segunda-feira, 17 de setembro de 2007

A CIÊNCIA DAS CAVERNAS


O autor destas linhas foi, em tempos idos, espeleólogo. Foram tempos de que naturalmente tem saudade. Conheceu a fundo (metáfora bem apropriada!) muitas grutas da Serra de Sicó a Sul de Coimbra (algumas descobriu-as mesmo num trabalho de prospecção e inventário), visitou várias outras no Maciço Calcário Estremenho (um dia tiveram de o ir buscar ao fundo das grutas de Mira de Aire, obviamente na parte não turística, por ter ficado entalado numa passagem mais estreita). No estrangeiro, visitou o impressionante “karst” da Eslovénia, onde até se pode andar de comboio debaixo de terra. Anotou no boletim “A Gruta”, que dirigia, os sucessivos recordes das cavidades mais fundas e mais longas. Aprendeu na prática espeleogénese (estudo da origem das grutas) e bioespeleologia (estudo dos animais das grutas) para não falar já da arqueologia e da climatologia subterrâneas.

Desde há muito que o homem procura ir mais fundo, penetrando no interior da Terra. O pintor e inventor italiano Leonardo da Vinci visitou e descreveu grutas da Lombardia (dá a ideia que da Vinci precedeu todos em quase tudo!), e o jesuíta alemão Athanasius Kircher, em 1665, publicou em Amesterdão a sua monumental obra “Mundus Subterraneus”, que fala dos dragões que, segundo as lendas medievais, ocupavam as entranhas da Terra.

Mas o início da espeleologia propriamente dita pode ser datado de 1894 quando o francês Édouard-Alfred Martel publicou “Les Abîmes” . Martel desceu aos abismos sem ter encontrado nenhum dragão. Os métodos que desenvolveu parecem-nos hoje completamente primitivos: uma gravura da época mostra-nos Martel de chapéu na cabeça e pendurado numa escada de corda rudimentar a descer uma perigosa cascata. Hoje os métodos de “alpinismo inverso” estão muito desenvolvidos: a actividade de descida aos prodigiosos mundos do interior da Terra usa muito material do alpinismo, com a óbvia vantagem que pode fazer espeleologia mesmo quem sofra de vertigens, pois no escuro não há que ter medo do fundo. Foi Martel, advogado de profissão, quem teve a curiosidade suficiente para empreender uma visita cuidadosa pelas grutas de vários países, relatando com o rigor possível para a época aquilo que viu. Graças não só à acção pioneira de Martel como principalmente às numerosas cavidades que alberga, a França ainda hoje é considerada a “pátria” da espeleologia.

Mas há grutas não só em Portugal e França como por toda a Europa. Há enormes grutas em Espanha (muito maiores que as nossas, o que não será de estranhar dado o maior tamanho em tudo do país nosso vizinho!). Há grutas em Itália, na Áustria, na Eslovénia e em muitos outros países. A Eslovénia possui um dos sítios mais emblemáticos da espeleologia pois é lá o “karst” original, isto é, o protótipo das regiões calcárias, terrenos extremamente esburacados tanto à superfície como em profundidade. Têm buracos de todos os tamanhos (do ponto de vist matemático, um fractal, portanto). Em português, a palavra “karst” deu “carso” e o Maciço Calcário Estremenho, estudado pelo grande geógrafo coimbrão Alfredo Fernandes Martins, é o maior carso português. No “karst” esloveno foi localizado no tempo de Kircher um animal semelhante a um lagarto mas sem olhos, que habita rios subterrâneos. Na altura um barão famoso julgou que era uma “cria de dragão”, mas não passa de um troglóbio, isto é, um animal completamente adaptado à escuridão subterrânea: por que precisa ele de olhos se não pode ver nada no escuro?

Há grutas por todo o mundo calcário. Onde fica a mais profunda gruta do mundo? Nas montanhyas do Cáucaso, na Geórgia, uma das repúblicas que resultou da antiga União Soviética. Dá pelo nome de Krubera/Voronya e mede 2190 m de diferença de altitude entre o ponto mais alto e o ponto mais baixo. E a gruta mais comprida? Aí não se pode competir com os Estados Unidos: a “Mammoth Cave” (Gruta do Mamute), no Kentucky, bem merece o seu nome, porque se estende por mais de 590 km. É um enorme buraco, labiríntíco, que demorou muitos anos a explorar, e que talvez ainda não tenha revelado todos os seus segredos. As maiores grutas portuguesas, com pouco mais de cem metros de profundidade, ou com apenas alguns quilómetros de extensão, ficam bem longe daqueles recordes mundiais.

A espeleologia é ao mesmo tempo um desporto e uma ciência. É um desporto, porque exige destreza física e conhecimento das técnicas para se chegar mais fundo e mais longe. Mas é também uma ciência, porque debaixo da Terra o mundo é diferente do que conhecemos à superfície e deve, apesar de ser escuro, ser visto com olhos de ver. Um bom espeleólogo tem de conhecer minimamente o modo como a água das chuvas dilui o carbonato de cálcio do calcário, abrindo pequenas ou grandes cavidades, e o modo como se depositam curiosíssimas concreções no tecto, nas paredes e no chão (do tecto descem as estalactites e do chão sobem as estalagmites, mas há também outro tipo de formações, algumas como nomes estranhos, como as bandeiras, as couves-flor, as pérolas, etc.) Tem também de saber como é a fauna subterrânea (não tanto a flora, por não haver possibilidade da fotossíntese longe das entradas). Os morcegos - a quem já alguém chamou pitorescamente os “anjos dos ratos” - são os donos dos espaços subterrâneos. O modo como emitem e recebem ultrasons mostra a capacidade extraordinária da evolução para dotar os seres vivos de mecanismos de adaptação ao ambiente. Tem ainda de saber qualquer coisa de arqueologia, pois pode dar-se o caso de encontrar numa cavidades vestígios arqueológicos (várias grutas apresentam fantásticas pinturas: são bem conhecidos os casos de Lascaux e Altamira, que estão hoje fechados ao público e substituídos por réplicas à escala verdadeira; mas entre nós há também grutas com paredes pintadas, como a de Escoural, em Montemor-o-Novo). E é bom ter umas noções de climatologia, para conhecer melhor os microclimas subterrâneos, que são em geral muito estáveis. E de outras disciplinas: a espeleologia é multidisciplinar.

Hoje a minha ligação com a espeleologia limita-se à qualidade de sócio da Sociedade Portuguesa de Espeleologia, sediada em Lisboa e a mais antiga colectividade portuguesa que realiza exploração subterrânea. Essa Sociedade continua a organizar expedições e encontros de exploradores subterrâneos. Os espeleólogos portugueses, ontem como hoje, aqui ou lá fora, continuam a fazer descobertas, isto é, a fazer luz no escuro!

4 comentários:

Fernando Martins disse...

Os parabéns pela postagem. Os espeleólogos e a Espeleologia portuguesa agradecem a da divulgação da sua ciência e do seu desporto...

Anónimo disse...

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Anónimo disse...

Como dizia o Michel Bouillon num dos meus livros favoritos (logo a seguir à Viagem ao centro da Terra): "A exploração do mundo subterrâneo e o seu conhecimento contituem uma aventura sem fim".

Bonito texto de divulgação espeleológica.
Um abraço,
SR.

Anónimo disse...

Em Lisboa também se anda de comboio debaixo da terra. :)

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