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Sidney Poitier, o jovem sedutor que eu conheci em Adivinhem quem vem para Jantar, esse belíssimo filme de Stanley Kramer, datado de 1967, publicou, aos oitenta anos, um livro de memórias, cujo título é The Measure of A Man: A Spiritual Autobiography (New York: Simon & Schuster, 2007)
Como não podia deixar de ser, aí conta como se tornou actor. É uma história magnífica em que a educação e a determinação de a conseguir ocupam o lugar central. Vale a pena pensar nela.
Sidney nasceu em 1924 em Miami e cresceu numa pequena aldeia das Bahamas, os seus pais eram agricultores e ele era o sétimo filho. Começou a trabalhar por volta dos doze ou treze anos para ajudar a família e passados uns três anos foi sozinho para a grande Nova Iorque. Depois de um ano no exército – para sobreviver ao duro Inverno da cidade, conseguiu alistar-se, usando o velho estratagema de declarar uma idade que ainda não tinha –, arranjou emprego a lavar pratos.
Um dia, teve conhecimento duma audição para actores de teatro e pensou que representar não deveria ser mais difícil do que o trabalho que fazia, e lá foi ao local indicado. Passaram-lhe o guião da peça para as mãos mas ele, que quase não sabia ler, só a custo soletrou as primeiras palavras. De imediato e com maus modos, o responsável pela selecção escorraçou-o.
Poitier refere que este acontecimento foi crucial na sua vida: contra todas as possibilidades, decidiu mesmo ser actor, percebendo, desde logo, que tinha de fazer qualquer coisa para isso. E o que fez? Juntou todo o dinheiro que pôde e comprou um rádio pequeno para ouvir e treinar a língua bem falada: escutava com particular atenção um certo locutor com pronúncia inglesa e repetia as suas palavras e frases. Um empregado judeu, muito mais velho, ao ver o seu interesse por aprender, ensinou-o a ler fluentemente e a escrever com correcção.
E foi assim que Sidney Poitier pôde começar a nascer para a arte de representar e para as aprendizagens que ela requer. Arte que assumiu com "dignidade, estilo e inteligência" e, por isso, lhe foi concedido um Óscar honorário, entre muitos outros prémios importantes que recebeu durante a sua carreira.
Poitier, pelo seu exemplo de vida, e neste livro, pela sua escrita, dá a entender que se considera, antes de mais, como um homem, ou, melhor, uma pessoa que, com toda a legitimidade, faz parte desse vasto grupo que é a humanidade, e isto sem renegar a pertença a outros grupos mais restritos com os quais também se identifica. Ou seja, dá a entender que, independentemente das características com que nascemos e do contexto em que nascemos, temos o direito fundamental de aprender. Dá a entender também que aquilo que aprendemos nos abre possibilidades de escolha, para sermos e fazermos aquilo que desejamos, ou seja, para sermos livres.
Para os leitores que desejarem aprofundar esta ideia, recomendo vivamente o livro do filósofo espanhol Fernando Savater, O valor de ensinar, que está publicado em Portugal pela editora Presença, em especial, o tópico Educar é universalizar (páginas, 102-116).
Imagens retiradas de:
http://www.lovefilm.com/lovefilm/images/products/4/6904-large.jpg
http://www.madisonpubliclibrary.org/madreads/wp-content/uploads/2007/03/sydney.gif
2 comentários:
Pela sua perseverança relembra a figura de Demóstenes que se tornou um orador exímio depois de passar por uma via crucis dada a dificuldade em articular as palavras e por alguma gaguês. Venceu a barreira treinando-se espartanamente frente ao mar, a boca cheia de seixos, declamando discursos para plateias inexistentes.
Na minha carreira de professor do secundário dei-me ao prazenteiro trabalho de ensaiar peças de Gil Vicente com os alunos que se oferecessem voluntariamente para participar ns festas de final do ano. Um deles era gago o que me deixou entre a espada e a parede, mas aceitei-o. Qual não foi o meu espanto ao verificar durante os ensaios que nunca gaguejava. Fiquei a saber que um gago que decore os papéis se torna totalmente desinibido. Fiquei igualmente a saber então porque é que o político Demóstenes deixava de gaguejar: ensaiava os discursos na praia. O que não lhe retira o mérito
Informação adicional para quem pretenda adquirir o livro "O valor de ensinar" de Fernando Savater, também está publicado pela Editora Dom Quixote, edição de 2006.
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