domingo, 2 de setembro de 2007

QUEM NOS FAZ COMO SOMOS


A "reentrée" está aí com livros novinhos em folhas. Um a sair muito em breve (e dele se irá falar muito, espero) é "Quem nos Faz como Somos", de José Luís Pio de Abreu, Dom Quixote, 2007. Eis o meu prefácio a esse livro:

PREFÁCIO A "QUEM NOS FAZ COMO SOMOS"

Confesso que os amigos me têm pedido muitas coisas e sou sempre incapaz de dizer que não. Mas o pedido de um prefácio para o novo livro – e quanto a mim, acrescento já, o melhor – de José Luís Pio Abreu, psiquiatra nos Hospitais da Universidade de Coimbra e Professor da Faculdade de Medicina da mesma universidade – era mais irrecusável do que a maioria dos outros. Entre outras razões, porque, além de amigo do autor, tinha ficado amigo da sua escrita depois de ler Como Tornar-se Doente Mental, um daqueles livros que se compra só pelo título – e como eu gostava de ter inventado um título assim… A obra foi um autêntico best-seller: conheceu sucessivas edições na editora Quarteto – tenho aqui comigo a 12ª - e está agora editada pelas Publicações Dom Quixote, continuando a vender-se. O sucesso das vendas justificava-se e justifica-se plenamente não apenas pelo título. Nem sequer pela eventual utilidade do conteúdo – eu estou como Salvador Dali, que foi quem afirmou que “a única diferença entre mim e um louco é que eu não sou um louco”; o livro fornece algumas boas sugestões para esbater essa subtil diferença. A escrita de Pio Abreu era informada, rigorosa, mas sempre bem-disposta. Por isso, fiquei intimamente contente por poder antepor alguma escrita minha à nova escrita dele.

O problema de Pio de Abreu – percebi logo porque ele não fez segredo disso (eu estava naquela posição um pouco paradoxal e pouco confortável de, em vez de ir ao psiquiatra, ter um psiquiatra que vinha ter comigo) – era como sobreviver a um livro com êxito, a um livro que até acaba de entrar nos pódios internacionais ao ganhar o prémio italiano “Città delle Rose” para o melhor ensaio de autores estrangeiros. Ora, não lho disse assim directamente mas pensei-o cá para os meus botões – não se diz tudo o que se pensa na primeira vez que um psiquiatra vem a nós –, só há uma maneira de sobreviver a um livro com êxito, que é, depois de gozar uma merecida pausa, tentar a seguir escrever um êxito ainda maior. Mas não era preciso dizer-lho: ele já tinha feito o conveniente intervalo – uma vez que Como tornar-se doente mental é de 2001 – e já me trazia, concatenado por argolas, as poucas mais de cem páginas do seu novo ensaio.

Pois, finda a leitura e releitura, venho declarar publicamente que tem todas as condições para ultrapassar os resultados anteriores. A escrita continua informada, rigorosa e sempre bem-disposta – e é tudo isso ainda em maior grau – mas agora o assunto é mais abrangente, partindo ainda da psicologia clínica e da psiquiatria, que tinha servido de referência ao êxito anterior, mas extravasando agora largamente os seus limites. O título, como ao leitor não passou despercebido, é agora Quem Nos Faz Como Somos. Será que pegou neste livro por causa do título? Talvez o leitor, interessado naturalmente em saber quem é, tenha feito isso. Ou será por ser do mesmo autor do outro título? Em qualquer caso, fez bem porque os títulos servem para agarrar leitores. E a divisa “conhece-te a ti mesmo” para a qual este novo título remete é um imperativo antigo. Mas, ao ler a nova obra, o leitor vai verificar que o “quem” nem sempre designa pessoas, por exemplo os nossos progenitores nem os nossos professores, mas sim “coisas” que aparecem como pessoas ao discursarem na primeira pessoa e por isso são merecedoras do pronome relativo que normalmente só se usa para pessoas.

E quem são então os verdadeiros responsáveis pela nossa identidade, os responsáveis por aquilo que pensamos (fazendo ou não fazendo) e fazemos (pensando ou não pensando)? Quem são os responsáveis pela nossa loucura ou pela falta dela ou ainda pela situação por vezes dúbia, mas demasiado quotidiana, entre a loucura e a falta dela? Pois, como bem enuncia Pio Abreu na sua introdução, e desenvolve ao longo das duas primeiras partes do seu livro, os “culpados” são os genes, que representam a nossa longa história biológica, e os signos, que traduzem a nossa enorme dependência cultural. Os nossos pais têm decerto que ver com os nossos genes, mas há também os pais dos nossos pais, e assim sucessivamente. E os nossos mestres têm decerto a ver com os nossos signos, mas há ainda os mestres dos nossos mestres, e assim sucessivamente. Há até quem pense - uma tese que está subjacente à última parte desta obra, que trata nada mais nada menos do big bang da humanidade, desde a origem da vida há quatro mil milhões de anos até ao momento presente – que a evolução experimentada pelos genes teve e tem como continuação natural a evolução experimentada pelos signos, em constante luta pela sobrevivência dos “mais aptos”. O neologismo “memes”, semelhante a “genes” foi até inventado pelo biólogo inglês Richard Dawkins em O Gene Egoísta para designar os replicadores da informação cultural que um indivíduo, ou um conjunto de indivíduos, transmite a outros. Os signos serão mais gerais que os memes – para o linguista e escritor italiano Umberto Eco, signo é tudo! –, mas os memes, de que são exemplos as peças musicais, as obras literárias, o vestuário, a arquitectura, as ideias, os costumes, as divindades, etc. são signos – na perspectiva de Eco são-no com toda a certeza!. O cientista da mente e filósofo norte-americano Daniel Dennett adoptou esse mesmo conceito em obras como A Ideia Perigosa de Darwin. Pio Abreu, à sua maneira particular, junta-se com este livro a esses grandes ensaístas, capazes da melhor divulgação científica sobre o homem e a sua história natural e cultural.

Tal como acontece com os livros de Dawkins e Dennett, em vez de um árido ensaio académico, ou conjunto de ensaios como o autor prefere dizer, trata-se de um livro de divulgação científica, que é, dentro do ensaio, o meu subgénero favorito. Os livros de divulgação de ciência servem para comunicar ciência – Pio Abreu tinha sido, de resto, já distinguido com um outro prémio de ensaio por conta do seu livro Comunicação e Medicina. O leitor tem em mãos um livro onde, como em todos os bons livros de divulgação científica, se aprende com gosto. Eu já suspeitava de qualquer coisa, mas aprendi definitivamente neste livro que as mulheres têm um cérebro diferente do dos homens: o autor diz-nos que é uma questão de simetria dos dois hemisférios que as leva a ter a “linguagem mais perto do coração e uma lógica bem mais quente e próxima das emoções” (ver o capítulo 7 da quarta parte. E, apesar de também já ter uma vaga intuição preliminar das razões, aprendi também neste livro por que é que o homem pode ser chamado “o maior aborto da Natureza” (ver o capítulo 6 da quarta parte), “o primata prematuro”: é que os humanos são mesmo uns “cabeçudos”, primatas com “uma cabeça tão grande que já não cabia no canal vaginal; tinha então de ser parido precocemente”. Espero que estes exemplos e estas breves transcrições abram ao leitor o apetite para o livro!

Pois é isso, julgo, que um prefácio deve ser. Um aperitivo, que seja breve, remetendo o leitor para o prato principal. Acrescento só, para o leitor ficar com mais água na boca, que quem esteja habituado à fluidez do discurso das obras que comunicam ciência ficará talvez surpreendido pela terceira parte, um conjunto de histórias ou crónicas sobre “Interacções e Relações”. É aí que se mostra que os outros são também “quem nos faz”. Essas histórias – cujo relato terá mais que ver com a literatura do que com a ciência - mostram com sugestivos exemplos da vida real (o autor confessa que foi aqui que entrou a sua experiência de psiquiatra profissional) como os genes e os signos surgem misturados nos nossos pensamentos e nas nossas acções. Como as nossas loucuras ou falta delas provêm dos dois. Se uma figura vale mais do que mil palavras, a estampa que antecede esse capítulo poderá servir para comunicar o essencial. A imagem mostra-nos um tango, numa milonga à média luz, no qual ele – deve ser o genoma, o conjunto dos genes – a enlaça sensualmente – ela deve ser a cultura, o conjunto dos signos – tocando-lhe na perna, enquanto ela lhe toca na cabeça… Os dois estão tão juntos que não se percebe quem é quem. Quem nos faz como somos? Nós somos, todos nós, filhos daquele par inseparável!

Pio Abreu já tinha entrado com Como Tornar-se Doente Mental para a galeria dos autores que, em Portugal, comunicam a ciência de uma forma sedutora. Agora, com Quem Nos Faz Como Somos, subiu para um sítio superior dessa galeria. Que este livro sobre a dança dos genes e dos signos tenha êxito, todo o êxito que bem merece!

5 comentários:

Anónimo disse...

Sempre achei mutito interessante a teoria do Gene Egoísta, mas mais interessante ainda seria fazer a comparação com o desejo mimético de René Girard?

Anónimo disse...

É difícil imaginar um ensaio melhor do que o divertidíssimo e muito informativo "Como tornar-se doente mental". A ler vamos...
Folgo saber que o merecido reconhecimento internacional chegou.

e-ko disse...

fico muito feliz por me dar a conhecer o autor e os livros e aceito a sugestão de leitura é entre outras o género de coisas que gosto de ler.

e-ko disse...

reflectindo bem, o que nos faz é o que nos é dado antes de chagarmos ao berço e o que vamos recebendo depois de lá termos chegado. falta, no entanto, uma dimensão mais abstracta a do ambiente físico e a do tempo, não?

Anónimo disse...

Caro Professor:

A leitura do prefácio que tão bem faz ao livro do Prof. Pio Abreu é (baseado no que li) um bom aperitivo para um banquete suculento de cultura científica servida em bandeja de prata de excelente escrita.

Aproveitando a deixa, estarão devidamente (repito, devidamente) explicadas as causas dos médicos se distinguirem, simultaneamente, em domínios tão difíceis e complexos como a Medicina e a Literatura? Os exemplos são demasiado valorosos e em quantidade demasiado abundante para serem ocorrências sem qualquer significado digno de registo, ou seja, pura coincidência!

De algumas explicações julgo eu saber pelo que tenho lido sobre o assunto, mas serão suficientes? Atrevo-me a dizer que há para aí teses de doutoramento sobre tudo e sobre nada, haverá alguma que se tenha empenhado em dar uma resposta devidamente validada a esta questão?

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