria - não sei se é! - igual à do neerlandês, com a diferença de que o substantivo exigiria maiúscula).
Adelaide Chichorro Ferreira
Curioso no final do artigo o pressuposto que vida, pensamento e memória têm base química, para ser descoberta.
Um bom desafio à filosofia, as ciências têm ultimamente andado a meter-se em assuntos que sempre foram dominados pela filosofia.
Se houver realmente uma base química para pensamento e memória, eventualmente descobrir-se-ão, mas a questão é: e há? Isso sim, seria interessante analisar.
E as Letras (as Humanidades em geral) não interferem cada vez mais com as Ciências? Não acho nada estranho que haja uma base química que explique as questões do pensamento e da memória, mas há outra questão que se coloca: queremos, ou *devemos* querer sempre sabê-lo? A ideia de que Deus joga aos dados até é fascinante, pela liberdade que nos dá de não termos de procurar um sentido último para tudo o que fazemos e de que gostamos. Se gostamos da natureza como ela (ainda) é, porque havemos de querer «optimizá-la», «melhorá-la»?
Adelaide Chichorro Ferreira
Adelaide, cuidado com as traduções desse tipo, não vá sair um "Scheide" em alemão, coisa que nada tem a ver com separação (se bem que muito a ver com química) :)
A lógica da palavra "scheikunde" vem, creio, no sentido da química mais original, que se preocupava em descobrir elementos. Aí, a lógica era precisamente separar os componentes de substâncias apra descobrir os seus constintuintes, daí a "ciência da separação".
Por outro lado, esse conceito de trazer a química de volta à separação, não está mal pensada. De certa forma, isso é feito, mas muito ao acaso e sem grande critério. No fundo, uma incineração não andará muito longe disso, ainda que não retiremos os elementos originais das susbtâncias qque queimamos.
Claro que «Scheide» tem, anatomicamente falando, muito a ver com separação! Em diferentes sentidos, a começar pelo icónico e terminando no... irónico. E tem a ver também, metaforicamente, com um certo ponto de vista... digamos que feminino, na ciência e não só. Que bem falta faz, mas adiante.
Referia-me obviamente a outra coisa, ou seja, às técnicas de separação dos vários componentes da matéria com vista à sua recuperação após a utilização pelo ser humano, que todavia pressupõem, a meu ver, um entendimento particular (não predominantemente linear) daquilo que é a natureza e seu funcionamento. Não me referia propriamente ao passado da química que, como é óbvio, conheço muito mal, para não dizer pessimamente... Não é ainda consensual o imperativo de recuperar o máximo de cada componente da matéria, creio. O paradigma da mistura ilimitada continua a dominar, fazendo com que outro tipo de atitudes filosóficas, com consequências para o design de tecnologias, sejam descartadas precipitadamente como utópicas ou não susceptíveis de conquistar os mercados.
Adelaide Chichorro Ferreira
Não, a incineração de lixo não tem rigorosamente nada a ver com o paradigma a que me referia! Que é que ela permite recuperar, a não ser um niquinho de energia?! Digam-me lá: a matéria é só isso? Energia? A mim quer-me parecer que há mais mundo para além do da energia.
Adelaide Chichorro Ferreira
Corrijo-me: referia-me à utopia da mistura ilimitada. Não será mais correcto assim?
Adelaide Chichorro Ferreira
Realmente, só agora vejo! «Traduzi» imediatamente «scheikunde» para um ocasionalismo alemão, teoricamente possível mas pragmaticamente problemático, «Scheidkunde», construído a partir do elemento «scheiden» (tal como acontece, aliás, com «Scheide», 'vagina'), e escrito com maiúscula.
Meti na palavra neerlandesa (se é que estava mesmo bem escrita)um «d» que não estava na mensagem do meu interlocutor que a referiu primeiro.
A tendência para olhar para uma língua que não falo, o neerlandês, a partir do prisma do alemão, que conheço um pouquinho melhor, demonstra, sem dúvida, alguma «deformação» profissional minha, e a pressa de quem escreve aqui no meio de inúmeras outras coisas, sempre um bocado a correr.
E, já agora: pela lógica, também «Esszett» (vogal breve no início), a designação para aquela letra estranha da língua alemã que parece um «beta» mas não é, devia ter 2 s no alemão. Escrevi também com ss «Scheisskunde» (à letra: 'o estudo do produto da defecação', numa linguagem menos prosaica que em alemão, e numa das interpretações possíveis apenas...) porque este programa, ou o computador que utilizo, não me deixa usar o «Esszett» (?), se bem que, a seguir a ditongo, também seja necessária esta letra. Ficam, portanto, as correcções!
Quanto ao resto, não corrijo porque se trata de ideias - ainda pouco consensuais, é certo, ou até muito pouco conhecidas - que todavia defendo, até alguém me convencer do contrário. Ver, por exemplo, Kryo-Recycling.
Abraço
Adelaide Chichorro Ferreira
Adelaide, eu percebi o que queria dizer sobe a recuperacao dos elementos. Apenas quis dizer que, neste momento, a (perto de) unica forma de decomposicao das substancias nos seus elementos vira da incineracao. Isto apenas e so nas perspectiva da "ciencia da separacao", nao mais. Bem entendido que seria interessante recuperar os elementos ou, pelo menos, moleculas menores para posterior reutilizacao.
Ja agora, "scheikunde" esta correcto em neerlandes (e nao holandes, como escrevi). Informacao adicional, o "ch"le-se foneticamente como o "j"para os espanhois ou o "ch" de "machen" em alemao. O "s" e lido normalmente.
Não foi isso o que ainda há bem pouco tempo (28 de Maio) ouvi na Alemanha. As pessoas por lá têm-se queixado muito intensamente da incineração, e ainda por estes dias isso vai acontecer, ou já está a acontecer, na Offene Universität em Gelsenkirchen, que por alguma razão tem vindo a ser bastante concorrida, e por alguma razão, também, não é uma universidade normal mas antes um fórum oriundo da sociedade civil onde cientistas de renome, e outros cidadãos, trocam experiências, opiniões, conhecimentos. Para mim, que já vivi a 200 m. de uma incineradora, o argumento da autoridade científica, neste assunto, não convence. Aquilo que ouvi com os meus ouvidos a pessoas que sabem muito mais do que eu sobre estes assuntos é que a incineração não destrói coisíssima nenhuma, antes transfere para os pulmões das pessoas produtos altamente indesejáveis. E digo mais: impedir as pessoas de aceder a este tipo de conhecimentos, ou de os divulgar (como já me aconteceu), não é uma maneira científica de lidar com a questão. Nem sempre é credível, nos métodos que utiliza, o argumento da autoridade. Sei que não sou especialista nestes assuntos, mas por alguma razão fui chamada a ouvir, lá fora, este tipo de opiniões. E não posso negar que sim, por esses dias estavam, mais uma vez, este ano, num dos fóruns a que assisti, mais de 600 pessoas debaixo de chuva intensa, quase torrencial, a ouvir vários activistas e pessoas afectadas pela poluição a falar sobre os muitos problemas que os lixos tóxicos representam na Alemanha e no mundo inteiro.
Adelaide Chichorro Ferreira
Eu não fiz a apologia da incineração enquanto sistema único ou quase de decomposição das substâncias. Apenas disse que é um dos poucos em uso corrente que reduz a complexidade das moléculas usadas. Claro que transmite para o corpo humano que tenha o azar de se encontrar por perto algumas moléculas que podem ser nocivas. O caso das dioxinas foi conhecido, precisamente porque ocorria o risco de elas se formarem a partir de compostos que possuíssem cloro caso a incineradora não tivesse temperaturas suficientemente elevadas em todo o seu volume.
Toda e qualquer técnica que permita resolver estes problemas será sempre bem vinda, como é óbvio.
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